28/02/2011

Bloomsbury


Woburn Square

Bury é palavra do inglês antigo que designa fortificação ou castelo; corresponde ao borough do inglês moderno, numa evolução que atesta como modernizar pode não ser simplificar. Da mesma raiz latina nasceu o burgo português. Chegamos assim a uma possível explicação do topónimo que dá título a este texto: Bloomsbury seria Burgo das Flores ou talvez Burgo em Flor. O inglês é porém uma língua traiçoeira que tem fraco comércio com a lógica: aquele bloom não resultou de nenhuma flor, mas sim (de acordo com a Wikipedia) do desgaste a que o uso dos séculos submeteu o antropónimo Blemond.

Sucede no entanto que a interpretação florida do nome Bloomsbury, mesmo tendo por base um equívoco fonético, acaba por ter uma contrapartida bem real. Bloomsbury é o bairro de Londres onde as praças ajardinadas são de acesso livre, e não — como sucede em Chelsea, South Kensington, Belgravia e em inúmeros outros bairros da capital britânica — restrito aos privilegiados moradores dos respectivos quarteirões. É pois um lugar aberto em que os jardins são franqueados a toda a gente: trabalhadores locais no intervalo do almoço, estudantes do vizinho University College, indígenas desocupados, a massa heterogénea e sempre renovada de turistas. A informalidade é regra quase compulsiva: nos dias de Verão são muitos mais os que se estendem na relva do que aqueles que se acomodam num banco de jardim.

Esse anti-elitismo de Bloomsbury vem de longe. Aprendemos com os romances vitorianos que morar em Bloomsbury, no século XIX, não era propriamente um sinal de distinção, apesar da imponência marcante do Museu Britânico. Podiam viver no bairro pequenos proprietários ou profissionais medianamente bem sucedidos, à mistura com uns tantos intelectuais, mas a aristocracia, tanto a de sangue como a financeira, nunca escolheria lá morar. Em Bloomsbury trabalhava-se e estudava-se; os lugares da diversão requintada, com a épica saison estival de bailes e jantares de gala, eram bem outros.

Além de ter registado para a posteridade como era a Bloomsbury novecentista, a literatura ajudou à transformação do lugar ao dar-lhe uma imorredoura aura cultural. O famoso grupo de Bloomsbury que gravitou à volta de Virginia Woolf reunia-se nas casas que rodeiam os mesmos jardins que hoje podemos visitar. Muitos desses edifícios foram desde então ocupados pela Universidade de Londres; Gordon Square e Woburn Square (foto acima), talvez as mais bonitas e pacatas praças de quantas existem no bairro, frequentadas que foram por Virginia e pelo seu marido Leonard, são também hoje património universitário.

Talvez nada haja de espectacular nos jardins que preenchem essas praças. O que há é uma normalidade quotidiana que preza a sombra das árvores e faz do sossego e do bom gosto uma componente essencial da vida urbana. Nesses jardins há sempre flores, e não apenas em arranjos formais: alguns recantos (especialmente em Gordon Square) parecem retalhos de natureza que escaparam incólumes ao cerco da cidade.

Antes de avançarmos pela Primavera dentro, fazemos uma pausa citadina: as flores e árvores que esta semana nos visitam vêm todas das praças de Bloomsbury. Para começar temos plátanos, uma ameixeira-de-jardim, arbustos diversos, e Gandhi em Tavistock Square rodeado por tulipas.


25/02/2011

Navegar é preciso


Punta Carreirón, Ilha de Arousa (Pontevedra, Galiza)

Mas, meus senhores, antes de tudo, nós não temos marinha.

A Pedro Nunes está em tal estado que, vendida, dá uma soma que o pudor nos impede de escrever. O Estado pode comprar um chapéu no Roxo com a Pedro Nunes – mas não pode pedir troco. O Mindelo tem um jeito: é andar de lado; e uma teima – deitar-se. No alto mar, todas as suas tendências, todos os seus esforços são para se deitar. Os oficiais da marinha que embarcam neste vaso fazem disposições finais. O Mindelo é um esquife – a hélice. A Napier saiu um dia para uma possessão: chega, e não pode voltar. Pediu-se-lhe, lembrou-se-lhe a honra nacional, citou-se-lhe Camões, o sr. Melício, todas as nossas glórias. A Napier insensível não se mexeu. (...) Têm um único mérito estes navios perante uma agressão estrangeira: impor pelo respeito da idade. Quem ousa atacar as cãs de um velho?

