29/11/2011

Imposturas vegetais

Marsilea hirsuta R. Br. [= Marsilea azorica Launert & Paiva]
Quanto mais alto se sobe, maior é a queda: eis um dito que se aplica a usurpadores ou vigaristas apeados no auge da carreira, mas que parece inapropriado quando se fala de plantas ou de bichos. No entanto, plantas e bichos também podem cair em desgraça. Na Austrália, coelhos e gatos, que tanta gente acarinha como animais de estimação, são alvo de impiedosas campanhas de extermínio por se terem reproduzido descontroladamente em ambientes naturais. E, aqui ou na Austrália ou em muitas outras paragens, são inúmeras as plantas introduzidas como ornamentais que se transformaram em pragas de impossível erradicação. Com a consciência gradual dos estragos que as espécies exóticas, animais ou vegetais, podem causar, a nossa escala de valores alterou-se: a «beleza» das mimosas (Acacia dealbata) não nos deve impedir de reconhecê-las como árvores daninhas e indesejáveis no nosso país.

Nada disto nos preparou para a revelação de que a Marsilea azorica, um raríssimo endemismo açoriano de que se conhecia uma única população em todo o arquipélago (na Terceira), é afinal uma planta exótica e potencialmente invasora. De seu verdadeiro nome Marsilea hirsuta, é originária da Austrália e terá chegado à Terceira por via dos EUA, onde, no estado da Florida, se tem vindo a comportar como colonizadora agressiva de ecossistemas aquáticos. Foram os botânicos Hanno Schaefer, Mark A. Carine e Fred J. Rumsey, em artigo científico acabado de publicar (disponível aqui), que desmascararam a pretensa Marsilea «azorica».

É verdade que a singularidade da distribuição deste feto, encontrado nos Açores pela primeira vez em 1971 e descrito como uma nova espécie, endémica do arquipélago, em 1983, tinha já suscitado a estranheza de alguns botânicos. Vale a pena reproduzir o comentário que Carlos Aguiar aqui deixou em Dezembro de 2010: A distribuição desta planta nos Açores é surpreendente: uma lagoa na berma de uma estrada movimentada, na ilha Terceira. Não me surpreenderia que um dia alguém descobrisse que se trata de um neófito de origem neotropical.

Apesar das dúvidas em surdina, a Marsilea «azorica» sempre recebeu as maiores honrarias. Foi incluída na lista vermelha da IUCN com o estatuto de espécie em perigo crítico; e, no livro Flora Vascular dos Açores — Prioridades em Conservação, de Luís Silva et al. (edição Amigos dos Açores, 2009), aparece em primeiro lugar entre 90 espécies, como aquela cuja conservação é mais prioritária.

Tudo galardões de que a australiana Marsilea hirsuta não tardará a ser despojada. Contudo, ficam ainda muitos genuínos endemismos açorianos de que importa cuidar. O mais ameaçado é talvez o Myosotis azorica, em vias de extinção nas Flores (o Corvo é a única outra ilha onde ele ocorre) por causa dos rebanhos de cabras devoradoras que os serviços da Secretaria Regional do Ambiente se recusam a controlar.

Deparia petersenii (Kunze) M. Kato [= Diplazium allorgei Tardieu]
Vem a propósito deslindar uma história algo semelhante envolvendo outro feto colectado nos Açores. Em Dezembro de 1938, foi publicado, na revista Notulae Systematicae (vol. VII, fasc. 3), um artigo de Tardieu-Blot com o título «Sur un Diplazium des Açores» [clique no título para ler o artigo], descrevendo uma nova espécie a que a autora chamou Diplazium allorgei. A confusão, de acordo com Schaefer e seus co-autores, só seria desfeita quatro décadas mais tarde (em 1975 ou 1977), quando W. A. Sledge revelou, na Fern Gazette, que o hipotético endemismo açoriano era indistinguível da asiática Deparia petersenii.

A história, contudo, não se passou exactamente assim. Nada indica que alguma vez alguém tenha considerado esse feto como endémico dos Açores. A própria Tardieu-Blot considerava-o como possivelmente introduzido, embora não soubesse de onde ele teria vindo. Mais: Tardieu-Blot reconhecia que o seu feto e o Diplazium petersenii (nome que então se dava à Deparia petersenii) eram muito semelhantes, mas entendia haver diferenças suficientes para definir uma nova espécie.

