30/06/2009

Novos vizinhos

A coluna de atalhos aí à esquerda tem levado algumas podas, sobretudo para remoção dos ramos mortos, mas os que ficam ainda compõem floresta tão densa que o leitor talvez nem repare nos novos vizinhos que, uma vez por outra, aqui vão chegando. Eis três deles que bem merecem assídua visita:

  • Peregrino - por Bernardino Guimarães, cronista do Jornal de Notícias e consultor editorial do programa televisivo Biosfera, um blogue muito informado sobre todos os assuntos do ambiente.
  • Das plantas e das pessoas - os profissionais da botânica saem finalmente da toca, e os amadores como nós só têm a ganhar com isso.
  • Sintra, acerca de - mostra a Sintra que os visitantes ocasionais desconhecem, reaviva memórias, desperta saudades, e ainda tem tempo para olhar em volta e falar do urbanismo que (não) temos.

A culpa é das ovelhas

O momento mais pungente - ou pelo menos aquele que mais fundo me tocou - do seminário Árvores Monumentais: Importância e Conservação, que decorreu no Sabugal na quinta e sexta passadas (25 e 26 de Junho), aconteceu exactamente no final da palestra de Ted Green. Foi quando...

(Eis que a voz da consciência me interrompe em tom alarmado: «O quê?! Não me digas que vais falar daquilo! Francamente, não esperava isso de ti!»)

(Ignoro tanto quanto possível a interrupção e prossigo o meu relato.)

... foi quando o orador perguntou se alguém da audiência podia emprestar dois casacos, um para ele e outro para Jill Butler. É que já há dias que os dois, desprovidos de agasalhos eficazes, rapavam em Portugal um frio para o qual ninguém os tinha alertado. Na manhã seguinte, durante a excursão aos castanheiros monumentais, continuavam ambos de manga curta. O dia esteve sempre prazenteiro, o sol nunca se fez rogado, e os casacos não fizeram falta nenhuma, mas será que alguém lhos chegou a emprestar? Prefiro não saber. Seria terrível que ruíssem na mesma altura duas das certezas que mais arreigadas tinha: a primeira, que os povos do norte da Europa (e em particular os britânicos) são imunes ao frio; a segunda, que ninguém excede os portugueses em hospitalidade.



Castanheiro (Castanea sativa) - Sabugal

São às centenas os anos que os velhos castanheiros do Sabugal transportam às costas. Alguns soçobram a tamanho peso e acabam por secar; outros há que suportam copas mais ou menos frondosas; e há ainda aqueles que, como quem usa peruca, disfarçam a decrepitude com cabeleiras de folhagem que afinal não lhes pertencem. É o caso do castanheiro acima: o tronco principal está morto, e dele não brota sequer uma folha; no entanto, os rebentos emitidos pelas raízes (chamados pôlas ou ladrões) conseguiram formar troncos secundários que agora prolongam a vida da árvore, fornecendo-lhe a copa verde que ela de outro modo não teria.

Por isso, como explica Ted Green, devem manter-se as ovelhas e outros animais de pastagem afastados destas árvores: as pôlas são um seguro de vida destes monumentos vegetais, e não são para cortar nem para comer. (É só por isso que as ovelhas são más. De resto, Ted Green é um ardente defensor de uma agricultura que combine, no mesmo espaço, a presença das árvores com o cultivo dos campos e o pastoreio.)

(Aqui chegado, é melhor o leitor ir espreitar à Quinta do Sargaçal para um relato mais circunstanciado do seminário e do passeio. O castanheiro-que-por-pôlas-valerosas-se-vai-da-lei-da-morte-libertando também lá aparece, mas a verdade é que, apesar de termos visto muitos castanheiros, poucos como este tinham tanto que contar e se puseram tão a jeito para a foto.)



(Para mostrar alguma coisa que o José Rui Fernandes não tenha ainda mostrado, termino com uma foto do rio que atravessa a cidade do Sabugal: o Côa, aqui marginado por amieiros e choupos.)

29/06/2009

Pau-Brasil



Caesalpinia sp.

A espécie echinata do género Caesalpinia* é nativa da América Central e do Sul, preferindo lugares secos do interior da floresta atlântica. É abundante no este do Brasil (e ali carinhosamente chamada pau-Brasil), particularmente no sul da Bahia, mas está em perigo de extinção no seu habitat natural. A folhagem é perene e aromática, sendo as folhas bipinadas, com folíolos de formato rombóide de ponta achatada. As flores, muito populares entre as abelhas e importante fonte de néctar para borboletas e colibris, têm 5 sépalas desiguais que, apesar disso, formam um cálice funcional pois uma delas envolve quase completamente as outras. Das 5 pétalas destaca-se a posterior pintalgada de vermelho e de menor tamanho. O tronco é espinhoso (o que o epíteto echinata realça), mas os espinhos são moles, como se feitos de cortiça. A madeira é pesada, dura, compacta, muito resistente, de textura fina, com alburno cinzento pouco espesso e diferenciado do cerne rosado. Outrora usada intensamente na construção naval e para extracção da brasileína (um corante retirado do lenho e ingrediente da tinta de escrever), serve actualmente para o fabrico de arcos de violino.