Tem-se tentado muitas vezes introduzir nas fileiras destes vasos decrépitos alguns navios novos, robustos e sanguíneos. Tentou-se primeiro comprá-los. Sucedeu o caso da corveta Hawks: era esta corveta uma carcassa britânica, que o almirantado mandava vender pela madeira – como se vende um livro pelo peso. Por esse tempo o governo português – morgado de província ingénuo e generoso – travou conhecimento com a Hawks. Inexperiente com corvetas, achou-a nova, virgem, distinta, forte, – comprou-a. E quando mais tarde, para glória da monarquia, quis usar dela, a Hawks com um pudor abjecto – desfez-se-lhe nas mãos. (...)

Tentou-se então construir em Portugal. Sabia-se que o arsenal é uma instituição verdadeiramente informe: nem oficinas, nem direcção, nem instrumentos, nem engenheiros, nem trabalho, nem organização. Tentou-se, todavia – e fez-se nos estaleiros a Duque da Terceira. Gastaram com ela 156 contos. Foi a Inglaterra meter máquina, mas quando chegou – oh maravilha das dissoluções orgânicas! – a jovem Duque da Terceira, da idade de meses, tinha o fundo podre! Nova tentativa. (...) Fundo podre! O arsenal perdia a cabeça! Aquela podridão começava a apresentar-se com um carácter de insistência verdadeiramente anti-patriótica! Os engenheiros em Inglaterra já não se aproximavam dos navios portugueses senão em bicos de pés... e com lenço no nariz. (...)

O arsenal, humilhado no género navio, começou a tentar a especialidade lancha. Fez uma a vapor. Lança-se ao Tejo, alegria nacional, foguetes, bandeirolas, e a lancha não anda! Dá-se-lhe toda a força, geme a máquina, range o costado, e a lancha imóvel! Mas de repente move-se: alegria inesperada e desilusão imediata! A lancha recuava: tinha-se erguido uma brisa que a repelia. Em todas as experiências a lancha recuava com extrema condescendência: brisa ou corrente tudo a levava para trás. Para diante não ia. Pegava-se. O arsenal tinha feito uma lancha a vapor que só podia avançar... puxada a bois. O país riu durante um mês.

O arsenal roeu a humilhação, e encetou a espécie caique. Ainda o havemos de ver, no género construção em madeira, cultivar... o palito!

Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, As Farpas (edição Principia, 2004)

24/02/2011

Urze pestanuda


Erica ciliaris L.

A Erica ciliaris comparece aqui hoje para completar a lição sobre urzes que gostam de água — embora esta urze, ao contrário da Erica erigena, seja capaz de suportar habitats comparativamente secos. Trata-se de uma planta versátil, que vive em solos ácidos sob influência atlântica, às vezes em areais, ocupando altitudes desde o nível do mar até aos 1800 metros. É comum em prados húmidos na companhia do tojo-molar (Ulex minor), mas não detém, entre as urzes, o exclusivo de compor o mosaico amarelo-rosa que costuma enfeitar os terrenos subturfosos. Tal tarefa é assumida a meias com a Erica tetralix, ou urze-dos-pântanos, que domina nas zonas montanas mas, tolhida pela especialização excessiva, tem uma distribuição mais restrita. Nos locais onde ambas as espécies ocorrem é comum elas hibridarem: o resultado do namoro é a Erica x watsonii, planta muito usada em jardinagem (aliás como as suas progenitoras) e com mérito certificado pela Royal Horticultural Society.

A Erica ciliaris, que deve o seu nome aos pêlos (ou pestanas) que pontuam a margem das folhas e das sépalas, distingue-se da E. tetralix pela «corcunda» das flores, que além do mais não têm as pétalas recurvadas na ponta a fazerem uma «gola». Outra diferença é que as flores da E. ciliaris se dispõem em espigas unilaterais, enquanto que as da E. tetralix se agrupam em cachos no topo das hastes. Tanto uma como outra são arbustos rasteiros, de não mais que 40 a 50 cm de altura. O filhote das duas (Erica x watsonii) é também uma planta miniatural, com flores iguais às da E. ciliaris e folhas em verticilos de quatro como as da E. tetralix.