Em 1943, Rui Teles Palhinha (1871-1957) publica, no Boletim da Sociedade Broteriana (vol. 17), uma lista dos «Pteridófitos do arquipélago dos Açores» [clique no título]. Entre os fetos por ele considerados como «subespontâneos ou fugidos de cultura» encontra-se o Diplazium petersenii, «da China, Índia e Java»; não há menção ao Diplazium allorgei. No seu livro póstumo Catálogo das plantas vasculares dos Açores, de 1966, Palhinha parece ter mudado de opinião: faz desaparecer o Diplazium petersenii para o substituir pelo Diplazium allorgei, deixando porém a hipótese de este ser de origem asiática ou sul-americana.

Acontece que, de facto, Palhinha não mudou de opinião. As páginas sobre pteridófitos no livro póstumo não foram escritas por ele mas sim pelo editor A. R. Pinto da Silva, o qual, conforme esclarece o prefácio, se baseou no artigo de 1943 de Palhinha e num outro de 1961 de Pierre Dansereau. Havendo, como há neste caso, discrepâncias entre o livro póstumo e o artigo de 1943, a opinião de Palhinha é a que está no artigo e não a do livro. É pois plausível afirmar que W. A. Sledge, em 1975 ou 1977, não revelou nada que em 1943 Palhinha não soubesse já.

Como nota final, assinale-se que João do Amaral Franco, no vol. 1 (de 1971) da Nova Flora de Portugal, adopta o nome Diplazium allorgei. Mas considera-o uma espécie introduzida de origem sul-americana — o que, embora não seja correcto, se explica pela circunstância de o feto estar igualmente naturalizado no Brasil.

Em conclusão: o Diplazium allorgei nunca foi seriamente considerado como um endemismo açoriano, e desde sempre foi conhecida a possível sinonímia entre Diplazium allorgei e Diplazium petersenii (= Deparia petersenii). Afinal a história nem sempre se repete.

5 comentários :

MPorto disse...

Fantástico.
Felizmente, às vezes também acontece o contrário! Lembro o caso de Rhynchospora modesti-lucennoi que passou de espécie exótica tropical a endemismo da Península Ibérica e norte de África, classificado como ameaçado pela IUCN, depois deste estudo aqui.
E há outras histórias mal contadas...

Paulo Araújo disse...

Obrigado, Miguel, pelo exemplo bem apropriado da Rhynchospora modesti-lucennoi. Talvez sirva de inspiração aos botânicos que trabalham com a flora insular. Não é impossível que um estudo mais aprofundado revele novos endemismos, ou subespécies endémicas que devam ser autonomizadas como espécies.

Catarina H. disse...

Pois, falando em árvores que foram introduzidas e que se tornaram pragas (na minha modesta opinião...) posso destacar o eucalipto, introduzido na minha zona (Mortágua, distrito de Viseu), substituindo o habitual pinheiro. Tenho pena, pois nunca mais consegui encontrar os míscaros que tanto aprecio e que se encontravam aos pés dos pinheiros. Será mesmo por causa da praga dos eucaliptos, como dizem as gentes da minha terra, que desapareceram os míscaros?

Paulo Araújo disse...

É claro que uma plantação de eucaliptos não tem a mesma biodiversidade que um pinhal (que também foi plantado, embora há mais tempo), e portanto os eucaliptos podem ser culpados pelo desaparecimento dos míscaros e de muitas outras coisas. No entanto, não é correcto dizer que os eucaliptos são uma praga como são as mimosas. As mimosas disseminam-se sem ajuda, enquanto que a esmagadora maioria dos nossos eucaliptais foram plantados. Se os eucaliptos são invasores (e podem sê-lo em certas circunstâncias), são-no em muito menor grau do que as mimosas e outras acácias. Outra diferença é que os eucaliptais, embora floristicamente muito pobres, podem abrigar alguma vegetação espontânea, enquanto que os acaciais são autênticos desertos verdes.

Catarina H. disse...

Sempre a aprender:)Obrigada pelo esclarecimento. O meu conhecimento desta área não é académico, apenas interesse pelo que me rodeia. Mas tem lógica, os eucaliptais são efectivamente plantados.
Já as mimosas... é verdade, são reais invasoras, não é necessário muito para se disseminarem (e não conheço ninguém que tenha plantado nenhuma!)