31/10/2011

Ponta da Fajã


Ponta da Fajã, ilha das Flores: quintal abandonado com Equisetum telmateia e Colocasia esculenta (= inhame)

Mais um passo na mesma direcção e a Europa acaba. Não se apoquente o leitor: aludimos a um simples facto geográfico, não à impiedosa crise que sobre nós desabou. A ilha das Flores ainda é Europa, pelo menos politicamente (de outros pontos de vista há quem tenha dúvidas, alegando qualquer coisa sobre "placas continentais"). E daqui para oeste até às Américas não há outro pedaço desgarrado do continente europeu. A costa ocidental das Flores e a freguesia da Fajã Grande marcam um limite inultrapassável para os europeus sem passaporte.

A estrada que desce para a costa da Fajã Grande prolonga-se ainda por dois quilómetros até à Ponta da Fajã. À nossa direita desenrola-se o paredão contínuo da falésia com centenas de metros de altura, rasgada por ribeiros alegremente suicidas na pressa de encurtar caminho até ao mar. Na plataforma verdejante da fajã há casas agora só de recreio e campos de cultivo abandonados ou convertidos em pastagens. Vêem-se anúncios de casas para venda, quem sabe se ao preço da chuva, mas qualquer dia acontece um desabamento (muito por culpa do excesso da dita) e fica tudo soterrado. Talvez o cavalo magricela a pastar naquilo que foi em tempos um jardim ainda tenha agilidade para se pôr a salvo.

Equisetum telmateia Ehrh.
A juntar às omnipresentes (e daninhas) exóticas invasoras, há também plantas nativas que têm vindo a recolonizar campos abandonados. Consola ver, aqui na Ponta da Fajã, o vigor com que o Equisetum telmateia se tem espalhado, ocupando em formação cerrada quintais e linhas de água. Trata-se da versão gigante (até 2 metros de altura) do rabo-de-cavalo (Equisetum arvense). Além de ser espontânea nos Açores, é uma planta quase cosmopolita, amiga de lugares húmidos, presente na Europa, Ásia, norte de África e América do Norte.

Tal como o seu congénere, o Equisetum telmateia faz brotar hastes de dois tipos. As férteis surgem entre Março e Abril: têm menos de 50 cm de altura, não são ramificadas, apresentam uma coloração acastanhada e são encimadas pelos cones que contêm os esporângios; desaparecem depois de cumprirem o seu papel reprodutor para serem substituídas pelas hastes estéreis (as que se vêem nas fotos), que persistem até Outubro.

O Equisetum telmateia é também, em Portugal, cidadão do continente, concentrando-se sobretudo na Estremadura, Beira Litoral e Costa Vicentina. Duas espécies adicionais (E. palustris e E. ramosissimum) completam o contingente lusitano de uma família botânica que, tendo sobrevivido a 150 milhões de anos de convulsões do planeta, se aguenta por cá com dificuldade, vítima do desaparecimento ou degradação dos habitats húmidos a que se acolhia.

28/10/2011

Estrela no gramado

Stellaria graminea L.


Estas cinco fotografias parecem exibir a mesma planta, o que suscita alguma inquietação quanto ao testemunho da realidade por esta via, mesmo a quem abdica de programas de tratamento de imagem. Certo é que:
  • as flores de S. holostea (greater stitchwort) são maiores que as da S. graminea (lesser stitchwort), mas isso aqui não se nota;
  • têm preferências distintas quanto ao habitat (a primeira aprecia clareiras de bosque ou relvados, a segunda precisa de sombra e humidade, optando por prados com um regato por perto), mas essa divergência não se percebe nem no formato das folhas, em ambas semelhantes às da relva, nem na coloração dos estames;
  • os caules, ramificados, são quadrangulares nas duas espécies, mas na S. holostea as arestas são ásperas enquanto que na S. graminea parecem ter sido polidas — outro dado que as imagens são incapazes de corroborar.
Contudo, se o fotógrafo for cuidadoso, as fotos podem denunciar detalhes que de outro modo não notaríamos. Nestas, com um pouco de atenção, podemos detectar pelas flores a presença de duas plantas distintas. Nas duas inferiores, da S. holostea, que floresce entre Abril e Junho, as pétalas têm quase o dobro do tamanho das sépalas (que medem 6 a 9 mm de comprimento) e, embora bífidas, o entalhe fica-se pela metade superior da pétala. Nas três de cima, da S. graminea — que dá flores um pouco mais tarde, é mais alta e mais esguia, e tem folhas menores — as pétalas são fendidas quase até à base e o seu tamanho não difere muito do das sépalas (de 3 a 7 mm).