Julgámos tê-la visto no Jardim Botânico do Porto, onde um exemplar de Caesalpinia, o que as fotos documentam, está identificado como tal. Mas a Lúcia alertou-nos para o erro nesta placa: o pau-Brasil tem os folíolos alternados e a pétala manchada de vermelho é mais vistosa. Na sua opinião, o exemplar das fotos é da espécie C. spinosa.

* nome que homenageia Andrea Cesalpini (1524/25-1603), naturalista italiano, autor da obra De Plantis

27/06/2009

Escola do olhar

A arte, que preparou o chão para o idoso e curvou a abóbada celeste para o cristão, é agora desperdiçada em latas e pulseiras. Estes tempos são piores do que se pensa.
Johann W. Goethe



As fotos mostram outro jardim do Festival de Ponte de Lima, que as autoras (Carla Correia e Vera Elvas) intitularam Pintando (n)o jardim. Combinam-se nele, com certa irreverência mas sentido fascínio, a ideia e a forma de um bocado de mundo dividido por cores. A rota sugerida leva-nos até canteiros com molhos de Achillea filipendulina, Osteospermum sp., Salvia splendens, Tagetes patula, Verbena "Temari Blue".

O material não convencional nesta fusão é o lençol que, estendido como roupa limpa mas maculado de tinta, assinala os torrões onde as plantas parecem ter sido obrigadas a respeitar certa paleta de tons. Estas telas perfiladas estão em posição que lhes permite, com suave brisa, receber o visitante com uma discreta vénia, e, levantadas por vento impetuoso, formar um tecto que duplica o chão. São manuais que nos ensinam a ver, que encurtam a distância entre o mapa e o lugar.

Pintura e a paisagem têm neste jardim a mesma idade, mas reparamos na insignificância do traço da primeira pelo contraste com a autenticidade da segunda. Os salpicos nos panos evocam vagueações entre montanhas, em atmosfera rarefeita, ali onde o horizonte é vasto mas a lonjura torna a natureza indistinta. Ao contrário da paisagem, o quadro cabe em casa mas dele ouvem-se sons, não acordes.

26/06/2009

Sono branco


Papaver somniferum subesp. setigerum

Continuamos com a revisão em branco da matéria dada. Sim, porque já antes explicámos as papoilas com algum detalhe; e, com o vigor que nos pareceu ajustado às circunstâncias, até denunciámos os efeitos da papoila-do-ópio na perturbação da ordem pública. Regressa agora a papoila-do-ópio, mas vestida de um branco que só não é inocente porque as manchas arroxeadas na base das pétalas nos fazem desconfiar de intenções menos puras.

A subespécie setigerum da Papaver somniferum está referenciada como espontânea em Portugal; um dos seus nomes comuns (segundo o Portugal Botânico de A a Z) é justamente papoila-branca. No entanto, as populações com flores brancas parecem ser mais abundantes nos Açores do que no Continente; por cá predominam as de flor cor-de-rosa. As papoilas das fotos foram avistadas há duas semanas na Serra dos Candeeiros, em local que a consciência cívica nos proíbe de revelar. (Bem sabemos como os nossos leitores têm sempre um comportamento responsável, e não é a pensar neles que adoptamos tal secretismo; mas com isto da internet nunca se sabe quem vem cá espreitar.)

