30/11/2011

A última da tribo

Cheirolophus sempervirens L. (Pomel)
Nomes vulgares: lavapé, viomal
Ecologia: clareiras de pinhais e de outras matas perenifólias, margens de cursos de água, taludes rochosos
Distribuição global: nativa da Penínula Ibérica (Portugal e Espanha) e talvez de Itália; introduzida em França
Distribuição em Portugal: centro e sul da faixa litoral no continente
Época de floração: Maio a Agosto
Data e local das fotos: Julho de 2008, Fórnea (foto 2); Julho de 2010, Mata Nacional das Dunas de Quiaios (fotos 1 e 3)
Informações adicionais: planta perene, algo pubescente, de base lenhosa, com caules até 1,5 m de altura, folhas alternadas simples e lanceoladas; capaz de formar moitas em sítios húmidos
Adenda: com esta planta completamos a série de sete fichas semanais que dedicámos à tribo Cardueae da família Asteraceae. Embora nem todos as plantas da tribo sejam espinhentas (a de hoje não é), ela inclui muitas das plantas vulgarmente conhecidas como cardos. As suas inflorescências não exibem as «pétalas» características de outras asteráceaas, pois são apenas constituídas por longos florículos tubulares.

29/11/2011

Imposturas vegetais

Marsilea hirsuta R. Br. [= Marsilea azorica Launert & Paiva]
Quanto mais alto se sobe, maior é a queda: eis um dito que se aplica a usurpadores ou vigaristas apeados no auge da carreira, mas que parece inapropriado quando se fala de plantas ou de bichos. No entanto, plantas e bichos também podem cair em desgraça. Na Austrália, coelhos e gatos, que tanta gente acarinha como animais de estimação, são alvo de impiedosas campanhas de extermínio por se terem reproduzido descontroladamente em ambientes naturais. E, aqui ou na Austrália ou em muitas outras paragens, são inúmeras as plantas introduzidas como ornamentais que se transformaram em pragas de impossível erradicação. Com a consciência gradual dos estragos que as espécies exóticas, animais ou vegetais, podem causar, a nossa escala de valores alterou-se: a «beleza» das mimosas (Acacia dealbata) não nos deve impedir de reconhecê-las como árvores daninhas e indesejáveis no nosso país.

Nada disto nos preparou para a revelação de que a Marsilea azorica, um raríssimo endemismo açoriano de que se conhecia uma única população em todo o arquipélago (na Terceira), é afinal uma planta exótica e potencialmente invasora. De seu verdadeiro nome Marsilea hirsuta, é originária da Austrália e terá chegado à Terceira por via dos EUA, onde, no estado da Florida, se tem vindo a comportar como colonizadora agressiva de ecossistemas aquáticos. Foram os botânicos Hanno Schaefer, Mark A. Carine e Fred J. Rumsey, em artigo científico acabado de publicar (disponível aqui), que desmascararam a pretensa Marsilea «azorica».

É verdade que a singularidade da distribuição deste feto, encontrado nos Açores pela primeira vez em 1971 e descrito como uma nova espécie, endémica do arquipélago, em 1983, tinha já suscitado a estranheza de alguns botânicos. Vale a pena reproduzir o comentário que Carlos Aguiar aqui deixou em Dezembro de 2010: A distribuição desta planta nos Açores é surpreendente: uma lagoa na berma de uma estrada movimentada, na ilha Terceira. Não me surpreenderia que um dia alguém descobrisse que se trata de um neófito de origem neotropical.

Apesar das dúvidas em surdina, a Marsilea «azorica» sempre recebeu as maiores honrarias. Foi incluída na lista vermelha da IUCN com o estatuto de espécie em perigo crítico; e, no livro Flora Vascular dos Açores — Prioridades em Conservação, de Luís Silva et al. (edição Amigos dos Açores, 2009), aparece em primeiro lugar entre 90 espécies, como aquela cuja conservação é mais prioritária.

Tudo galardões de que a australiana Marsilea hirsuta não tardará a ser despojada. Contudo, ficam ainda muitos genuínos endemismos açorianos de que importa cuidar. O mais ameaçado é talvez o Myosotis azorica, em vias de extinção nas Flores (o Corvo é a única outra ilha onde ele ocorre) por causa dos rebanhos de cabras devoradoras que os serviços da Secretaria Regional do Ambiente se recusam a controlar.

Deparia petersenii (Kunze) M. Kato [= Diplazium allorgei Tardieu]
Vem a propósito deslindar uma história algo semelhante envolvendo outro feto colectado nos Açores. Em Dezembro de 1938, foi publicado, na revista Notulae Systematicae (vol. VII, fasc. 3), um artigo de Tardieu-Blot com o título «Sur un Diplazium des Açores» [clique no título para ler o artigo], descrevendo uma nova espécie a que a autora chamou Diplazium allorgei. A confusão, de acordo com Schaefer e seus co-autores, só seria desfeita quatro décadas mais tarde (em 1975 ou 1977), quando W. A. Sledge revelou, na Fern Gazette, que o hipotético endemismo açoriano era indistinguível da asiática Deparia petersenii.

