19/11/2004

Testamento singular

«Eu, Bonifácio da Silva Alves Teixeira, encontrando-me de perfeita saúde e no pleno gozo das minhas faculdades mentais, sendo, porém, mortal, como todo o vivente, tenho resolvido fazer o meu testamento que é como segue:

(...) De tudo quanto possuo em Portugal e no Brasil, tanto herdado como adquirido, disponho da maneira seguinte: (...) Se for vendida, como suponho, a minha casa de residência, determino que sejam construídos dois prédios para duas escolas, uma para meninas e outra para meninos, prédios solidamente construídos, que deverão ter um só pavimento corrido, com muito ar e muita luz, meio metro acima do solo, com capacidade para oitenta alunos, cada escola (...). Qualquer das duas escolas deverá ter um jardim com árvores, para as crianças estudarem de Verão à sombra.

Deixo mais, para mobília das duas escolas, mobília que será da mais aperfeiçoada, quatrocentos mil réis e mais duzentos e cinquenta mil réis para serem comprados os objectos seguintes, os quais serão divididos por ambas as escolas de meninos e de meninas: dois metros e outras medidas métricas para ensinar praticamente; duas esferas terrestres; duas ditas celestes; dois mapas de toda a Terra; dois mapas de Portugal continental; dois mapas de cada um dos territórios que são Portugal fora do continente europeu; e mais vinte quadros, dez para cada escola, onde se mandará imprimir, com a máxima clareza, alguns conselhos úteis e algumas máximas morais, tais como: (...) As árvores não se destroem, porque as árvores produzem frutos para comer, produzem sombra para nos abrigar dos raios solares, produzem lenha para nos aquecer e para os usos domésticos, e purificam o ar que respiramos... (...) Os animais domésticos não se maltratam, uns por serem úteis, outros por serem guardas e outros por ajudarem os homens em seus trabalhos... (...) Todas as pessoas nascem para serem livres... O medo não existe... Na Terra, não existe nada de sobrenatural... A vaidade é prejudicial aos homens, e muito mais às mulheres... A sujidade, a porcaria, são sempre nojentas, repugnantes à vista e prejudiciais à saúde... (...) Peço ao senhor professor e à senhora professora para não se esquecerem de, todos os sábados, fazerem uma curta prática aos alunos e às alunas, a respeito das máximas e conselhos que acima menciono, de modo que uns e outras os compreendam. (...)»

vinte e seis de Junho de mil novecentos e nove

(Extraído do livro Memórias de Vidago de Floripo Virgílio Salvador, 2004)

5 comentários :

Anónimo disse...

Testamento a uma vila, o que já o torna peculiar, e que tão bem retrata a vivência no início do século! Se seguiram os conselhos dele, muitas árvores lhe agradecerão hoje. Obrigado pelo texto fantástico; não dá para deixar de vos ler...

António Viriato disse...

Que soberbo texto aqui nos oferecem : escorreito, claro, objectivo, prático, formoso e cheio de boa doutrina, daquela que anda esquecida, arredada das salas de aula e das casas de família, onde a omnipresente televisão monopoliza atenções e esteriliza as mentes.
Muito agradecido ficarei à nossa anfitriã. Bom fim-de-semana, com visitas aos campos, se o tempo continuar convidativo. Aproveitemos o espírito do Outono. Carpe diem.

Anónimo disse...

Obrigada por nos darem a conhecer este documento delicioso. Gostei imenso de o ler. Bom fim de semana. Bjs (da Ermelinda: www.osabordaspalavras.blogs.sapo.pt)

Carla de Elsinore disse...

uma lição de vida

almariada disse...

Magnífico! :)

Muito obrigada!