28/09/2007

Quinta do Cravel

Os dicionários de português, renitentes em abonar novidades ou pouco atentos à evolução da língua, ainda definem quinta como «propriedade rústica, cercada ou não de árvores, com terra de semeadura e, geralmente, casa de habitação», ou então como «casa de campo». Estas acepções do termo são, pelo menos em português de Portugal, evidentes arcaísmos, e como tal deveriam ser ressalvadas; esperemos que as próximas edições dos dicionários correntes (usei o da Porto Editora) façam a correcção que se impõe. Como se sentirá um estrangeiro que, após laboriosa consulta do dicionário, decida visitar a Quinta da Seara, em Gaia, e, em vez de ondulantes campos de trigo e uma ou outra vaca ruminando em verde pasto, encontre isto? Achará no mínimo que fizeram pouco dele. Senhores lexicólogos: a língua não é estática e, hoje em dia, como se vê pelo exemplo citado (e dezenas de outros poderiam ser invocados só em Gaia), quinta significa «empreendimento imobiliário, geralmente de grandes dimensões, que veio ocupar terrenos antes cultivados ou arborizados». O Google não tem qualquer dúvida sobre o assunto: encontrou-me 886 páginas, todas elas portuguesas, onde aparece a expressão «empreendimento quinta».

Algumas destas defuntas quintas, ou talvez mesmo a maioria delas, não eram quintas de lavoura: eram quintas de recreio onde ricos privilegiados cultivavam jardins ao gosto ostentatório da época. A sua imolação à voracidade imobiliária tem um sabor de vingança - mas uma vingança tardia e equivocada. Na revolução francesa cortavam as cabeças dos nobres; na nossa revolução plebeia, mais pacífica e diferida no tempo, cortamos árvores e cimentamos quintas. Não havendo já tal casta de privilegiados, desforramo-nos na beleza que foi privilégio deles.



Apesar das aparências - pois existe realmente um emprendimento imobiliário com esse nome -, a Quinta do Cravel, em Gaia, é uma excepção à regra destruidora, já que a construção se concentra nas franjas da propriedade e a sua rica mata foi quase toda preservada. Os terrenos da quinta, com mais de 10 hectares arborizados, estendem-se desde a fábrica Coats & Clark, à EN 222, até às instalações da RTP, no Monte da Virgem. A intenção do promotor é reservar o usufruto da mata aos moradores do empreendimento, mas parece-me demasiado optimista esperar que eles paguem sem protesto a manutenção regular dos 10 hectares de arvoredo. (Conheço prédios no centro do Porto onde os condóminos se recusam a pagar até as despesas do jardim.) Por que não fazer uma parceria com a Câmara de Gaia, com a contrapartida de uma abertura (controlada) da mata ao público? Afinal não abundam no concelho espaços verdes desta dimensão (públicos só existem dois: o Parque Biológico de Gaia e o Parque da Lavandeira).

Há uma parte da Quinta do Cravel que foi aberta ao público sem restrições e onde funciona agora um restaurante de cozinha italiana. Partindo da rotunda de Santo Ovídio, o acesso faz-se pela estrada do Monte da Virgem: pouco antes da RTP, uma tabuleta à esquerda indica a Quinta do Cravel; uma vez na rua do empreendimento, um cartaz aponta o restaurante, ao qual se chega descendo por um caminho de terra batida. Mesmo que não se almoce, vale bem a pena a visita; e os mais atrevidos, como nós, não deixarão de atravessar o discreto portão que, nas traseiras do restaurante, dá acesso à parte reservada da quinta.