A história, contudo, não se passou exactamente assim. Nada indica que alguma vez alguém tenha considerado esse feto como endémico dos Açores. A própria Tardieu-Blot considerava-o como possivelmente introduzido, embora não soubesse de onde ele teria vindo. Mais: Tardieu-Blot reconhecia que o seu feto e o Diplazium petersenii (nome que então se dava à Deparia petersenii) eram muito semelhantes, mas entendia haver diferenças suficientes para definir uma nova espécie.

Em 1943, Rui Teles Palhinha (1871-1957) publica, no Boletim da Sociedade Broteriana (vol. 17), uma lista dos «Pteridófitos do arquipélago dos Açores» [clique no título]. Entre os fetos por ele considerados como «subespontâneos ou fugidos de cultura» encontra-se o Diplazium petersenii, «da China, Índia e Java»; não há menção ao Diplazium allorgei. No seu livro póstumo Catálogo das plantas vasculares dos Açores, de 1966, Palhinha parece ter mudado de opinião: faz desaparecer o Diplazium petersenii para o substituir pelo Diplazium allorgei, deixando porém a hipótese de este ser de origem asiática ou sul-americana.

Acontece que, de facto, Palhinha não mudou de opinião. As páginas sobre pteridófitos no livro póstumo não foram escritas por ele mas sim pelo editor A. R. Pinto da Silva, o qual, conforme esclarece o prefácio, se baseou no artigo de 1943 de Palhinha e num outro de 1961 de Pierre Dansereau. Havendo, como há neste caso, discrepâncias entre o livro póstumo e o artigo de 1943, a opinião de Palhinha é a que está no artigo e não a do livro. É pois plausível afirmar que W. A. Sledge, em 1975 ou 1977, não revelou nada que em 1943 Palhinha não soubesse já.

Como nota final, assinale-se que João do Amaral Franco, no vol. 1 (de 1971) da Nova Flora de Portugal, adopta o nome Diplazium allorgei. Mas considera-o uma espécie introduzida de origem sul-americana — o que, embora não seja correcto, se explica pela circunstância de o feto estar igualmente naturalizado no Brasil.

Em conclusão: o Diplazium allorgei nunca foi seriamente considerado como um endemismo açoriano, e desde sempre foi conhecida a possível sinonímia entre Diplazium allorgei e Diplazium petersenii (= Deparia petersenii). Afinal a história nem sempre se repete.

28/11/2011

Falta-lhe ser completo

Pteris incompleta Cav.
O fotógrafo admite a sua inépcia: este feto era um entre muitos dos seus iguais, mas a falta de discernimento fez com que de outros mais elegantes não ficasse registo. A profusão de fetos na ilha das Flores exige um olhar treinado e minucioso para conseguir destrinçá-los, senão até um feto de personalidade tão vincada como este acaba por perder-se na multidão.

Um troço da estrada que liga Santa Cruz ao interior da ilha é peculiar por ter piso de cimento e ser tão íngreme que subi-lo a pé sem pausas garante ao involuntário atleta os mínimos olímpicos na disciplina de escalada. Quem não almeje grandes feitos aceitará o convite das criptomérias para recuperar o fôlego à sua sombra, e avançará com alívio pela vereda de declive zero que se embrenha pelo bosque. Apesar de ser esta uma conífera originária da Ásia, há muitos fetos, quase todos autóctones, a forrar o chão. É questão de desembaciar os óculos para que a névoa não atenue o brilho das frondes. As da Pteris incompleta, pela cor, pelo avantajado do tamanho (1,5 m de comprimento) e pelo recorte das pinas, podem ao longe confundir-se com as da Woodwardia radicans, feto muito comum em toda a ilha. De perto as diferenças tornam-se óbvias: as pínulas (= segmentos de última ordem) da W. radicans são pontiagudas, as da P. incompleta são arredondadas e denticuladas (3.ª foto); e uma singularidade da P. incompleta é que, em cada fronde, as duas pinas basais são mais divididas do que as restantes, com três pínulas de cada lado a serem substituídas por segmentos compostos. Se o fotógrafo tivesse espreitado o verso das frondes, teria ainda constatado como os esporângios se dispõem linearmente, protegidos pela margem dobrada das pínulas, tal como sucede na Pteris vittata.

Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde compõem uma região biogeográfica excessivamente diversificada a que se convencionou chamar Macaronésia. São poucos os traços comuns a todos esses arquipélagos. A Pteris incompleta não é um deles porque falha em Cabo Verde, mas faz o pleno dos arquipélagos restantes. A sua presença residual tanto no continente africano (Tânger) como no europeu (Algeciras e serra de Sintra) poderia dever-se ao comércio hortícola e à utilização ocasional em jardinagem; no entanto, a opinião que tem prevalecido é que essas populações são de origem natural, relíquias do período pré-glaciar. Outros fetos que hoje se concentram nas ilhas mas mantiveram delegações no continente são a W. radicans, o Trichomanes speciosum, a Culcita macrocarpa e o Asplenium hemionitis.