Que as urzes, essas plantas vadias, tenham conquistado lugar de estimação nos jardins deve-se à abundância da floração e ao longo período em que ela decorre. A Erica ciliaris não é excepção, florescendo com maior ou menor intensidade de Maio a Outubro. Fornece um fundo estável de rosa intenso a que o artista-jardineiro vai juntando outras plantas e outras tonalidades como quem aplica judiciosas pinceladas. Mas isso, nem valeria a pena acrescentá-lo, só acontece nos países onde os jardins têm flores.

23/02/2011

Verónica dos bosques


Veronica montana L.

Nomes vulgares: wood speedwell
Distribuição global: da Europa ocidental até à Sibéria, e ainda o norte de África; em bosques húmidos e sombrios, sobre solos ricos
Distribuição em Portugal: Minho e Beiras (muito rara)
Época de floração: Março a Julho
Data e local das fotos: Abril de 2009, Mata da Margaraça (único local da espécie na Serra do Açor)

22/02/2011

Amoricos


Agrimonia eupatoria L.

As designações desta planta são um rol de mal-entendidos. Chamam-lhe amor-pequeno sendo ela bem maior do que um amor-perfeito; ou agrimónia, que deriva, diz-se que por engano, do grego argemon (catarata), apropriando-se do mérito de outras plantas na cura deste mal dos olhos. Contudo, segundo a Flora Ibérica, esta herbácea também tem uso medicinal por as suas folhas e flores serem ricas em taninos e óleos com acção desinfectante. Para gente saudável, produz tinta amarela. Segundo William T. Stearn, o vocábulo eupatoria celebra Mithridates VI Eupator (132-63 a.C.), rei de Pontus (hoje na Turquia) e inimigo temido de Roma. De memória prodigiosa, que Jorge Luis Borges evocou em Funes el memorioso, esta figura lendária inspirou A. Dumas, A. E. Housman, D. L. Sayers, Mozart e Scarlatti.

Erva perene e rizomatosa, esta rosácea tem folhas compostas (imparipinadas) com folíolos de tamanhos diversos e margens serradas. Detecta-se facilmente entre Maio e Outubro porque algumas espigas florais abeiram-se dos dois metros de altura. É quase cosmopolita, preferindo soutos, orlas de bosque e pastos húmidos. As flores, hermafroditas e sem perfume, de uns 8 mm de diâmetro, têm cinco pétalas amarelas a rodear numerosos estames, e igual número de sépalas verdes que mais tarde se curvarão para formar o fruto. É ele um ouriço (os ingleses chamam-lhe bur) em forma de pião, contendo uma a duas sementes, dotado de uma crina de cerdas para facilitar a dispersão.

Género com cerca de quinze espécies, três europeias, conta na Península Ibérica com duas, a A. procera (alta) e A. eupatoria — que, nos locais onde coabitam, dão por vezes origem a híbridos em geral estéreis.

21/02/2011

Arruda da pedra partida



Asplenium ruta-muraria L.

Foi motivo de regozijo darmos de caras com este feto entre as fissuras das rochas onde foi esculpido o portentoso anfiteatro da Fórnea. Em Portugal, a arruda-dos-muros (Asplenium ruta-muraria) pouco se vê, e o maciço calcário do centro-oeste é talvez a zona do país que concentra maior número de populações; mas mesmo por lá nunca ela chega a ser vulgar. O seu pequeno tamanho e a especificidade do seu habitat fazem da busca uma prazenteira caça ao tesouro: sem ser trivial observá-la, é quase certo que a paciência há-de por fim ser gratificada. Bem mais difícil — embora mais compensador, visto que dá direito a prémio e tudo — parece ser encontrar a língua-cervina nalgum município do Grande Porto.

Noutros países europeus, um botânico amador que fizesse idêntica descoberta talvez se limitasse a encolher os ombros. A raridade não é uma medida universal, e o que é escasso num país pode ser abundante nos países vizinhos. Distribuindo-se por grande parte do hemisfério norte — Eurásia desde a Península Ibérica até à China, metade oeste da América do Norte, Marrocos —, a arruda-dos-muros é comum na Europa (mais no norte do que no sul) mas tida como vulnerável ou ameaçada nos EUA. Como indicam os seus nomes, ela não se limita a colonizar fendas de rochas calcárias, mas também aparece em muros, sobretudo os que levaram uma camada de argamassa.

