10/01/2011

Morte e vida da cervina



Asplenium scolopendrium L. [sinónimo: Phyllitis scolopendrium (L.) Newman]

E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina.

João Cabral de Melo Neto,
Morte e vida severina (1955)

Este poderia ser o n-ésimo fascículo do Tratado Botânico das Línguas, e o segundo a debruçar-se sobre fetos, mas decidimo-nos por uma abordagem mais pungente. Antes, porém, cumpre-nos denunciar que o Asplenium scolopendrium roubou o nome comum por que é conhecido, língua-cervina, ao Elaphoglossum, um feito possibilitado pela deplorável ignorância do grego clássico que por aí grassa.

A língua-cervina é incomum entre os fetos europeus por as suas folhas (ou frondes) não serem divididas; são antes alongadas, capazes de atingir uns 30 a 50 cm de comprimento, e apresentam base cordiforme, ápice estreito e margens onduladas. É um feto sempre-verde que vive em bosques, muros sombrios, margens de riachos e mesmo em paredes de poços e de grutas. Frequente nos Açores e na Madeira, a sua área de distribuição estende-se a quase toda a Europa, e ainda ao norte de África e à América do Norte. Em território continental português tem ocorrência registada no Alto Alentejo, Ribatejo, Estremadura, Beiras, Douro Litoral e Minho. Receamos, contudo, que no nosso país a língua-cervina esteja em regressão acelerada, sobretudo (mas não só) por causa da destruição dos habitats que lhe são propícios.

Ao contrário do que a Câmara Municipal de Coimbra alega neste texto, já não existe língua-cervina no Jardim da Sereia. Um outro lugar de onde ela desapareceu é o Parque Biológico de Gaia. Uma visita recente ao herbário da Faculdade de Ciências do Porto revelou-nos várias localizações antigas da planta: algures em São Pedro da Cova (Gondomar); num muro próximo do rio Leça em Guifões (Matosinhos); na praia da Memória (Matosinhos); no Areinho de Oliveira do Douro (Gaia); num rego junto ao cemitério de Lordelo (Porto).

Um herbário, já se sabe, é um cemitério de plantas; e, como todos os cemitérios, dá testemunho de vidas passadas. O triste é que, com o vendaval urbanístico que avalassou o Grande Porto nas últimas décadas, dessas vidas talvez não tenha ficado qualquer descendência. Numa tentativa de combater tão desgastante pessimismo, lançamos o

PRIMEIRO GRANDE CONCURSO DIAS COM ÁRVORES

O concurso está aberto até final de 2011, e o prémio é um exemplar do livro A Árvore de Natal do Senhor Ministro (veja aí na coluna à esquerda). Serão contempladas — com um livro cada uma — as dez primeiras pessoas que descubram, nos concelhos de Espinho, Gaia, Porto, Matosinhos, Maia, Gondomar ou Valongo, alguma população silvestre de língua-cervina (Asplenium scolopendrium). As regras são as seguintes:
  1. O concorrente deverá enviar, para o endereço dias.com.arvores(at)sapo.pt, um comprovativo fotográfico da sua descoberta, indicando a localização exacta da(s) planta(s) para que o júri (constituído pelos autores deste blogue) a(s) possa visitar. O júri comunicará aos concorrentes, no prazo de uma semana, se a sua descoberta é válida – e, caso o seja, entregará o prémio logo de seguida.
  2. Em nenhum caso, sob pena de desclassificação, deverá o concorrente arrancar uma planta ou parte dela.
  3. Se dois ou mais concorrentes indicarem a mesma localização, só será premiado o primeiro deles.
  4. Se o mesmo concorrente descobrir duas ou mais populações diferentes, será premiado com dois livros. O segundo livro é um exemplar da 3.ª edição de À sombra das árvores com história. Para efeitos do concurso, duas populações consideram-se diferentes se estiverem afastadas uma da outra pelo menos 500 metros.
  5. Todos os vencedores serão publicitados no Dias com Árvores.
  6. Das decisões do júri não cabe recurso.

12 comentários :

Lísia disse...