25/06/2009

Incrível troca de cores


Scilla monophyllos

Um fenómeno como o que hoje aqui revelo bem mereceria manchete de primeira página no Jornal do Incrível, se o tempo, e as mudanças de que o mesmo é composto, não tivessem acabado com tão instrutivo pasquim. Haveria, porém, um óbice: recordo-me desse jornal todo a preto e branco, mas pode ser lapso meu (com a distância temporal as recordações perdem viço e cor). Assim, se a manchete gritasse aos leitores: Descoberta em Valongo uma Scilla monophyllos de Flores Brancas; e em subtítulo: Planta Albina Terá Feito Pacto de Troca de Cores com Anémona Suicida - se fossem essas as chamadas de primeira página, as bocas abrir-se-iam de espanto, e a edição do jornal esgotaria em poucas horas. Só que... e o comprovativo fotográfico do fenómeno? Uma galinha com duas cabeças e três patas pode ficar registada a preto e branco sem que a notícia perca credibilidade, até porque galinhas dessa estirpe são coisa corriqueira; mas, tratando-se de um fenómeno botânico nunca antes observado, a que a foto a preto e branco é incapaz de fazer justiça, os leitores ficariam legitimamente de pé atrás. Que uma flor é azul e a outra branca, quando toda a gente sabe que é ao contrário? Vai contar essa a outro. Uma vez inoculado o vírus da desconfiança, os seus efeitos alastrariam à leitura das restantes notícias: Quantas patranhas destas não me terão já estes maduros tentado enfiar? Bem vistas as coisas, se o Jornal do Incrível publicasse notícias como esta, sobre a inexplicável permuta cromática entre duas flores silvestres de diferentes famílias botânicas, a falência ainda o teria atingido mais cedo. O media apropriado é este blogue que o leitor vai folheando - e que, por uma vez, não quis fugir ao apelo do sensacionalismo fácil.

(Pode ver aqui uma Scilla monophyllos com a cor certa. Em cima, na foto da esquerda, vê-se também, ao lado da planta albina, um exemplar normal já com as flores murchas.)

24/06/2009

The abyss of transition


Tradescantia ohiensis subesp. alba

.....It is the death of war that kills the valiant
.....And death of indecision takes the idle away.
.....The trade of the cutlass blunts its edge
.....And the beautiful die the death of beauty.
.....It takes an Elesin to die the death of death...
.....Only Elesin ... dies the unknowable death of death.

.....Wole Soyinka, Death and the King's Horseman (1975)

Alho-bravo


Allium sphaerocephalon L.

....."Já falei que chegue", disse Deus.

....."Quero que haja outras línguas
.....que me digam qual o sabor
.....do mel e do sal;

.....como é tocar o linho com as polpas dos dedos;

.....me falem das variações na floresta
.....sobre o meu tom de verde;

.....e sobre cebolas e fuligem.

.....Quero saber o que pensa alguém
.....sobre o barulho do trovão,
.....o modo de falar das ondas."

.....Foi o último retoque do oleiro.

....."Deixei um pouco
.....de mim aqui", disse Deus.
....."Quando os seus sentidos despertarem
.....quero que me responda."

.....Neil Curry (trad. de Francisco J. Craveiro de Carvalho)

23/06/2009

S. João menino, S. João fresquinho

Os cedros da Biblioteca Almeida Garrett

Não tenho postado por aqui (falta de tempo e de disposição) mas os últimos dois posts do Paulo deram-me vontade de mostrar também, visto de cima, um projecto de arquitectura que respeitou o jardim do Palácio de Cristal. O oposto da intervenção agora anunciada que destruirá o tradicional lago, um "charco" nas palavras do projectista- e obrigará ao abate de muitas árvores (deduzimos nós até prova do contrário).

Jardim das Cidades Geminadas



Deslocarmo-nos de um lugar para outro, nestes dias em que o Verão anuncia de modo desnecessariamente enfático a sua chegada, é um exercício minucioso de cálculo de sombras. Interessa-nos minimizar D, a distância total percorrida, mas maximizando o quociente S/D, onde S é a parte do percurso não sujeita à incidência directa da inclemente luz solar. O que há mesmo a fazer é encontrarmos uma sombra que nos agrade - ou seja, de origem vegetal - e deixarmo-nos lá ficar quietinhos enquanto a situação não evoluir para melhor. No pior dos possíveis cenários, assim que se der o pôr-do-Sol (fenómeno celeste que nestes dias tem ocorrido com notório atraso) a razão S/D atingirá o valor óptimo de 1, e isto independentemente do trajecto escolhido para o regresso a casa.

É nos jardins do Palácio de Cristal que nos acolhem as melhores sombras do Porto, cruzadas pelo chilreio dos pássaros e pelo perfume das tílias e magnólias em flor. E agora, entre a Avenida das Tílias e a Biblioteca Almeida Garrett, novo motivo há para preitearmos a sombra enquanto homenageamos aqueles que, viajando, trouxeram novos mundos ao mundo nos tempos heróicos em que os pacotes da Agência Abreu não incluíam hotéis com ar condicionado. Aos sedentários, como nós, cabe arregalar o olho quando o regressado viajante dispõe à nossa frente as maravilhas que coligiu nas suas circum-navegações. E é uma admiração genuína a nossa, mesclada com gratidão puríssima, em que não entra nanograma de inveja. Quem diria que existiam tão exóticos povos e costumes tão de espantar em tão remotos lugares? E tu, com este calor, foste capaz de lá ir? Uau!