Que árvores se encontram nos jardins e mata que vão trepando encosta acima? Muitos eucaliptos, a permanente ameaça das acácias (desbastadas há pouco tempo, voltam a despontar em grande número), mas também pinheiros-bravos, carvalhos-alvarinhos, sobreiros, medronheiros, bétulas, sanguinhos-de-água (Frangula alnus), grandes japoneiras, árvores de fruto, cedros, ciprestes, e uma avenida de árvores ornamentais com faias, magnólias e carvalhos-americanos. Uma riqueza e diversidade arbóreas incomparavelmente maiores, por exemplo, do que as da Quinta de Marques Gomes ou do Parque da Lavandeira. Oxalá esteja em boas mãos.

5 comentários :

Rosa disse...

O grande problema das quintas é exactamente às mãos de quem vão parar, são construídas com amor, às vezes mesmo paixão e de um dia para o outro mudam para mãos desapaixonadas que não têm a mínima ideia do que fazer com elas. E afinal elas constituem um património insubstituível que devia ser protegido.
Se tiver tempo hoje ainda apanho esta "boleia" e mostro umas quintas daqui.

Anónimo disse...

Quanto a este assunto, podemos dizer que a quinta mais famosa do país, com uma idade de fazer inveja, imortalizada pelos amores de D.Pedro e D Inês, não é senão o espaço de um hotel de luxo nos nossos dias.
E as outras que se cuidem, pois tudo está a venda, e a retalho neste país...E se não forem tomadas medidas, corremos o risco de perder tudo aquilo que faz sermos visitados por turistas, que equilibram a nossa 'balança'.Eles não procuram o que já têm nos seus países; procuram aquilo que é único.É esse único que devemos preservar, custe o que custar.

Alguém em LX.

Paulo Araújo disse...

Deixe-me dizer-lhe que ser transformada no parque de um hotel de luxo não me parece um mau destino para uma quinta. Tanto mais que, no caso da Quinta das Lágrimas, a transformação em hotel não teve como resultado enchê-la de construções. Teria sido muito pior se tivesse sido convertida em condomínio ou retalhada em lotes. Parece óbvio que a manutenção dessas quintas históricas em mãos privadas implica gastos que poucos são capazes de suportar se elas não gerarem algum rendimento, e o turismo é em muitos casos a solução natural - até porque, como vivemos num país pobre (pobre em dinheiro e em estima pelo que é seu), nem tudo pode ser estatizado e convertido em museu. Em Inglaterra existe o National Trust, que é talvez a associação inglesa com mais sócios e foi uma forma de a sociedade civil se substituir ao Estado na preservação do património. Mas não vale a pena sonharmos com coisa análoga por cá.

Anónimo disse...

Agradeço a resposta.
Se o sonho comanda a vida, podemos sonhar enquanto esperamos que a mentalidade dos cidadãos evolua e possam exercer essa cidadania de que tanto se fala, com mais eficácia.
Alguém de LX.

Anónimo disse...

Exmo Paulo Araujo,

Creio que abrir as portas ao publico em geral de um parque como o da Quinta de Cravel seria desde logo condena-lo á morte.
As inumeras excursões de fim de semana de pic-nics e visitas de pseudo amantes da natureza,que depois deixam tudo cheio de pontas de cigarros e papeis podem muito bem ser evitadas.
Acredito que a Quinta de Cravel tem tudo para ser um espaço divinal e com uma potencialidade que não se encontra hoje em dia no Grande Porto.
Posto isto sou da opinião de que quem quer usufruir de um espaço daqueles que compre lá uma casa. Eu já o fiz e não me arrependo em nada, o espaço está constantemente a valorizar-se e não há igual num raio de 60 km (Creio que o mais parecido é capaz de ser o Vale de pisão e esse é um campo de golfe...)
Quanto á sua manutenção, quem lá compra casa tem que ter noção que não é só pagar a casa mas também contribuir para o espaço envolvente.Pelos que já lá habitam e que tive o prazer de conhecer creio que isso não vai ser problema.

Os meus melhores cumprimentos
Rui Oliveira

p.s.: Andar a saltar portões ilegalmente não é propriamente a melhor maneira de conhecer o parque, da próxima peça a alguém para o mostrar.