A S. holostea é nativa da Europa, oeste da Ásia e Norte de África; a S. graminea é euroasiática. Na Península Ibérica ocorrem essencialmente na metade norte; em Portugal, restringem-se a meia dúzia de províncias, sendo raras em algumas. Dividem o território com outras três espécies, a S. alsine, a S. media e a S. neglecta, não isolada geneticamente da S. media e, por isso, considerada por alguns autores como subespécie dela.

Stellaria holostea L.

27/10/2011

Ervilhas e ervilhacas

Vicia lutea L.
Ervilhaca é o nome por que são conhecidas as espécies silvestres do género Vicia, apesar de elas estarem mais próximas das favas (Vicia faba) do que das verdadeiras ervilhas (Pisum sativum). Mesmo que não sejam usadas para consumo humano, estas leguminosas são sumamente úteis por duas razões: ovelhas, vacas e demais herbívoros consideram-nas deliciosas; e, tal como as demais plantas da família a que pertencem, ajudam a fixar azoto no solo, funcionando como fertilizante verde e sendo por isso altamente recomendáveis para rotação de culturas.

Será mais pelas folhas do que pelas flores que a Vicia se distingue de outras leguminosas como o Lotus e o Lathyrus. Os três géneros incluem plantas de folhas compostas — mas, ao passo que as do Lotus são semelhantes às do trevo (tendo porém cinco folíolos e não três), as da Vicia e do Lathyrus são em regra rematadas por gavinhas. Tirando esse traço morfológico comum, típico das trepadeiras, os folíolos da Vicia costumam ser mais atarracados e numerosos do que os do Lathyrus. Para completar a descrição verbal, nada melhor do que comparar a Vicia acima retratada (e ainda estas outras) com alguns dos Lathyrus que já aqui desfilaram: L. latifolius, L. linifolius e L. sphaericus.

A terminar, alguns dados biográficos sobre a Vicia lutea. O nome que dela consta no registo botânico-civil é ervilhaca-amarela, referindo-se o adjectivo cromático, como aliás o epíteto lutea, ao amarelo (pálido, demasiado pálido) das suas flores. As hastes atingem 60 cm de comprimento, cada folíolo (dos quais há até 8 pares em cada folha) terá uns 2 cm, e as flores, que aparecem solitárias ou em grupos de duas ou três, têm cerca de 3 cm de diâmetro. É uma planta anual, glabra ou com pêlos esparsos, que floresce de Abril a Junho e é comum em Portugal continental e em quase toda a Europa, surgindo em locais de ecologia variada como prados, terrenos baldios e matos costeiros.

26/10/2011

Azul com espinhos

Carduncellus caeruleus (L.) K. Presl

Nomes vulgares: cardo-azul
Ecologia e distribuição: terrenos secos mas também prados, de preferência sobre calcários; em Portugal e em quase toda a bacia do Mediterrâneo
Distribuição em Portugal: como planta nativa, na Beira Litoral, Estremadura, Ribatejo, Alentejo interior e Barrocal algarvio; presente também, como planta introduzida, no arquipélago da Madeira
Época de floração: Maio a Julho
Data e local das fotos: Maio de 2010 e Maio de 2011, em São Romão, concelho de Vagos
Informações adicionais: planta vivaz, ocasionalmente ramificada, com hastes até 60 cm de altura ou um pouco mais (como era o caso das plantas fotografadas)

25/10/2011

Ruibarbo-dos-pobres

Thalictrum speciosissimum L.
Imagine um arbusto de aspecto frágil com um metro de altura, de folhagem esparsa e acinzentada como lava, encimado por vistosos penachos amarelos. Já está? Aí tem o figurino desta planta. Agora coloque bastantes exemplares na margem de um ribeirinho, rodeados por juncos e herbáceas de menor porte, e entenderá por que Lineu a designou, em 1758, por speciosissimum.