Verdadeiros embaixadores culturais, foram estes viajantes intrépidos a tecer os chamados laços de amizade entre os povos, que se exprimem modernamente pela geminação de cidades e pelos jantares e recepções que os respectivos autarcas se oferecem mutuamente. A geminação é uma espécie de Jardim dos Sentimentos à moda do festival de Ponte de Lima, com fitas garridas transportando amizade recíproca entre diversos pontos do mapa-múndi como antes os fios do telégrafo transmitiam mensagens em código morse. E como não ficarmos agradecidos à Câmara do Porto quando a amizade inter-urbes se materializa em mais árvores e mais sombras?



O Jardim das Cidades Geminadas foi inaugurado no princípio deste mês. Cada cidade geminada com o Porto ofereceu uma árvore ou arbusto que de algum modo a simboliza. Temos assim, em poucos metros quadrados, uma lição de geografia e de botânica que tomámos a previdência de anotar antes que as placas comecem a sumir-se, como é hábito delas. Assim, Vigo ofereceu uma oliveira; Léon, um carvalho-negral (Q. pyrenaica); Duruelo de la Sierra (também em Espanha), um azevinho; Roterdão já tinha dado em 2001 três carvalhos e uma faia; Bordéus deu um medronheiro; Liège, uma pereira; Bristol, uma tramazeira (Sorbus bristoliensis); Brno (República Checa), uma tília-de-folhas-pequenas (T. cordata); Xangai, uma magnólia (M. grandiflora); e Nagasáki fez-se representar por um diospireiro descendente de uma árvore que sobreviveu à bomba atómica. Um painel de azulejos azuis e brancos onde se entrelaçam ramagens floridas assinala do modo mais feliz o novo jardim: é obra de Jesper Andersen, artista dinamarquês que há dias inaugurou, no n.º 36 da rua da Picaria, no Porto, uma exposição de azulejos seus.

Antes o charco que tal espelho

Quem estraga a alegria, esse bem tão escasso, merece denúncia pública vigorosa. Desde que a gestão do Palácio de Cristal foi retirada à Porto Lazer e entregue ao Pelouro do Ambiente da Câmara, as melhorias têm sido evidentes. Não se repetiram as podas desastrosas na Avenida das Tílias, muitos novos arbustos e árvores têm sido plantados (magnólias, extremosas, tílias, camélias, criptomérias, freixos, cedros), e é visível que os novos responsáveis têm ideias sobre jardinagem que vão além da substituição das flores sazonais e do corte periódico da relva. Ainda não é Ponte de Lima, mas estamos no bom caminho. O recém-estreado Jardim das Cidades Geminadas é a melhor prova da criatividade e empenho desta nova gestão dos jardins dos Palácio.

E não é justamente agora, no início de tão promissora nova vida do recinto, que um projecto impensável, sob a capa da inevitável requalificação, ameaça ferir de morte os jardins do Palácio? Em 1951, o arquitecto José Carlos Loureiro foi o projectista da bolha que veio substituir o genuíno Palácio de Cristal, datado de 1865. Inaugurado em 1956, o Pavilhão dos Desportos (mais tarde chamado Pavilhão Rosa Mota) consumou um atentado ao património de que a cidade nunca se recompôs. É certo que o Porto se habituou ao edifício, e hoje já o tolera; mas seria abusivo dizer que gosta dele. O jardim teve meio século para recuperar da afronta, e as árvores que entretanto cresceram em torno do lago (também refeito por essa altura) formam uma cortina que quase enobrece o edifício que deixam entrever.

Preocupada com o escasso uso que o Pavilhão Rosa Mota tem tido, a Câmara do Porto resolveu chamar novamente José Carlos Loureiro para remodelar o edifício. As obras previstas, orçamentadas em 18,5 milhões de euros, são financiadas pelo Quadro de Referência Estratégico Nacional (QREN) e deverão decorrer de 2010 a 2011. Se se tratasse unicamente de modernizar o pavilhão, adaptando-o a novos usos, nada haveria a obstar ao projecto; mas a vaidade de um arquitecto, quando deixada à solta, tem consequências terríveis. A pretexto de se modernizar o antigo, acrescenta-se-lhe um edifício novinho em folha que vai destruir o lago («não passa de um charco», segundo o arquitecto, e será substituído por limpidíssmo e geométrico «espelho de água») e ocasionar uma razia insana no arvoredo.


