22/11/2007

Planimundo

Imagine uma maçã a ser fatiada por uma faca: cada fatia é uma figura plana com um formato que recorda o da maçã inteira. Mas, se sempre tivesse vivido confinado a um plano, conheceria apenas as fatias isoladas da maçã: conseguiria ainda assim reuni-las mentalmente e adivinhar a forma tridimensional do fruto?

Este é um dos desafios que Edwin A. Abbott (1838-1926) propõe em Flatland: a romance of many dimensions (1884), uma aventura de percepção num mundo plano, com personagens inspiradas na matemática e regras de relacionamento copiadas da sociedade inglesa do século XIX. Tal como em Platão, estes seres só têm acesso a impressões que resultam de sombras de objectos sólidos projectadas numa parede. Mas é cenário propício para uma sátira aos preconceitos da Inglaterra vitoriana, onde a ascensão social não se fazia por mérito e poucas mulheres tinham acesso ao ensino.

As personagens masculinas, que corporizam o saber racional, são circunferências ou polígonos (triângulos, quadrados, pentágonos,...), sendo tanto mais sábias quanto mais lados tiverem. Os soldados são triângulos, as circunferências - que, encaradas como polígonos com infinitos lados, representam a sabedoria suprema- são os sacerdotes desta história. Nesta sociedade, os filhos nascem com mais um lado do que os pais, o que significa que cada geração sobe um degrau na escala social; mas, naturalmente, os sacerdotes estão impedidos de procriarem. As figuras femininas, que personificam o saber intuitivo, e também conceitos abstractos como a lealdade ou o amor, são meros segmentos de recta. Sendo tão estreitas e tão pouco inteligentes, mal compreendem a linguagem masculina, cujos meandros lhes são propositadamente ocultados. Mas são seres perigosos e temidos: têm o poder de se tornarem invisíveis (um segmento visto da extremidade reduz-se a um ponto) e de, usando o seu formato de agulhas, furarem e destruírem os polígonos.

Hábil no manejo da ironia, Abbott, ao contrário do que é usual em relatos de viagens a mundos exóticos, dá voz de narrador ao anfitrião (um quadrado) e não ao visitante; e o quadrado vai mudando de perspectiva, e de sensibilidade, por influência do que vai ouvindo ao estranho que vem do espaço, apesar das naturais dificuldades de comunicação. Pelo caminho, cruzamo-nos com várias pérolas da geometria que, interpretadas neste mundo, são acessíveis a matemáticos e a leigos.

Abbott foi também estudioso de Shakespeare e são muitas as alusões ao dramaturgo neste livro. Algumas distorcidas, como «One touch of nature makes all worlds akin» - que, no original, da tragicomédia Troilus and Cressida, é «One touch of nature makes the whole world kin». Contudo o livro não refere plantas neste universo achatado; por isso fomos à procura de uma que se pudesse encaixar numa espessura mínima sem se deformar em demasia. Deveria ser vulgar no nosso mundo, para que a reconhecêssemos facilmente mesmo num contexto incomum; e certamente teria de ser uma trepadeira, das que ascendem unidas às paredes da cidade como uma segunda pele, que não temem a ausência de sombra e que pintam aguarela que disfarça o tédio das nossas esquinas.

Ficus pumila

8 comentários :

Luís Bonifácio disse...

E os objectos de 3 dimensões não serão meras sombras de objectos de 4 dimensões?

Filipe disse...

Mas os segmentos de recta têm um principio e um comprimentos infinito que permite, desde que se dê a volta (saiu-me assim), fazer qualquer poligono.

Paulo Araújo disse...

Não, Filipe, isso são as semi-rectas; os segmentos de recta são como palitos, têm princípio e fim. Se entre os habitantes do planimundo houvesse semi-rectas, a movimentação seria ainda mais problemática do que o trânsito em hora de ponta nas nossas metrópoles (pois as figuras não se podem atravessar umas às outras sem se ferirem mortalmente). Em qualquer caso, é verdade que um palito pode ser dobrado para formar um polígono, mas as regras do jogo não permitem fazer isso no planimundo sem matar as senhoras.

Maria Carvalho disse...

O quadrado conjecturou o mesmo que o Luís, mas a ideia foi prontamente recusada como insensata pela visita tridimensional (uma esfera).

Paulo disse...

Cerca de três décadas após o “Flatland” de Abbott, Hugo von Hofmannsthal escreveu um conto/libretto para Richard Strauss chamado “Die Frau ohne Schatten” (A Mulher sem Sombra). Decorria a Primeira Guerra Mundial e os homens começavam a ter medo das mulheres, que tomavam consciência da sua própria sombra, ou seja, existiam, estudavam nas universidades, tinham profissões. Trinta anos passados e o simbolismo deste conto voltava a tocar na tecla da subalternidade das mulheres.

Trata-se de uma história intemporal, passada em ambiente oriental, ou pelo menos exótico, de conto de fadas. Uma imperatriz que não consegue produzir sombra, logo é estéril, procura alguém que lha ceda, a qualquer preço, para poder ter filhos (ter sombra = existir = ser fértil). Um conto que bebe directamente das fontes de Freud e de Jung, mas também das filosofias orientais, em que a sombra é símbolo da consciência e do nosso lado obscuro, com o qual temos de nos harmonizar de modo a nos preenchermos e a nos encontrarmos.

Vem isto a propósito da pobre trepadeira, que não se preocupa com estas questões existenciais, limitando-se a cobrir muros como se tinta fosse.

Filipe disse...

Paulo
que grande asneira eu fui cometer, é o que vale ler as coisas à pressa e associar ideias institivas.
O que ganhei foi mais uma ida ao projecto Gunterberg onde a obra de Abbot está disponível para download. Realmente a parte do sexo feminino está muito mal tratada, embora os conceitos matemáticos envolvidos e a relação apresentada seja interessante.
Parabens por isso à autora do post

Maria Carvalho disse...

Quando analiso esta obra com os meus alunos, considero o caso particular de um mundo plano em que todas as figuras têm o mesmo perímetro. Nesse caso é interessante comparar as áreas das regiões que delimitam (o quociente isoperimétrico, abreviadamente QI - que, naturalmente, na minha interpretação da obra de Abbott, significa quociente de inteligência). Um teorema notável, objectivo destas aulas, afirma que o triângulo engloba a menor área (tem o menor QI), a circunferência é o bordo da área máxima. Os segmentos de recta têm área (QI) zero. Neste momento da aula o desagrado das alunas é sempre tão notório como o sorriso maroto, vaidoso, quase indigno, dos alunos. E já lá vão muito mais que 30 anos depois do libretto 'A mulher sem sombra'.

Paulo disse...

Possivelmente ainda passarão várias vezes trinta anos sem que certas coisas mudem. Permaneceram fortemente instaladas nas mentalidades durante muitos séculos.