28/03/2011

Veludo reencontrado



Cosentinia vellea (Aiton) Tod. [sinónimo: Cheilanthes vellea (Aiton) F. Mueller]

João de Araújo Correia (1889-1985), o maior escritor duriense de sempre, deu o título Rio Morto a um livro de contos que publicou em 1973, explicando no prefácio que morto era como tinha ficado o Douro depois da construção das barragens. No lugar do caudal livre e impetuoso, sujeito ao capricho das estações, ficara uma sucessão pachorrenta e imutável de lagos atacados de obesidade. Araújo Correia não o diz, mas além da paisagem adulterada outros estragos de monta se poderiam enumerar, como o desaparecimento dos peixes migratórios e a destruição da vegetação de leito de cheia. De então para cá a flora duriense sofreu ainda os ataques dos agroquímicos e foi, em muitos lugares, sumariamente erradicada para a plantação de novas vinhas.

O que existia no Douro foi exaustivamente documentado nos anos quarenta do século passado, e repousa hoje nos herbários nacionais. Entre 1941 e 1943, por encomenda do Instituto do Vinho do Porto ao Instituto Superior de Agronomia (Lisboa), decorreu um Estudo fito-geográfico da região duriense, coordenado pelos botânicos João de Carvalho e Vasconcellos (1897-1972) e Francisco de Ascenção Mendonça (1889-1982). Mais ou menos pela mesma época, Arnaldo Rozeira (1912-1984), do Instituto Botânico da Faculdade de Ciências do Porto, levou a cabo um estudo independente que culminou na sua tese de doutoramento (de 1944) sobre a flora de Trás-os-Montes e Alto Douro.

Ao invés de Arnaldo Rozeira, que fez o seu próprio trabalho de campo, é pouco provável que João Vasconcellos e Francisco Mendonça tenham passado grandes temporadas no Douro a recolher espécimes para herborizar. Tal tarefa foi delegada numa equipa de recém-licenciados pelo ISA de que se destacava o jovem engenheiro agrónomo José Gomes Pedro (1915-2010). É graças a ele que temos hoje notícia de plantas que, em grande parte, já desapareceram dos locais onde ele as encontrou.

Enquanto não for construída uma auto-estrada que sobrevoe as encostas e ignore soberanamente as curvas e contracurvas do rio, o acesso ao Douro não será tão cómodo como às praias do litoral. Ainda assim, as estradas acidentadas e estreitas que hoje existem não têm comparação com as que existiam nos anos 40. Os nossos heróis botânicos usavam não o automóvel, mas sim burros ou cavalos, únicos meios de transporte capazes de vencer a aspereza dos caminhos. E as campanhas, que duravam meses, montavam quartel general nas aldeias da região.

O feto-de-veludo, ou Cosentinia vellea, foi uma das preciosidades que Gomes Pedro registou no Douro em 1941-42. É um feto de ambientes muito secos e ensolarados, com frondes até 30 cm, presente em Portugal numa dezena de lugares. O seu habitat são as fendas de rochas xistosas ou calcáreas viradas para sul. Na região do Douro, onde está restrito a uma faixa pouco acima do leito do rio, Gomes Pedro encontrou-o para os lados de Barca d'Alva e também no vale do Tedo, afluente da margem esquerda do Douro entre a Régua e o Pinhão. A população de Barca d'Alva, mais abundante, deve ainda hoje existir, mas não é crível que a do vale do Tedo tenha sobrevivido às convulsões da paisagem. De facto, e ao contrário do que sucede com Barca d'Alva, não nos consta que tenha havido no Tedo observações posteriores à de Gomes Pedro.

Barca d'Alva é demasiado longe para ir e vir do Porto no mesmo dia, e queríamos à viva força observar este feto. Se ele fora avistado no vale do Tedo, então também deveria frequentar a margem direita do Douro logo ali em frente. Nos sombrios taludes da margem esquerda seria perda de tempo procurá-lo.

As fotos são a prova de que o feto-de-veludo existe no Douro, junto à linha férrea, uma dezena de quilómetros a oeste da estação de Pinhão. Cremos que desde 1941 ninguém lhe punha a vista em cima, e esse é o nosso modo de celebrar a vida de José Gomes Pedro, botânico exemplar que morreu em 27 de Dezembro de 2010.


Bibliografia
1. António Luís Crespi, Sónia Bernardos, Adriano Sampaio e Castro — Flora da região demarcada do Douro — João Azevedo Editor, Mirandela, 2006
2. João do Amaral Franco, Maria da Luz Rocha Afonso — Distribuição das Pteridófitas e Gimnospérmicas em Portugal — Servico Nacional de Parques, Reservas e Conservação da Natureza, Lisboa, 1982

3 comentários :

Rafael Carvalho disse...

Duriense de coração e apaixonado pelo nosso mundo natural, gostei do que li!
Continuação de bom trabalho.

Paulo Araújo disse...

Obrigado, Rafael. O nosso trabalho é só passear de olhos abertos. Quem dera que todos os trabalhos fossem assim.

Unknown disse...

Em Barca d'Alva ainda lá estão, Paulo. Ou melhor mais para montante, nas barreiras xistosas da estrada Barca - Freixo de Espada à Cinta. Há também alguns exemplares (pouquíssimos) a crescer no vale da ribeira do Mosteiro, junto à estrada para Ligares... Os incêndios ameaçaram algumas colónias do Douro...