20/04/2006

Papoilas em terreno expectante



As papoilas são flores com algum prestígio literário, símbolo de um decadentismo rebuscado e suspiroso, próprio de quem se põe à margem do turbilhão da vida. Dos frutos imaturos de uma delas (Papaver somniferum) extrai-se o ópio, alucinogénio já conhecido na Grécia antiga mas de que o consumo só se vulgarizou no Ocidente durante a época vitoriana. O escritor Thomas De Quincey (1785-1859), que manteve o vício durante toda a sua vida adulta, descreveu nas suas Confissões de um opiómano inglês a agonia física e mental e a distorção do senso espacial e temporal provocadas pelo ópio. Apesar da letargia que tal vício induz, De Quincey deixou obra extensa ainda que fragmentária. Sherlock Holmes, outro opiómano famoso, conseguiu que esse hábito não interferisse com o exercício da sua profissão: como nos relata Watson, o ópio era tão só uma pausa escapista que o detective a si mesmo concedia entre duas investigações aturadas. Destes exemplos poderia talvez inferir-se a compatibilidade entre o ópio e uma existência normal e até produtiva, não fossem dois detalhes: De Quincey passou a vida a fugir de credores (pois naquela época quem não pagasse dívidas ficava preso até que as liquidasse); e Sherlock Holmes beneficiou da invulnerabilidade própria da sua condição ficcional. Mais perto de nós por ser português, e mais longe por ter sido em Macau que o seu destino se cumpriu, Camilo Pessanha (1867-1926) seria melhor cartaz em campanha contra o consumo do ópio (ou de derivados como a heroína): figuramo-lo, nos seus últimos anos, quase andrajoso, de olhar vazio, abandonado até pela poesia.



As papoilas das fotos pertencem ao género Papaver mas não à espécie P. somniferum, e são por isso alheias a toda esta história. Não são cultivadas nem enfeitam um jardim; em vez disso, regressam em cada Primavera, sem serem convidadas, ao mesmo terreno expectante, e voltarão enquanto a expectativa não se consumar. Este animismo típico da nossa modernidade bem poderia traduzir-se num desejo de flores e árvores, mas o que o terreno espera é de facto um prédio com muitos andares.

11 comentários :

Anónimo disse...

As vulgares papoilas (as dos nossos campos) não serão tão alheias assim à produção de ópio. Casos terá havido, noutros tempos, de damas portuguesas que, sofrendo de insónias (mal de amores e outros...), tinham por hábito colocar raminhos de papoilas nas almofadas. E parece que dormiam melhor...
Já não recordo onde li isto...
Zé Batista, Braga

Paulo Araújo disse...

Foi no Porto, junto à rotunda de Bessa Leite. As papoilas costumam aparecer em campos cultivados, e a sua presença é indicativa de que os terrenos em causa tiveram uso agrícola até não há muito tempo.

camponesa pragmática disse...

Outro célebre opiómano foi Baudelaire.

camponesa pragmática disse...

Queria prever, publiquei!
Queria acrescentar ainda que no último fim-de-semana já vi papoilas. Mas o que sobretudo vi foi campos absolutamente amarelos, com pequenos malmequeres. Outros também brancos e outros ainda roxos, de uma flor que não sei nomear.
Saudações!

Anónimo disse...

Seriam os "raminhos de papoilas nas almofadas", o ópio do povo? :)

Anónimo disse...

Li, ou melhor, bebi o seu texto. Para mim, nascido no campo, estas papoilas são flores delicadas e frágeis, de extrema beleza.
Não me lembro de representações pictóricas com papoilas que não me tenham impressionado, talvez porque também há qualquer coisa de trágico nas papoilas. Só como exemplo recordo agora o último quadro, inacabado, de Henrique Pousão, pintado em finais de Março de 1884, nas vésperas da sua morte quando comaçavam a despontar as primeiras papoilas alentejanas desse ano.

Anónimo disse...

Gostei imenso do texto .
Este ano , por aqui em terras que felizmente nunca irão ver um predio,as papoilas apareceram em mais quantidade que em anos anteriores.Temos a felicidade de ver manchas vermelhas tão densas que apagam o amarelo dos malmequeres .Mesmo em locais onde já não me lembrava ter visto , lá estão elas para minha grande satisfação .
A si pergunto-lhe terá isto a ver com a seca que se fez sentir nos anos anteriores?
annie hall do outsider

Paulo Araújo disse...

Só posso mandar palpites, mas também acho que o mundo vegetal, para celebrar o regresso da chuva, se fez este ano mais exuberante do que em anos normais. Se calhar é ilusão nossa por já nem nos lembrarmos do que era um "ano normal". Pelo menos a diferença em relação ao ano passado é abissal. Fico à espera de ver no Outsider esses campos de papoilas.

RPM disse...

esta espécie de papoila aparece também no meio dos campos de cereais e, por isso, são muito usadas para enfeitar os vasos e os ramos no Dia da Espiga ou Dia dos Maios, que coincide com o 1º de maio....

os Maios, aqui na Terceira-Açores são espantalhos, que se fazem de feno e de roupas velhas, e se colocam nos mais variados locais das nossas casas...jardins, varandas, muros, etc, etc

tentarei encontrar alguns para, se desejarem vos enviar....

RPM

RPM disse...

enviar umas fotos..claro está.....

RPM

Anónimo disse...

alguem me sabe dizer quem escreveu:
"... as papoilas eram tolas, tolas, tols..."