Setenta anos depois batia-se a primeira fotografia mas a divulgação científica apoiada em desenhos era, como hoje, dispendiosa. Por isso as descrições botânicas exigiam uma minúcia que as imagens a que acedemos actualmente dispensam, e as particularidades desta planta foram sendo vertidas nos vários nomes que recebeu: T. glaucum Desf. (pela cor da folhagem), T. flavum subsp. glaucum (Desf.) Batt (pelos fascículos de flores amarelas), T. costae Timb.-Lagr. ex Debeaux (porque o fruto é fatiado, tem «várias costas»). A designação aceite agora é, como mandam as regras, a primeira, de Lineu, ainda que seja a mais vaga de todas.

É uma planta vivaz, nativa da região mediterrânica oeste e Península Ibérica, ocorrendo em prados húmidos e juncais até aos 1600 metros. Sem as flores, de Primavera-Verão, com estames salientes e 4 a 5 tépalas, reunidas em densos corimbos, não é fácil dar por ela. As folhas compostas, de pecíolo longo e nervação proeminente na face inferior, com 3 a 4 dentinhos no ápice e estípulas ovais ajudariam na identificação, não fosse esta uma espécie que, no sul da Península, exibe grande variação morfológica. O melhor mesmo é irem vê-la ao Gerês.

(O ruibarbo é a poligonácea asiática Rheum officinale Baill., com uso medicinal e culinário.)

24/10/2011

Erva-loira da Boa Viagem

Senecio lusitanicus (Cout.) R. Pérez-Romero [= Senecio doronicum subsp. lusitanicus Cout.]

A serra da Boa Viagem, entre Quiaios e Figueira da Foz, é muito frequentada no Verão por famílias piquenicantes. Antes de se estenderem as toalhas e de se abrirem os cestos, e de toda a gente abancar para a refeição, há ainda que ir em romaria espreitar o miradouro da Bandeira. É de lá que se vê a serra descer abruptamente sobre a tira de areia que confronta a extensão azul do oceano. É um local de eleição para aqueles que, gostando da natureza, não se querem cansar a procurá-la. Estacionam o carro, sentam-se no muro do miradouro, respiram fundo, batem meia dúzia de fotos: está tudo visto, podem ir embora.

Quem tenha gosto em botanizar fará mal em ser tão displicente. Como noutras paragens do centro e sul do país, o solo calcário e pedregoso é promessa infalível de orquídeas à farta, mas as plantas que fazem deste um lugar ímpar são outras. Precisamente duas. A mais vistosa, no auge da floração em finais de Maio, é o lírio-amarelo-dos-montes, um endemismo ibérico que tem talvez aqui a sua maior população portuguesa. A outra, que começa a florir um mês antes, é uma erva-loira (género Senecio) que só parece existir na Boa Viagem, em Montejunto e nos arredores de Lisboa. Na capital a sua existência está por um fio, mas nas duas serras do centro-oeste do país, se não houver perturbações de monta, ela é numerosa quanto baste para ter o futuro assegurado. Isto apesar de Franco, no vol. II (de 1984) da Nova Flora de Portugal, ter afirmado que a planta é raríssima — o que, não sendo verdade, pode traduzir-se, num país onde o trabalho de campo é tão irregular, num prematuro atestado de óbito. Se Franco, na sua incontestável autoridade, escreve que algo está em risco de desaparecer, então é de esperar que, dez ou vinte anos depois, tenha mesmo desaparecido. E, se desapareceu, já não há que preocuparmo-nos com a sua conservação. Só que, sem que ninguém se dê ao trabalho de verificar, a planta continua a existir nos locais onde sempre existiu.