As frondes da arruda-dos-muros são glabras, de cor verde-baça, atingem não mais que 15 cm de comprimento, e aparecem dispostas em tufos densos e emaranhados. Têm um formato peculiar, com três a cinco pares de pinas que se dividem, por sua vez, em duas a cinco pínulas de recorte romboidal. Com algum esforço de abstracção, concede-se que elas têm alguma semelhança com a folhagem da arruda-comum (Gruta graveolens), o que talvez explique as designações, tanto a científica como a vernácula, deste feto fissurícola.

(Fissurícola é uma daquelas palavras bonitas, não dicionarizadas, que os botânicos gostam de usar. Não é preciso ser-se muito perspicaz para lhe adivinhar o sentido. E, para dar bom uso ao vocábulo, assinalamos que na primeira foto aparece também o Ceterach officinarum, um feto não menos fissurícola do que o Asplenium ruta-muraria.)

11/02/2011

O Minho tem o romanesco da árvore e o romance da família


Rio Arado, Gerês

O Minho lucra muito, visto assim de passagem, na imperial de uma diligência, lá muito no galarim do tejadilho, onde as moscas não se álem a ferretoar-nos a testa e a sevandijar-nos os beiços convulsos de lirismo.

Viu V. Ex.ª perfeitamente o Minho por fora: as verduras ondulando nas pradarias, os jorros de água espumando na espalda dos outeiros, os fragoedos às cavaleiras dos milharais, a amendoeira a florejar ao lado do pinheiral bravio, as ruínas do paço senhorial com os seus tapetes de ortigas e guadalmecins de musgo ao pé da chaminé escarlate e verde do negreiro a golfar rolos turbinosos de fumo indicativo de panelas grandes e galinhas gordas, lardeadas de chouriços. Simultaneamente, ouviu V. Ex.ª o som da buzina pastoril ressonando a sua longa toada nas gargantas da serra; viu os espantadiços rebanhos alcandorados nos espinhaços dos montes, e os rafeiros à ourela das estradas com os focinhos nas patas dianteiras, orelhas fitas e olhar arrogante. Reparou decerto na pachorra estóica do boi cevado, que parece estar contemplando em si mesmo a metempsicose em futuro cidadão de Londres mediante o processo do bife. Tudo isto, que é a forma objectiva do Minho romântico, viu V. Ex.ª. (...)

Mas o que D. António da Costa não teve tempo de ver e apalpar foi o miolo, a medula, as entranhas românticas do Minho; quero dizer – os costumes, o viver que por aqui palpita no povoado destes arvoredos onde assobia o melro e a filomela trila. (...)

É neste meio que eu me abalanço a esgaratujar novelas.

Camilo Castelo Branco, O Comendador (Novelas do Minho, 1875)

10/02/2011

Antes que chegue a Primavera



Erica erigena R. Ross

As urzes fazem parte daquela matéria vegetal indiferenciada mas perigosamente inflamável a que alguns chamam biomassa. Ao se amalgamar toda a riqueza do mundo vegetal num único substantivo de conotação claramente desdenhosa ocasionam-se atitudes como a daquele responsável militar que mandou cortar muitos hectares de pinhal em São Jacinto. Alegou ele que a operação mais não foi que uma limpeza rotineira da biomassa em excesso. De facto, a biomassa não tardará a recuperar, mas, em vez de ser composta por pinheiros, salgueiros e camarinhas, sê-lo-á exclusivamente por acácias. Para o general em guerra contra a natureza não fará qualquer diferença.

Os montes hoje em dia forrados a tojo e urze tiveram, noutras eras, uma cobertura arbórea que a ocupação humana reduziu a quase nada. Esses matos representam a primeira etapa do processo de regeneração natural; se cessarem a pastorícia com as suas queimadas periódicas, se regredirem todas as actividades humanas que intervêm activamente na paisagem, então as árvores regressarão pouco a pouco aos montes de onde foram expulsas. Como isso não acontecerá tão cedo, a vegetação pioneira acaba por assumir carácter permanente. No entanto, é já possível em certas zonas do interior do país testemunhar essa sucessão ecológica com o avanço progressivo dos bosques de carvalho-negral. Talvez seja consolador saber que, quando nós desaparecermos, desaparecerão também as urzes dos montes.