O novo edifício estender-se-á do Pavilhão Rosa Mota até às traseiras da capela de Carlos Alberto (imagem do Público, 18/VI/2009)

O edifício terrorista justifica-se pela necessidade de auditórios para congressos, que - espera a Câmara - vão acorrer de todo o mundo ao Porto e ao Palácio logo que o renovado complexo esteja pronto. E o vasto auditório da Biblioteca Almeida Garrett, a cinquenta metros de distância, quase sempre desocupado, não serve para nada? Quem vai a um jardim como este quer encontrar árvores, pássaros, vida; prefere infinitamente ver patos a nadar num lago sombreado por vegetação a um estéril «espelho de água» sufocado por edifícios.

Durante a apresentação do projecto, feita a 17 de Junho em cerimónia no Pavilhão Rosa Mota, foram muitas as juras de amor e carinho pelo jardim, misturadas com incoerências várias que os jornalistas reproduziram com a ingenuidade habitual. Que «a intervenção será realizada com um respeito muito grande pela área envolvente, nomeadamente pelo jardim do Palácio de Cristal, com particular cuidado com as árvores classificadas e de grande interesse pelo porte ou espécie». Leio isto e fico tão tranquilo como se me dissessem que, tendo o canil camarário capturado um bando de gatos vadios num quintal, se comprometia a tratá-los com o maior carinho, nomeadamente não abatendo animais protegidos ou de grande porte. Ficava ciente de que não seria abatido nem um só lince da Malcata ou tigre da Malásia; mas ficava também a saber que, dos felinos capturados, nenhum sairia dali vivo. (Não há árvores classificadas nos jardins do Palácio; nenhuma das árvores em risco é rara ou tem porte especialmente notável, pois todas datam da época em que a bolha foi construída ou são mesmo posteriores.) Para compor o ramalhete de declarações absurdas, a notícia no JN termina com: «certo é que [nas palavras do arquitecto] "o novo equipamento não vai deitar abaixo nenhuma árvore"». Quer isto dizer que o edifício vai ser flutuante, pairando acima da copa das árvores, sustentado talvez por balões de hélio ou hidrogénio? E, se nenhuma árvore vai abaixo, para quê ressalvar as (inexistentes) árvores classificadas, raras ou de grande porte?

José Carlos Loureiro arrisca-se a ficar na história do Porto como o homem que destruiu o Palácio de Cristal duas vezes: a primeira, há mais de meio século, por encomenda; a segunda, hoje, por simples vaidade. Vaidade que os poderes públicos incitam, permitindo aos arquitectos adulterar a seu gosto, em prejuízo de quem nela vive, a cidade que deveria ser de todos.

22/06/2009

Dove tree




Davidia involucrata Baillon - jardins da Kenwood House

Davidia é um género de folha caduca e uma só espécie, D. involucrata, adoptado como filho único pela família Davidaceae; estudos recentes sugeriram contudo que está próximo do género Cornus, optando os taxinomistas por colocá-la na família Cornaceae. Há vários aspectos na fisionomia desta árvore que atraem a atenção; atenda neles, caro leitor, enquanto manuseia as fotos.

Tem folhas que lembram as das tílias: acuminadas, de uns 15cm x 12cm, simples, alternadas e face inferior pubescente (curiosamente, há também uma variedade de folha glabra e amarelada, D. involucrata var. vilmoriniana). Uma inspecção mais cuidada revela que as folhas têm pecíolos avermelhados, base cordiforme, margens serradas e uma ponta saliente. A venação é peculiar: para cada lado partem, do veio central, sete a oito veios laterais que - ora confirme - se bifurcam antes de atingirem as margens.

Mas há mais. No fim da Primavera nascem fiadas de flores suspensas dos ramos que parecem pombas alvas - ou outros seres de roupagem branca a que aludem as designações handkerchief tree e ghost tree. As flores masculinas não têm sépalas ou pétalas, são meras estruturas redondas (com cerca de 2cm de diâmetro), feitas de numerosos estames com anteras de cor púrpura, que rodeiam um flor feminina verde - no que se pode considerar uma perversão da sã ortodoxia do harém. O conjunto é envolvido (daí o epíteto específico involucrata) por duas enormes brácteas (folhas modificadas que se situam na base da flor e a cobrem) de tamanhos desiguais, tendo a maior cerca de 20cm de comprimento.

O formato das flores, com pouca protecção da componente feminina, sugere que este é um género de origem remota. Sobreviveu isolado nas florestas húmidas das regiões chinesas de Sichuan e Hubei, as que são também habitat do Ginkgo, da Metasequoia e dos pandas. O nome do género homenageia o naturalista e missionário francês Armand David (1826-1900).