E a nossa erva-loira bem merece protecção, pois, embora o seu estatuto taxonómico tenha suscitado dúvidas e opiniões contraditórias, há algum consenso em que se trata de um endemismo lusitano de distribuição muito restrita. O primeiro registo é de 1913, na Flora de Portugal de António Xavier Pereira Coutinho, que lhe chamou Senecio doronicum subsp. lusitanicus. João do Amaral Franco acata a opinião de Coutinho, mas houve outros autores que consideraram o taxon como um sinónimo ou uma subespécie de Senecio lagascanus. Taxon esse que, em todo o caso, exibe claras diferenças tanto em relação ao S. lagascanus como ao S. doronicum, sobretudo na forma e na indumentação das folhas, que têm uma textura lanuda, como se tivessem sido polvilhadas com pó de talco. Muito recentemente, em 2009, um grupo de botânicos da Universidade de León encabeçado por Rafael Pérez-Romero publicou, no vol. 47 da revista Compositae Newsletter, um estudo comparativo em que conclui pela necessidade de separar as plantas portugueses numa espécie autónoma. O artigo, com o título "Senecio lusitanicus (Asteraceae, Senecioneae), a new combination for a species from Iberian Peninsula", pode ser lido aqui [PDF].

É de esperar que a subida de escalão seja ratificada pela Flora Ibérica quando for publicado o volume das asteráceas. Ficará então oficialmente estabelecido que a serra da Boa Viagem alberga uma das três únicas populações conhecidas de um precioso endemismo lusitano. Que medidas tomar para preservar tal tesouro? Talvez seja suficiente não estragar.

21/10/2011

Salsa da neve


Cryptogramma crispa (L.) R. Br. ex Hook.


Poderá parecer que andamos crispados, razões não faltam, mas não: é por coincidência que, em dois dias seguidos, o epíteto específico da planta na vitrine seja crispa. Na de hoje alude provavelmente ao seu aspecto de salsa, tal como parsley fern, nome comum para as plantas deste género. Atente o leitor na quarta foto: vêem-se as dobras nas margens das pínulas que, como se fossem indúsios, protegem os soros lineares (que dão esporos amarelos e se formam entre Junho e Novembro). É esta peculiaridade que dá nome ao género: crypto deriva do grego kryptos, escondido, e gramma de gramme, linha.

Não foi contudo este o detalhe que primeiro notámos quando observámos uma população na serra da Estrela — o único lugar conhecido em território português onde este feto ocorre, como se só lá existissem as fissuras em rochas ácidas, acima dos 1400 m e cobertas por neve em grande parte do ano, que este feto exige (e tolera, pois tem um rizoma ramificado). Além da cor verde-alface-fresca (não por acaso, Lineu, em 1753, designou-a por Osmunda crispa), saltaram-nos logo à vista os dois tipos de frondes, as férteis — douradas, frisadas, estreitas, com 10 a 30 cm de comprimento — e as estéreis, externas, um pouco menores, de pínulas arredondadas e muito menos divididas. Tão diferentes que pareciam pertencer a dois fetos distintos entrelaçados.

É nativa da Europa e oeste da Ásia. Na Península Ibérica, onde só se conhece uma espécie de Cryptogramma, ela restringe-se às montanhas da metade norte e à serra Nevada. O recanto precioso, a que agora chamamos Alexandria, com uma dezena de exemplares bem desenvolvidos, foi descoberto pelo Alexandre Silva (do CISE).

20/10/2011

Na serra a contar botões

Jasione crispa (Pourr.) Samp.

Na falta de novas espécies para descobrir, um botânico especializado na flora europeia não tem outro remédio senão dar novos nomes a espécies já há muito conhecidas. Entenda-se, porém, que este jogo não pode ser praticado de modo arbitrário, pois uma das regras da taxonomia botânica impõe que a primeira descrição publicada de uma dada planta é a que vale. Mesmo que o nome original resulte de um equívoco (como sucede, por exemplo, com o Cupressus lusitanica, que não é português mas sim mexicano), ninguém tem direito a mudá-lo só por essa razão. Mas já é legítimo propor uma nova designação se se descobrir, por exemplo, que uma planta que se julgava pertencer a uma certa espécie é na verdade diferente daquela à qual esse nome primeiramente se aplicou. Dentro daqueles géneros botânicos em que as fronteiras entre espécies estão mal definidas, existindo múltiplas formas que exibem caracteres intermédios entre duas ou mais espécies, o jogo de recombinações é potencialmente interminável, e é raro encontrar dois especialistas que tenham a mesma opinião.