Só que há urzes e urzes. Pelo porte avantajado (até 2 metros de altura) e pela coloração rosada das flores, a Erica erigena até se poderia confundir com a Erica australis. Acontece que as duas dificilmente se encontram lado a lado em ambiente natural: a E. australis coloniza encostas secas de norte a sul do país; a E. erigena, por contraste, carece de humidade quase permanente no solo, e em Portugal, onde se encontra só no litoral centro e numa pequena faixa entre o Alentejo e o Algarve, está restrita a margens de lagos e de cursos de água a baixa altitude. As plantas que fotografámos, e que vivem junto à lagoa da Vela, em Quiaios, são bem exemplificativas dessa preferência.

O habitat é pois um indicador importante quando se trata de identificar urzes. Convém, no entanto, realçar alguns detalhes morfológicos. As folhas da Erica erigena, que se agrupam em verticilos de quatro, têm as margens dobradas de tal modo que só deixam entrever uma estreita faixa da face inferior. E as flores, com cerca de 7 mm de comprimento, são também especiais: o cálice é formado por quatro sépalas rosadas, pontiagudas, e as anteras são escuras, emergindo timidamente do tubo da corola. Talvez seja proveitoso ao leitor comparar estas flores com as de outras urzes já aqui antes mostradas.

Refira-se, a concluir, que a Erica erigena, espontânea na Península Ibérica, França e Irlanda (erigena significa "irlandesa"), é quase sósia da Erica carnea, uma urze alpina e centro-europeia que não ocorre em Portugal nem em Espanha, mas que é por vezes vendida em centros de jardinagem. As duas urzes têm boas qualidades ornamentais e partilham a virtude de florir no Inverno.

09/02/2011

Azul da Pérsia


Veronica persica Poir.

Nome vulgar: verónica-da-Pérsia
Distribuição global: possivelmente nativa do Cáucaso e do sudoeste asiático, encontra-se hoje espalhada pelo mundo; prefere terrenos húmidos e nitrificados, e é habitual em jardins e hortas
Distribuição em Portugal: presente em todo o território nacional (continente e ilhas)
Época de floração: quase todo o ano
Data e local da foto: Parque Biológico de Gaia, Abril de 2007

08/02/2011

Erva-das-nuvens



Sanicula europaea L.


Sanicula azorica Guthn. ex Seub.

The Greeks were right when they made Apollo the god both of imagination and of sanity; for he was both the patron of poetry and the patron of healing. G.K. Chesterton (Orthodoxy, 1908)

Insanos, quase não fotografámos esta herbácea ao vê-la tão pequenina e com inflorescências que nos pareceram de asterácea: capítulos de uma dezena de flores masculinas na periferia e uma ou duas flores hermafroditas ao centro. De facto, trata-se de umbelas: as flores exteriores, com cinco pétalas brancas de cerca de 3 mm de comprimento, são pediceladas e formam um "guarda-chuva" aberto. E afinal esta planta é parente da cenoura (Daucus carota L.), da salsa (Petroselinum sativum L. Mill.) e da cicuta (Conium maculatum L.), e útil como as duas primeiras: a infusão das folhas, com aroma a coentro, é ainda hoje recomendada como antiséptico e expectorante.

A sanícula é uma planta perene, rizomatosa, que requer prados húmidos e sombrios em bosques de montanha, mas não é caprichosa quanto ao substrato. Da Península Ibérica, prefere o norte — e na serra do Açor, onde a encontrámos, só ocorre na Mata da Margaraça (a julgar pelo livro A flora da Serra do Açor, de Paulo Cardoso da Silveira). As folhas, quase todas em ramalhete basal e com pecíolos curvados que nem sachos, são palmadas com cinco a sete lóbulos. A floração decorre entre Abril e Julho e os frutos são cerdosos (vêm-se dois numa das fotos).

O género Sanicula abriga duas espécies europeias, a S. europaea (da Europa, Ásia Menor e norte de África) e a S. azorica, um endemismo açoriano conhecido como erva-do-capitão, de habitats permanentemente encharcados (a chamada zona das nuvens), presente em poucos locais e quase sempre em populações pequenas. Diferem pouco na fotografia, mas de facto a açoriana é muito mais alta e tem folhas maiores com dentes aguçados nas margens.

Sanicula é um diminutivo do latim sanu, que alia o são ao sisudo.