20/06/2009

Amor em linha



.....Love alters not with his brief hours and weeks,
.....But bears it out even to the edge of doom.
.....If this be error and upon me proved,
.....I never writ, nor no man ever loved.
.....William Shakespeare


O 5º Festival Internacional de Jardins de Ponte de Lima termina a 31 de Outubro. O tema deste ano é As artes no jardim, mantendo-se a intenção de relançar o culto pela jardinagem e de permitir aos visitantes conhecer perspectivas distintas sobre a concepção de um jardim como componente obrigatória de encantamento na paisagem.

Um júri seleccionou onze projectos, e estas imagens mostram o Jardim dos Sentimentos. Os autores (António La Greca e Cláudia Sá Lima) escolheram como inspiração os bordados dos «lenços dos namorados», objectos tradicionais minhotos associados ao ritual amoroso. Com pedras, madeira e flores criaram um lenço tridimensional onde sobressaem roseiras de cores e fragâncias distintas que desse modo sublinham as diferentes gradações de sentimento e compromisso. Transcrições de textos mais ou menos ingénuos e coraçõezinhos, usuais nestes bordados, foram pintadas em numerosos pilares de madeira, que, da pureza inicial da terra, nos restituem à natureza artificial da arte.

19/06/2009

Anémona suicida


Anemone trifolia subsp. albida (Mariz) Ulbr.

Terá sido por chegarmos tarde? Ensinam os manuais que esta espécie de anémona (uma das três que são espontâneas em Portugal, e aquela que tem distribuição global mais restrita, ficando-se pelo noroeste do país e fazendo curta incursão à Galiza) floresce de Fevereiro a Abril, e já Março era maduro quando a detectámos, solitária, no acesso a uma clareira entre carvalhos e eucaliptos. E se tiver sido ela a última da sua espécie em toda a serra de Valongo? Suicídio glorioso este, para o qual se preparou tingindo de azul-marinho a flor que deveria ter sido branca, e pondo-se de plantão no local onde se concentram, para combinar percursos e ensaiar derrapagens, os motoqueiros de fim-de-semana que infestam a serra. Eia, eia, diz ela em tom de desafio, enquanto espera a primeira de muitas rodas que irão triturá-la, não é a toa que me chamam erva-sanguinária. Mesmo que seja dela e verde o sangue a derramar.

18/06/2009

Vidro e cerâmica, 1898


Phlomis lychnitis L.

«...a hídria, cuja função não consiste em retirar água, mas em captá-la assim que ela brota da nascente. Daí o seu bordo superior em forma de funil e o fundo em forma de caldeira, cujo centro de gravidade está o mais próximo possível da embocadura - é que as mulheres etruscas e gregas levavam as suas hídrias à cabeça: de pé, quando cheias, e deitadas quando vazias. Quem tentar equilibrar um pau na ponta do dedo verá que é mais fácil se virar a ponta mais pesada para cima - esta experiência explica a forma da hídria helénica pois o fundo assemelha-se a uma beterraba em forma de coração que é completada por duas pegas horizontais ao nível do centro de gravidade (para erguê-la quando está cheia) e uma terceira pega vertical para levá-la e pendurá-la quando vazia, ou talvez para ser manuseada por uma terceira pessoa que ajuda quem traz a vasilha a colocá-la em cima da cabeça.»

Com estas palavras, Semper deve ter cravado um punhal no coração dos idealistas. Como é que estes maravilhosos vasos gregos, com as suas formas perfeitas, que pareciam ter sido criados apenas para testemunhar a necessidade que o povo grego tinha de coisas belas, devem o seu desenho a uma mera questão de utilidade? A sua base, o corpo, as pegas, o tamanho da abertura foram apenas ditados pela sua utilização prática? Nesse caso, os vasos acabam mesmo por ser práticos! E nós que sempre os tivemos por bonitos!


Adolf Loos, Ornamento e crime (1908), trad. de Lino Marques, Edições Cotovia, 2004

17/06/2009

Simão Ferreira Sousa


Confluência dos rios Simão e Ferreira, em Valongo

O triplo antropónimo não vem aqui para chamar gente, mas sim porque uma percentagem, ainda que pequena, das águas que formam a porção da bacia do Douro na área metropolitana do Porto poderia com justiça ostentar essa combinação de nomes. O rio Simão, um pequeno curso de água restrito ao concelho de Valongo, junta-se ao rio Ferreira no limite sudeste da cidade. Revitalizado com as águas alheias, o rio Ferreira, que já viajara desde Paços de Ferreira, encontra forças para um ziguezague que rasga as serras de Santa Justa e Pias no sentido norte-sul. O seu destino é o concelho de Gondomar, onde, dois ou três quilómetros antes da meta, confia ao rio Sousa a responsabilidade de transportar a massa de água conjunta até à margem direita do Douro.