O género Jasione é um dos mais problemáticos na Península Ibérica. A espécie mais comum de norte a sul do país é a J. montana: é esse o botão-azul que floresce durante toda a Primavera e Verão e enfeita prados, montanhas e bermas de estrada. Nas dunas do litoral norte aparece uma versão mais compacta e rasteira da mesma planta: trata-se da J. maritima, que em tempos foi considerada uma simples variedade da J. montana. Subindo às montanhas do norte e do centro, o caso complica-se, pois há registo de duas espécies, J. crispa e J. sessiliflora, que vivem a altitudes elevadas em fissuras de rochas ou em cascalheiras. A distinção entre as duas é problemática, e João do Amaral Franco, na Nova Flora de Portugal, considera a segunda como subespécie da primeira. Das quatro subespécies de J. crispa que Franco enumera, o revisor do género Jasione na Flora Ibérica só mantém a subespécie mariana; mas, para compensar, cria três novas subespécies. Na opinião de Franco, as plantas da serra da Estrela seriam justamente J. crispa subsp. mariana; contudo, de acordo com a Flora Ibérica, tal subespécie não existe em Portugal; a única que por aqui há, e precisamente na serra da Estrela, é J. crispa subsp. crispa. Para enredar ainda mais o trama, Jan Jansen, no seu Geobotanical guide of the Serra da Estrela (2002), fala da J. crispa subsp. centralis, de que nenhuma das outras duas obras de referência dá notícia.

Parece pois avisado abstermo-nos de emitir opinião sobre o assunto. A planta acima retratada deve ser a Jasione crispa, mas é preferível não arriscarmos qual a subespécie. Pode até dar-se o caso de ser a Jasione sessiliflora, pois, contrariando a opinião de Franco, há quem sustente que essa espécie ocorre na serra da Estrela. Porém, os caracteres morfológicos que é possível observar nas fotos (em particular a forma e a disposição das brácteas florais) apontam mais para J. crispa. Em ambas as espécies as raízes são lenhosas e as rosetas de folhas formam almofadinhas compactas que ajudam a resguardar a planta do frio, do vento e da neve.

19/10/2011

Amarelo de tingir

Serratula tinctoria L.


Nomes vulgares: serrátula-dos-tintureiros, saw-wort
Ecologia e distribuição: bosques, prados húmidos, turfeiras; em toda a Europa desde a Península Ibérica até à Rússia, estendendo-se até à Ásia central e incluindo ainda a Argélia
Distribuição em Portugal: noroeste e interior centro
Época de floração: Agosto a Outubro
Data e local das fotos: Agosto de 2011, junto à ribeira do Forno, na serra do Gerês
Informações adicionais: planta vivaz, que fornece um pigmento amarelo outrora usado em tinturaria, pode atingir um metro de altura e exibe vários capítulos florais em cada haste; escassa e vulnerável no nosso país, é uma espécie de morfologia variável, o que levou ao reconhecimento de várias subespécies, das quais só uma (Serratula tinctoria subsp. seoanei (Willk.) M. Laínz) está assinalada em Portugal

18/10/2011

Nuvem de algodão

Visitámos esta turfeira no início da Primavera à procura de flores de Menyanthes trifoliata. No ano anterior eram tantos os pés de três folhas que antevíamos uma floração exuberante. Mas não havia sinais de flores, e o nível da água estava ainda alto. Em Maio, regressámos. E de longe, da estrada esburacada que nos leva, e ao gado, até à terra escura e pantanosa, era este o cenário.



Corremos, claro, de galochas postas e olhar preso a esta nata branquinha como se ela fosse efémera e, num segundo de descuido, se volatilizasse. Não eram porém as flores da faveira-de-água que estendiam o tapete branco, embora numa das fotos se lhe vejam as folhas, mas as de uma planta vivaz semelhante ao junco. Possui ela flores revestidas por densos anéis de fibras brancas, cada qual com cerca de 5 cm de comprimento, que lhe dão este aspecto algodoado e justificam o nome científico Eriophorum (do grego erion = lã, e phoron = que produz).

Eriophorum angustifolium Honck.
É uma herbácea rizomatosa com cerca de 75 cm de altura. As folhas são estreitas (3-5 mm de largura), daí o epíteto angustifolium. A inflorescência é terminal, protegida por brácteas e formada por uma espigueta solitária ou por meia dúzia delas; as flores são hermafroditas e nascem num invólucro feito de glumas acastanhadas com margens transparentes, em arranjo helicoidal. Os frutos são aquénios diminutos e pardos, com restos da barbicha branca.