07/02/2011

Afinidades vegetais




Dryopteris affinis (Lowe) Fraser-Jenkins

Ninguém se lembraria de desvalorizar os carvalhais alegando que carvalhos há muitos; do mesmo modo, a abundância não retira lustre ao grande feto que protagoniza o episódio de hoje. O Dryopteris affinis, que dá pelo nome vernáculo de fentilha, vive justamente em bosques caducifólios, em locais frescos ou próximos de linhas de água, e notabiliza-se pelas suas frondes arqueadas, de cerca de 1 metro de comprimento, dispostas em forma de volante — não o volante dum automóvel, mas o projéctil usado no badminton. A sua presença em carvalhais e soutos na metade norte do país é indispensável para compor a atmosfera solene e misteriosa desses lugares. Um bosque não é uma plantação de árvores emergindo como postes de um chão nu; há que preencher os intervalos entre os troncos, e entre as copas e o solo, para criar um habitat tridimensional que proporcione refúgio e sustento a animais e plantas. As fentilhas fazem parte desse equilíbrio, ocupando o patamar intermédio entre as copas elevadas e as vidas rastejantes.

As hastes da fentilha (às quais deveríamos mais correctamente chamar ráquis) estão recobertas por escamas castanho-douradas que dão às frondes embrionárias uma aparência de bengala de ricaço. Esse revestimento permite diferenciá-la de uma espécie semelhante, mas menos comum, o feto-macho (Dryopteris filix-mas), que além do mais tem o ápice das pínulas mais arredondado e um menor número de indúsias (membranas que protegem os esporângios) em cada pínula.

Vendo bem, identificar a Dryopteris affinis é tarefa ao alcance de qualquer amador atento. Insatisfeitos com essa democratização da botânica, os profissionais resolveram complicar o assunto a ponto de fazerem dele coutada de especialistas. Assim, a Flora Ibérica assinala nada menos que três subespécies de Dryopteris affinis; e, dentro de uma delas, distingue ainda duas variedades. Alguém muito mais habilitado do que nós escreveu que essas subespécies e variedades «são de difícil distinção, tanto ao nível morfológico, ecológico como corológico». Manda pois a prudência que sigamos o exemplo desse autor, e não nos ponhamos com minúcias taxonómicas despropositadas. Registemos, ainda assim, que em Portugal (e, em particular, na serra do Gerês) estão assinaladas as subespécies affinis e borreri.

05/02/2011

Curso de Botânica 2011



A sexta edição do Curso de Botânica — Morfologia e Identificação é uma iniciativa da Sociedade Portuguesa de Botânica e terá lugar de 25 a 30 de Abril em Barrancos, no Parque de Natureza de Noudar. As inscrições já estão abertas e decorrem até 1 de Abril. O curso é eminentemente prático, inclui várias saídas de campo, e visa proporcionar aos formandos os conhecimentos básicos de morfologia vegetal para identificar a nossa flora espontânea. Eis os objectivos do curso:

  • Fornecer conhecimentos científicos práticos que permitam a identificação de plantas à lupa e no campo.
  • Adquirir as bases teóricas para a compreensão das estruturas morfológicas das plantas.
  • Desenvolver a prática na observação de material vegetal com recurso a instrumentos de observação.
  • Desenvolver a prática na utilização de chaves de identificação, uso de Floras e nomenclatura botânica.
Para mais informações, consulte esta página da Sociedade Portuguesa de Botânica.

04/02/2011

Fórnea


Serra dos Candeeiros

Como encontrar na floresta, quando se está perdido, a verdadeira casa? Eis o difícil. Encontrar casa na casa é para pessoas que se orientam bem, que têm bússola, que reconhecem o caminho já feito e o rosto das pessoas que se sabe que, em princípio, não são lobos que de noite gostem do seu pescocinho tenro.

Voltar a casa é fácil, basta não te enganares no caminho. Não voltar a casa é que é difícil: é necessário que não queiras reconhecer, outra vez, o caminho.

Gonçalo M. Tavares, Matteo perdeu o emprego (Porto Ed., 2010)

03/02/2011

Troca de estações



Euphorbia hyberna L.

É consolador verificar como certos equívocos ficam gravados em latim para a posteridade. Sabendo que Lineu e outros grandes cometeram não poucos lapsos, a nossa própria inépcia parece-nos não só inevitável como respeitosa e apropriada. Se os maiores tantas vezes falharam, seria de uma presunção intolerável arrogarmo-nos de infalíveis.

