13/05/2005

Ciência descobre a arma do crime


Foto: mdlramos 0504 - Cornus florida - Parque de Amarante

«O criminoso nunca escondeu as suas intenções, e chegou mesmo a publicitá-las em poema com o paradoxal título Carta de Amor. Se teve o desplante de nomear o local do crime (Jardim de S. Lázaro) e a vítima (Eugénio de Andrade), e ainda de assinar por baixo (Jorge de Sousa Braga), quem julgava ele enganar com um título assim? Os três últimos versos do poema não podiam ser mais explícitos:

Um dia destes vou-te matar...
Uma certeira bala de pólen
mesmo sobre o coração


Até hoje, mais de vinte anos decorridos sobre este chocante anúncio, o criminoso tem escapado à justiça. Apesar de as autoridades alegarem não haver a certeza de ele ter alguma vez tentado cometer o crime, uma ameaça pública de morte nunca deveria ficar impune. São situações como esta que descredibilizam o sistema (...) [1] e é por isso necessário, agora mais do que nunca, agir com determinação. E não me venham com a história de que a poesia não é para ser tomada à letra, ou de que afinal a arma usada seria inofensiva. Tudo conversa fiada. Para desgraça dos malfeitores, a ciência forense não pára de evoluir. Pois que dizer da descoberta de que a flor da Cornus canadensis dispara pólen à velocidade de 1584 km/h? [2] Mortífero, sem dúvida. Era por certo com esta arma à cintura que o meliante rondava pelas sombras do Jardim de S. Lázaro nas manhãs de Primavera. Se nunca disparou, muitas vezes o quis fazer. Talvez a arma simplesmente não funcionasse das 9h às 19h, durante o horário de abertura do jardim.

Mas agora não escapa. Até porque, como é do conhecimento geral, um poema nunca prescreve.»
NOTAS
[1] Omitimos aqui o choradinho da praxe sobre a crise do sistema judicial.
[2] Segundo a última página do Público de ontem, o pólen desloca-se 22 cm em meio mili-segundo, o que é equivalente ao valor que indicamos e não aos 3 m/s que o jornal põe em título.

4 comentários :

Nuno Cruz disse...

Lindo! Adoro esse poema do Sousa Braga, devias publicá-lo na integra.
A melhor maneira de começar uma sexta feira 13 é chegar aqui de manhã e ler estas palavras.
Muito obrigado.

Anónimo disse...

A qualidade literária do que escreve é verdadeiramente invulgar. Excelente.
S. ( de Sementinha;-)

Anónimo disse...

CARTA DE AMOR (1981)

A Eugénio de Andrade

Um dia destes
vou-te matar
Uma manhã qualquer em que estejas (como de
costume)
a medir o tesão das flores
ali no Jardim de S. Lázaro
um tiro de pistola e ...
Não te vou dar tempo sequer de me fixares o rosto
Podes invocar Safo Cavafy ou S. João da Cruz
todos os poetas celestiais
que ninguém te virá acudir
Comprometidos definitivamente os teus planos de
eternidade
Adeus pois mares de Setembro e dunas de Fão
Um dia destes vou-te matar
Uma certeira bala de pólen
mesmo sobre o coração

Miguel Jorge disse...

Obrigado pelo bom gosto da introdução ao poema com a maravilhosa fotografia dessa árvore que não conhecia e que "atira certeiras balas de pólen"...