Vive mergulhada na água e prefere solos ácidos de sítios paludosos de altitude. Subcosmopolita, está presente em grande parte da Europa, América do Norte e Norte da Ásia. Em território português, há registo dela na Beira Alta (serra da Estrela), em Trás-os-Montes e no Minho. A Flora Ibérica lista mais três espécies de Eriophorum para a Península, mas só o E. angustifolium ocorre por cá. Embora alguns manuais indiquem que floresce de Julho a Agosto, está visto que, em alguns lugares, ela se adianta uns dois meses.

17/10/2011

Erva-salgueira em versão XL

Epilobium hirsutum L.
Há plantas que, por não serem frequentes ou por não terem utilidade óbvia, nunca suscitaram a atenção do povo e por isso nunca receberam nome vernáculo. Até que chega alguém preocupado com a lacuna e, fazendo-se passar por povo, inventa uns nomes estapafúrdios a que chama "nomes comuns". Essa obra apócrifa é de fácil detecção, pois atribui às camadas populares uma erudição botânica deveras surpreendente. Exemplo ilustrativo é fornecido pela planta de hoje, que seria popularmente chamada de epilóbio-eriçado. Somos pois convidados a acreditar que o povo, além de conhecer a designação científica das plantas, ainda tem umas luzes não despiciendas de latim e de morfologia vegetal. Que nos perdoe quem prossegue tal obra de exaltação da sabedoria popular, mas nós não caímos nessa. E há ainda a questão de a palavra epilóbio, posto que bem sonante, não evocar nada de conhecido. O verdadeiro povo iria estropiá-la e torcê-la até que ela ganhasse maior poder sugestivo. Pé-de-lobo? Epilobo? Aceitam-se sugestões.

Porém, como temos que chamar alguma coisa às plantas, e há quem nos tome por pedantes se usarmos apenas os nomes científicos, somos forçados a inventar designações. Mas assumimos a autoria. Não é o povo da mítica aldeia que usa estes nomes, somos nós, citadinos, aqui no blogue. Pelo espaço de dois ou três parágrafos, a planta de hoje fica então a chamar-se erva-salgueira, que é tradução do inglês willowherb. É favor não a confundirem com a salgueirinha ou erva-carapau (esses sim genuínos nomes populares), a qual, apesar de partilhar com a erva-salgueira a preferência por habitats encharcados, pertence a uma família botânica muito distinta.

Dentro das plantas do género Epilobium, em geral ervitas de flores minúsculas que aparecem nos nossos canteiros sem pedirem licença, a erva-salgueira faz figura de gigante: pode atingir os 2 metros de altura e as suas flores (de um rosa vistoso, com o estima dividido em quatro segmentos) têm quase 3 cm de diâmetro. Em comum com as outras espécies do género, as flores aparecem no extremo daquilo que parece ser um longo pedúnculo, mas é de facto o ovário — o qual, depois de fecundado, se transforma numa "vagem" de onde saem as sementes envoltas em filamentos sedosos. O nome científico Epilobium refere-se aliás à circunstância de a corola estar sobreposta (epi) à cápsula (lobos) do fruto que há-de ser.

Sem ser rara, em Portugal a erva-salgueira não é muito vista: de acordo com a Flora Digital de Portugal, aparece no nordeste, no litoral centro, na região de Lisboa, no interior alentejano e na serra algarvia. Os esporádicos encontros que com ela tivemos não desmentem totalmente esse mapa: na serra dos Candeeiros, junto à lagoa grande do Arrimal; nas margens do Tâmega, em Amarante; e no vale do rio Távora, afluente da margem esquerda do Douro. Em Inglaterra, onde foram captadas as imagens, é uma planta comum nos habitats húmidos que lhe são favoráveis.

14/10/2011

É favor não pisar


Anchusa calcarea Boiss.


