04/03/2011

O rubor do sargaço


Cistus sp. [variedada cultivada — Russel Square]

Coimbra, 2 de Fevereiro de 1958 — Enquanto via as imagens — uma arte insuspeitada trazida à tona do grande deserto africano —, ia-me consolando com a ideia de que nem a própria natureza comete crimes perfeitos. Engole uma civilização, fica-se a rir com um riso saariano, e tudo parece arrumado. Mas às tantas, o olho insubmisso dum grafito espreita por debaixo das areias, e pronto: a tramóia descobre-se, os entendidos cavam, e patenteiam à incredulidade dos jurados o esqueleto da vítima devorada.

E isto dá esperança, parecendo que não. A certeza de que não há facto soterrado sem claridade futura, de que aparece sempre um caco dos acontecimentos a desafiar a curiosidade dos vindoiros, embora melancólica, é consoladora. Mesmo póstuma, adiada para o dia do juízo, a verdade sabe bem.

Miguel Torga, Diário (D. Quixote, 2010)

1 comentário :

Miguel disse...

Flor maravilhosa!