O epíteto hyberna que Lineu colou a esta eufórbia diz-nos que ela é de floração invernal. É sabido, porém, que a planta floresce de Abril a Junho, com um possível prolongamento até Julho (mês em que as fotos foram tiradas). Lineu publicou o seu Species Plantarum em meados do século XVIII; de então para cá, com a subida geral das temperaturas, é improvável que o calendário fenológico tenha sido retardado. Não há pois volta a dar-lhe: Lineu enganou-se ou foi enganado. Mesmo que ele (ao contrário de alguns dos seus sucessores) estivesse aberto a críticas e disposto a corrigir-se, as regras da taxonomia impunham (e ainda impõem) que o primeiro nome publicado de uma dada espécie tenha prioridade sobre todos os outros. A eufórbia-de-Inverno-que-floresce-na-Primavera ficou para sempre amarrada ao nome que Lineu lhe entendeu dar.

A Euphorbia hyberna é uma planta vivaz, com caules de uns 60 a 70 cm de altura, robustos, erectos e sem ramificações, e folhas sésseis de 7 a 10 cm de comprimento, glabras na face superior e algo penugentas no verso. Como todas as eufórbias, cada uma das suas inflorescências é composta por uma única flor feminina rodeada por numerosas flores masculinas reduzidas a estames; o conjunto, que se chama ciátio, fica alojado num cálice formado por duas ou mais brácteas. De cada ciátio podem emergir vários raios sustentando novos ciátios, num arranjo de bifurcações sucessivas a que os botânicos chamam pseudo-umbela (ver aqui e aqui). O que há de estranho nas plantas fotografadas é que essas bifurcações estejam ausentes, contentando-se cada uma delas em produzir um só ciátio. Sem ser um fenómeno inédito, o mais comum é que a Euphorbia hyberna exiba pseudo-umbelas semelhantes às das suas congéneres.

A Euphorbia hyberna, que prefere lugares húmidos ou sombrios acima dos 900 m de altitude, encontra-se distribuída por meia dúzia de países europeus: Irlanda, Grã-Bretanha, França (incluindo a Córsega), Espanha, Portugal e Itália (incluindo a Sardenha). Em Portugal aparece em Trás-os-Montes (serras do Gerês e da Nogueira) e na Beira Baixa (serra da Estrela). As populações geresianas são escassas e surgem nos confins orientais da serra, em vales de montanha sombreados por vidoeiros ou carvalhos-negrais.

02/02/2011

Verónica-de-folhas-longas


Veronica longifolia L.

Nomes vulgares: long-leaved speedwell, langblättriger ehrenpreis
Distribuição global: Europa, desde a Alemanha até à Rússia, em margens de rios e em prados alagadiços
Distribuição em Portugal: cultivada em alguns (raros) jardins
Época de floração (no seu habitat natural): Junho a Agosto
Data e local das fotos: Parque do Arnado, Ponte de Lima, Novembro de 2007

01/02/2011

Vidas breves & pequenas


Hornungia petraea (L.) Rchb.

Pensando bem, vale mais morrer já, morre-se agora muito tarde.
Vergílio Ferreira, Nítido Nulo (Portugália Ed., 1971)

De vida efémera, que se resume a uns dois meses, esta planta anual baixinha alheia-se da ruína que atinge as outras e poupa-se a reflexões filosóficas sobre o mundo transitório. Com esta sua existência fugaz, de que ficam apenas quatro sementes por cada flor, não tem havido tempo para lhe atribuírem um nome vernáculo em português. Em espanhol, conhecem-na por mastuerzo de peñas. São como penas as folhas coriáceas e indentadas, as basais arrosetadas com cerca de dois centímetros de comprimento, sésseis e raras as caulinares.

As flores agrupam-se em racimos no topo de hastes que não sobem além dos 15 cm. São arranjos de quatro pétalas brancas de um milímetro de diâmetro e quatro nectários minúsculos, envolvidos por quatro sépalas púrpura. Na foto da esquerda, pode ver-se um fruto castanho a nascer no centro de uma flor: trata-se de uma silíqua, isto é, de uma cápsula com duas câmaras separadas por um septo (como numa noz), cada uma com duas sementes.

Aprecia solos calcários em habitats soalheiros, e também — como indica o epíteto específico — muros e rochas (as tais peñas). Hornungia é um género pequeno, de três espécies. A H. petraea, a única que ocorre na Península (e que conta com duas subespécies; em Portugal só aparece a subsp. petraea, restrita à Beira Litoral e à Estremadura), é nativa da Europa, Ásia e Norte de África. A designação evoca o botânico e entomólogo alemão Ernst Gottfried Hornung (1795-1862).