Para guardarem os centavos da República, os coleccionadores de moedas usam umas páginas em plástico com bolsas quadradas, uma para cada moeda, num arquivo esmerado onde elas estão protegidas da oxidação. Nos lugares vazios, há quem coloque fotos das moedas, retiradas de livros de numismática ou da internet, na esperança de um dia as substituir pelos originais em metal. Do mesmo modo, a nossa colecção de anchusas tinha, até há uns tempos, uma foto de livro com esta planta, pouco esclarecedora quanto aos detalhes; desde a nossa última visita à Galiza, dispomos já do original — que, na verdade, é também uma imagem, mas com mais memória nossa.

Esta erva-de-n-línguas é um endemismo do oeste e sul da Península Ibérica. Segundo a Nova Flora de Portugal, de Amaral Franco, ocorre em todos os areais costeiros, mas nós nunca a vimos nas praias do norte (Douro ou Minho). O que não nos surpreende pois, por razões ocultas, as plantas da beira-mar preferem enfrentar o perigo — que é real, não falta à-vontade no pisoteio aos veraneantes, sempre ansiosos por chegar à espuma — a terem de se acotovelar dentro das cercas que os zeladores prestimosamente espalham pelos areais.

É herbácea perene ou bienal de duna fixa, com lanugem de dois tamanhos no caule e folhas, uma opção atinada que a protege da erosão do par areia + vento. As folhas são pecioladas, crenadas e, as mais baixas, arrosetadas; podem chegar aos 15 cm de comprimento. As flores tubulares, com brácteas conspícuas e penugentas, são pequeninas e nascem na Primavera: os cálices têm cerca de 1 cm e são fendidos até 1/4 do seu comprimento; a corola, azul ou púrpura, ronda os 8 mm de diâmetro.

Desviei-me do assunto, desculpem. O que queria dizer é que nos falta um exemplar português, o tal centavo precioso.

13/10/2011

Chícharo esférico

Lathyrus sphaericus Retz.


Já faz tempo que o chícharo se nos esgotou na despensa. A lacuna tem o grave inconveniente de nos privar do arroz de chícharo, que é a versão muitas vezes melhorada do popular arroz de feijão. Aqui convém não poupar nos detalhes gastronómicos, pois nem todos os feijões se equivalem. Embora se possa confeccionar um arroz aceitável com feijão vermelho, quem tiver o paladar correctamente afinado saberá reconhecer que os melhores arrozes se preparam com feijão branco. A espessura da goma libertada pelo feijão branco remete o feijão vermelho para uma divisão secundaríssima. Ora o chícharo, além de garantir essa mesma consistência que evita a transformação do arroz numa sopa aguada (a tal fraude culinária a que é costume chamar "arroz malandro"), ainda oferece o bónus de um sabor único, cruzado por um irresistível travo picante.

E porque o chícharo e o arroz do mesmo nos fazem falta, deixamos aqui este escrito à laia de mnemónica. Há que voltar a Sicó, mesmo que agora, com o avanço do Outono, já sobrem poucas flores silvestres para observar (ainda se vêem, porém, algumas tranças-de-Outono; e quem for persistente há-de também encontrar isto).

E que tem a planta acima ilustrada a ver com o chícharo? É que esse acepipe provém de uma planta que se chama Lathyrus sativus; os frutos dela são vagens, como sucede com todas as leguminosas, e aquilo que nós comemos são as sementes. Na Península Ibérica existem 30 espécies nativas de Lathyrus e mais duas outras que são cultivadas como ornamentais (L. odoratus) ou para alimentação (L. sativus). Muitas dessas espécies são trepadeiras, algumas são anuais e outras são perenes. As espécies autóctones não têm, em geral, qualquer préstimo culinário, e podem mesmo ser tóxicas. O que os diversos Lathyrus têm em comum são as folhas compostas, formadas por folíolos alongados dispostos aos pares, e rematadas por gavinhas (ou, mais raramente, por mucrões).

O Lathyrus sphaericus, que é anual e atinge uns 50 cm de comprimento, destaca-se entre os seus congéneres pelas flores vermelhas. Teriam elas potencialidades ornamentais se fossem maiores e mais numerosas, mas cada flor aparece isolada e não excede 1,5 cm de diâmetro. E, com vagens tão magras (3ª foto), também as sementes (que são esféricas, como lembra o epíteto específico) são diminutas: têm uns 3 mm de diâmetro, contra 1 cm dos verdadeiros chícharos. Se se comessem, saberiam a pouco.