Freixos (Fraxinus angustifolia) e eucaliptos (Eucalyptus globulus) nas margens do rio Ferreira

É possível que Valongo seja o concelho do país com mais empreendimentos inacabados, lugares onde nunca morou nem há-de morar gente. Seja por falta de compradores ou por falência dos empreiteiros, essas urbanizações reduzidas a esqueletos, invadidas pela mesma vegetação que fora varrida para dar lugar às novas cidades, ficarão por muitos anos como testemunhas do desperdício e do mau planeamento - até que, por vergonha ou misericórdia, alguém as mande demolir. E consta ainda que Gondomar também dá boas cartas nesse campeonato de cidades-fantasma.

A pulsão de expandir indefinidamente a malha das cidades, nem que seja multiplicando os nados-mortos urbanísticos, faz recear que a médio prazo não sobre nesses concelhos qualquer área significativa livre de construções. E, contudo, o vale do rio Ferreira, entre Valongo e Gondomar, é a peça central de uma mancha verde ininterrupta que abrange as serras de Santa Justa, Pias e Castiçal [por comodidade, ainda que incorrectamente, designo-as colectivamente por serra de Valongo], e se estende também até Paredes. São matos, riachos, encostas e arvoredo perfazendo 25 km^2, uma área igual a três quintos da cidade do Porto; em suma, uma verdadeira floresta urbana no coração da metrópole. O poder político vai ganhando noção do valor destas serras: nos últimos trinta anos, foram várias as tentativas frustradas de aqui criar um parque natural. Em 31 de Julho de 2003, o Conselho de Ministros, reunido com grande pompa no Palácio do Freixo, tomou uma resolução nesse sentido que não teve qualquer resultado prático.

A riqueza botânica e geológica da serra de Valongo está descrita em vários documentos oficiais ou para-oficiais. Afinal de contas, a serra foi integrada na Rede Natura 2000, e a própria Câmara Municipal criou lá o Parque Paleozóico de Valongo. Contudo, se as pedras, os fósseis e os sedimentos estão mais ou menos a salvo da destruição, o mesmo não se passa com as plantas. Um amador de botânica portuense, William Tait, da comunidade britânica radicada na cidade, mandou a Charles Darwin, em 1869, exemplares de uma planta carnívora (Drosophyllum lusitanicum) colhidos na serra de Santa Justa. Se o tentasse fazer hoje, o mais certo é que não a encontrasse, pois a localização das escassas populações remanescentes é segredo ciosamente guardado pela comunidade científica. E outras plantas há, algumas endémicas, cuja existência é igualmente virtual, pois quem passeie pela serra quase só vê eucaliptos.


Vale de Couce, com amieiros (Alnus glutinosa) na margem esquerda do rio Ferreira

A eucaliptização, com os incêndios e a erosão do solo a ela associados, vem causando em Valongo uma perda acelerada de biodiversidade. Mas outros factores nefastos têm pesado na balança: as acácias nas zonas ribeirinhas, a poluição fluvial, e sobretudo a prática desregrada de desportos motorizados. Não há fim-de-semana em que a serra não seja atordoada por numerosos grupos de motociclistas em duas, três ou quatro rodas. Quem por lá passeie tem que conformar-se com o ruído e o pó, e desviar-se prudentemente para dar passagem aos estrepitosos veículos. Nenhuma das plantas que bordejam os larguíssimos caminhos escapa ao atropelamento. E nem aquelas em lugares mais afastados estão a salvo, pois o fluxo de motas e motoretas vai continuamente desbravando novos percursos.

No vale do rio Ferreira, em especial junto à aldeia de Couce, persistem amostras do antigo coberto arbóreo: carvalhos, amieiros, freixos, sobreiros, pilriteiros, salgueiros e até algumas pereiras-bravas. A vegetação arbustiva e herbácea, muito ameaçada, reserva-nos algumas surpresas, como a Silene que ontem aqui mostrámos. E mais haverá para mostrar em próximos números da série.

16/06/2009

Assobio da serra


Silene scabriflora Brot. subesp. scabriflora

Da família dos cravos, o género Silene abriga cerca de 500 espécies, duas centenas delas europeias. São polinizadas por insectos, frequentemente borboletas, em negócio tão bem conduzido que uma das designações em inglês para esta planta é catchfly; ou por colibris, no caso das espécies da América do Sul. Hibridam facilmente, gerando flores com tons de rosa mais ou menos pálido. Gostam de rochas e prados secos, exibindo pétalas mais pequenas e um cálice mais insuflado nas regiões mais frias.