Viva, desconheço realmente a distribuição e a ocorrência de Phyllitis scolopendrium nos locais referidos. Posso apenas afirmar que ultimamente, encontrei em Espinhal (Penela)alguns exemplares e no Buçaco tb existe!
O nome actualmente aceite é Phyllitis scolopendrium sendo Asplenium scolopendrium uma sinonímia (consultar em http://www.floraiberica.es/floraiberica/texto/pdfs/01_020_02_Phyllitis.pdf)
Se passar por esses locais vou tentar averiguar....
Abraço

Paulo Araújo disse...

Obrigado, Lísia.

De facto, a restrição geográfica é propositada, pois noutros lugares do país a língua-cervina não deve ser assim tão difícil de encontrar. Para nós seria muito bom confirmar que ela ainda existe no Grande Porto. Mas é uma óptima notícia saber que ela também vive na floresta encantada do Buçaco.

Quanto à sinonímia, na legenda da foto tive o cuidado de colocar a designação alternativa de Phyllitis scolopendrium. Tenho alguns livros (como The Botanical Garden, de Roger Phillips & Martyn Rix), talvez posteriores a esse volume da Flora Ibérica, onde se diz que certos géneros (como Phyllitis e Ceterach) foram reincorporados no género Asplenium. Mas, segundo a Wikipedia, poderá haver razões para desfazer essa mudança. Enfim, uma confusão. Eu prefiro Asplenium porque há outros fetos muito semelhantes (como o Asplenium nidus) que nunca, ao que sei, estiveram no género Phyllitis.

Abraço

Ponto Verde disse...

Excelente iniciativa. Parabéns.

GPC disse...

Muito bem! Bela iniciativa!

"Segundo a wikipédia"?!! Pelo amor de Deus! Tenham cuidado com as fontes: há coisas na wikipédia que fui eu que escrevi. E mais não digo.

Paulo Araújo disse...

Os artigos na Wikipédia de língua inglesa são em geral fiáveis e factuais. Esse para o qual faço atalho refere um estudo de 1999 no «American Fern Journal» sobre a filogenia da família Aspleniaceae. Não tenho razões para duvidar de que a Wikipédia reporta fielmente a conclusão do estudo (e que é a de haver razões científicas para reconhecer novamente o género Phyllitis).

ZG disse...

Penso que não é um feto super-raro... encontramo-lo nalguns locais... e parabéns pela excelente iniciativa!

Paulo Araújo disse...

Super-raro não é. Eu próprio já o vi em vários lugares. Nunca, porém, nos concelhos à volta do Porto, onde ele comprovadamente já existiu. Palpita-me que em Valongo, no vale do rio Ferreira ou nos fojos, não seja assim tão difícil, mas (talvez por falta de atenção) não o observei por lá.

Unknown disse...

Parabéns pela iniciativa, já dei uma ajuda na divulgação do concurso.

http://florestadointerior.blogspot.com/2011/01/primeiro-grande-concurso-dias-com.html

Boa continuação.

Ricardo Nabais

Paulo Araújo disse...

Muito obrigado pela ajuda, Ricardo. Talvez acabemos por estender o âmbito do concurso se não aparecer ninguém que tenha visto a língua-cervina no Grande Porto. Ou então lançamos uma busca de alguma outra planta mais ou menos rara sem essa restrição geográfica. Depois se verá.

Unknown disse...

Este feto existe a Sul de Espinho, mais concretamente nos concelhos de Estarreja e de Ovar. As fendas dos xistos de Arada, em locais muito húmidos, sob coberto arbóreo são o habitat preferido da espécie. Havia várias populações. A maior que conheço está em regressão devido à recuperação de caminhos e muros antigos. Outra população desenvolvia-se num poço de paredes em tijolo!!! Há anos que não a visito. Talvez ainda se mantenha por lá...

Unknown disse...

Afinal ainda existem muitos indivíduos aqui na minha região! As populações estão muito maiores do que há 20 anos atrás, contudo em áreas muito localizadas e vulneráveis à erosão e à desflorestação. Há indivíduos lindíssimos e saudáveis a dispersar milhões de esporos, pelo menos por enquanto...

Paulo Araújo disse...

Obrigado, Rui Soares, por tão preciosa informação. (Para que conste, Rui Soares é o primeiro premiado do nosso concurso, e vai receber 2 ou 3 livros. Brevemente faremos o anúncio formal e divulgaremos fotos das populações de língua-cervina por ele descobertas.)