09/05/2011

Entre a serra e o mar


Romulea bulbocodium (L.) Sebastiani & Mauri


Romulea clusiana (Lange) Nyman

É sem dúvida um sentimento pouco original, mas ter o mar pela frente a perder-se no horizonte é uma boa ocasião para reflectir sobre a vaidade humana. Não a vaidade de conquistar distâncias e países, mas a de deixar obra que fique para a posteridade associada a um nome. No domínio da botânica, a grandeza de um autor afere-se pelo número de espécies novas que deixa registadas. Daí que seja grande a tentação de declarar que esta ou aquela variante de uma certa planta tem características suficientemente estáveis para ser guindada à categoria de espécie. Contudo, mesmo que tais propostas passem o crivo da avaliação pelos pares e apareçam em revistas científicas credíveis, não é certo que as novas espécies venham para ficar. Revisões posteriores publicadas em obras de referência como a Flora Ibérica acabam com muitas delas. E os estudos genéticos agora em voga têm provocado uma extinção em massa, não de espécies, mas de nomes de espécies.

João do Amaral Franco, autor da Nova Flora de Portugal, tinha uma fixação por armérias que o levou a (re)baptizar dezena e meia de espécies ou subespécies. De todo esse afã nomenclatural, a Flora Ibérica só aproveita um nome: Armeria beirana. Tudo o resto é diluído numa confusão de sinónimos. Nos rochedos da Boa Nova, onde os demais só viram a Armeria pubigera, Franco, que não reconheceu essa espécie, encontrou duas outras, que diferenciou pelo tamanho: A. langeana e A. parvula.

As romúleas fornecem um exemplo adicional, menos intricado, de nomes em perigo de abolição. As duas espécies acima fotografadas são, em princípio, fáceis de destrinçar, e há até livros que o fazem com grande clareza. A menos comum das duas, Romulea clusiana, fotografada na Boa Nova, é um endemismo ibérico exclusivo de locais costeiros: aparece na Galiza, no norte de Portugal e em Gibraltar. A Romulea bulbocodium prefere lugares mais elevados e está muito disseminada tanto em Portugal como em Espanha. As flores de uma e de outra são diferentes: só as da R. bulbocodium têm brácteas verdes e uma faixa central verde-amarelada no verso das três pétalas externas (que na verdade são sépalas). Mas há especificações do manual a que as plantas por vezes se recusam a obedecer: por exemplo, a mancha amarela na base das pétalas/sépalas deveria ser exclusiva da R. clusiana, mas os exemplares acima afixados de Romulea bulbocodium (da serra dos Candeeiros) não querem saber disso. Parece ser este um daqueles casos em que as duas espécies, tal como são descritas nos livros, representam apenas os extremos de um intervalo de variação contínuo. A R. clusiana estaria assim condenada a desaparecer como espécie independente, não fosse a Flora Ibérica, por uma vez patriótica, fazer finca-pé deste endemismo ibérico. O capítulo ainda está em rascunho, mas oxalá o autor não mude de ideias na versão definitiva.

Então é assim a Ciência? — pergunta o leitor confundido. Uma espécie existe se alguns especialistas influentes estiverem de acordo em que ela existe, mesmo que outros especialistas não menos conceituados pensem de outro modo? Ao que isto nos levaria.

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