As das fotos, da espécie ibérica Silene scabriflora (scab'rum significa rugoso), foram vistas na serra de Pias e num bosquete da Murtosa. Reconhecemo-las pelas flores com cinco pétalas, de indentação vincada e recurvadas para trás (um corpo perfeito para um melódico assobio), no topo de um longo cálice de sépalas que lembra um pijama. As flores masculinas e femininas usam igual corte de cabelo, sendo difícil distingui-las sem paciente dissecação. É uma planta anual, dependente por isso da preservação do habitat onde prefere renascer.

Diz-se que algumas espécies de Silene (como a africana S. capensis, de flores brancas) têm, nas raízes, o dom de tornar mais vívidos os sonhos - clarividência que prudentemente desaparece com o despertar.

15/06/2009

É no Sabugal que os amigos se encontram


Carvalho (Quercus robur) em Golders Hill Park, Hampstead Heath, Londres

Falo naturalmente dos amigos das árvores; mas, mesmo para os que nunca antes se falaram, o encontro no Sabugal com essas amigas comuns, a 25 e 26 de Junho (já para a semana!), é o mais auspicioso prólogo para uma amizade a sério.

Melhor será contar a história desde o início, tentando dar-lhe forma intelígivel. Talvez no final se entenda por que está este carvalho britânico, enjaulado em benefício de uma velhice tranquila, encabeçando uma notícia sobre árvores em Portugal. Da terra anfitriã do anunciado evento e das árvores que lá vegetam ainda não tenho fotos; terei depois, mas já seria tarde para a notícia.

Desde 2007 que Miguel Rodrigues e Pedro Nuno Teixeira Santos (autor de A sombra verde) têm compilado um metódico registo das árvores monumentais do extremo sul do país, que vêm vertendo no blogue Árvores Monumentais do Algarve e Baixo Alentejo. Um trabalho dessa índole nunca está concluído, mas o Miguel e o Pedro quiseram alargá-lo a todo o país, tomando a iniciativa de fundar, com outros amigos, a associação Árvores de Portugal. Associação essa que, ressalve-se, tem objectivos mais gerais, como o de intervir na defesa e promoção da árvore, numa altura em que a Sociedade Portuguesa de Arboricultura, que teria naturalmente essa função, se encontra paralisada.

Mas é o amor pela árvore multissecular que motiva a primeira iniciativa pública da nova associação: justamente o seminário sobre «Árvores Monumentais - Importância e Conservação», a decorrer no Sabugal em 25 e 26 de Junho. O programa completo do evento pode ser aqui consultado, mas há que ressaltar as presenças do Professor Jorge Paiva, do Eng.º Campos Andrada (da Autoridade Florestal Nacional, que mantém o registo português das árvores de interesse público), de Ted Green (o maior activista na defesa das árvores históricas da Grã-Bretanha) e de Susana Domínguez Lerena (co-autora do notável livro Árboles, Leyendas Vivas). (Admito que também lá farei uma mini-apresentação deste livro.) A coroar o programa, na manhã do dia 26, há uma visita aos castanheiros notáveis do concelho do Sabugal; os mesmos que irão ilustrar a reportagem do evento quando aqui a publicarmos.

Acredito que os amigos das árvores, se puderem fazê-lo, não deixarão de ir ao Sabugal. É no interior, é longe, a viagem é demorada... Há tudo isso, mas falemos com franqueza: que piada teria um evento destes em Lisboa ou no Porto? Quantas árvores conhecemos nessas cidades comparáveis ao carvalho de sua majestade aí em cima? Confiemos no Sabugal para mostrar aos ilustres visitantes estrangeiros, com uma pitada de imerecido orgulho, que em Portugal também há árvores realmente monumentais.

P.S. Carregue aqui para fazer a sua inscrição. Para mais informações contacte:

Nélia Vasco, tel.: 271 75 10 42
Laura Alves, tel.: 96 10 13 552
Fax: 271 753 408

14/06/2009

À flor da terra


Rosa, Parque do Arnado (Ponte de Lima)

As fotos em papel, guardadas silenciosas em camisas transparentes, entretêm-se na escuridão concertando um novo passado. A antiguidade, crêem, licencia este devaneio. Enquanto não atingem a consistência do farelo, temem o olhar que rapina as lembranças malbaratando-lhes o enredo. As digitais, pelo contrário, são enterradas em vida e aspiram por um nome, um número grande que seja, que as salve do esquecimento. Não são fiéis a nenhuma história, permitem mesmo a multiplicação de versões, cores e conteúdos, e conheceriam a eternidade se não fossem reféns da memória: das muitas mortes, cabe-lhes a repentina, que as reduz a nada.

Registos que são da insuficiência das palavras, as fotos justificam este recomeço. De novo meninos, levados pela mão do laço antigo, alimentaremos o natural enlevo por plantas até que sobre apenas restolho.