Pteris incompleta Cav.

25/11/2011

Albaida

Dorycnopsis gerardi (L.) Boiss.
O nome é difícil de pronunciar mas a mensagem é útil: estas plantas pareceram a Pierre Edmond Boissier semelhantes às do género Dorycnium, enquanto a Lineu, que lhes chamou Anthyllis gerardi, lembraram as deste outro grupo. Boissier manteve o epíteto específico, gerardi, que Lineu escolheu em homenagem ao naturalista inglês John Gerard (1545-1612), autor do famoso Great Herball (1597), que informa, por exemplo, qual o veneno usado por Julieta (a do Romeu) para se fingir de morta.

Na verdade, a um olho leigo, as espécies Dorycnopsis gerardi (a única espécie deste género na Península Ibérica, nativa de Portugal, Espanha, Marrocos, sul de França e algumas ilhas italianas) e Anthyllis onobrychioides Cav. (endemismo do sudeste de Espanha) parecem diferir em pouco mais do que na cor das flores. Para resolver este imbróglio taxionómico, de preferência sem diminuir o número de endemismos espanhóis, alguns botânicos decidiram analisar material genético de D. gerardi, proveniente de populações portuguesas, espanholas e italianas, e compará-lo com registos idênticos de várias espécies de Anthyllis e de D. abyssinica (da Etiópia).

Entre várias outras conclusões relevantes, estabeleceram que os géneros Dorycnopsis e Anthyllis não estão geneticamente próximos: a ostensiva semelhança morfológica entre a A. onobrychioides e a D. gerardi talvez se deva a adaptações a um habitat com iguais exigências, mas isso terá de ser esclarecido noutra ocasião.

Esta planta é perene, vive em pastagens ou em matos, mas também aprecia areais e a proximidade de cursos de água. Encontrámo-la junto às margens (muito degradadas) do rio Alva, em Barril do Alva. Chega aos dois metros de altura e pode apresentar uma cepa lenhosa de onde saem numerosos talos. A inflorescência, de Maio a Julho, contém 12 a 30 flores de formato típico (quilha e estandarte) entre as leguminosas.

24/11/2011

Chica flor

Malva parviflora L.


Já choveu o bastante para que em Bragança, nos próximos meses, a água não falte. No resto do país, mesmo antes das chuvas de Novembro, o nível das barragens não chegou a ser motivo de preocupação. O ano que vem promete colheitas fartas. Mas, como somos uma sociedade evoluída, a nossa prosperidade nada tem a ver com a produção de alimentos, ou mesmo com qualquer outro tipo de produção. Quem dera que houvesse bananeiras, como há nas ilhas afortunadas, para nos deixarmos ficar à sua sombra num descanso apaziguado, sabendo que nada depende de nós.

Há ainda porém algum atavismo que nos alegra quando a chuva cai. Dissolve-se a ansiedade miudinha que nos roía depois de tantas semanas sem pinga de água. Semanas em que a visão de uma planta florescendo na estiagem nos alimentava uma esperança fútil. Como esta malva a romper de uma terra porosa que, mesmo com chuva persistente, nunca retém água por muito tempo.

O epíteto parviflora não é um comentário à inteligência das flores; antes nos informa, com muito acerto, de como elas são pequenas. Com um diâmetro de 5 a 10 mm, as flores da Malva parviflora são, por larga margem, as mais diminutas de entre todas as espécies de Malva espontâneas na Península Ibérica. A única outra espécie com morfologia semelhante, a Malva neglecta, tem flores igualmente axilares, mas consideravelmente maiores (até 2,5 cm) e dotadas de pedúnculos alongados (as da Malva parviflora são quase sésseis). Ressalve-se ainda que a Malva parviflora, podendo embora apresentar-se prostrada como a planta da foto, tem hastes geralmente erectas ou ascendentes, ao contrário da Malva neglecta. Ambas as plantas são algo ruderais e preferem solos nitrificados; mas, para minimizar confusões, têm em Portugal uma distribuição quase disjunta: a M. neglecta é exclusivamente nortenha (Beira Alta, Minho e Trás-os-Montes) e a M. parviflora, embora surja também em Trás-os-Montes (ou, mais precisamente, no Alto Douro), é mais comum no centro e sul do território (Alentejo, Algarve, Estremadura, Ribatejo e Beira Baixa).

23/11/2011

Das vinhas e pomares

Cirsium arvense (L.) Scop.


Nomes vulgares: cardo-das-vinhas; creeping thistle
Ecologia: terrenos incultos ou cultivados, por vezes infestante de vinhas, pomares e campos de cereais
Distribuição global: nativo da Europa e do norte da Ásia; introduzido acidentalmente na América do Norte e do Sul, Austrália, Nova Zelândia e África
Distribuição em Portugal: quase todo o território continental, embora não seja muito comum; naturalizado mas raro nos Açores (Flores e Graciosa)
Época de floração: Junho a Setembro
Data e local das fotos: Setembro de 2011, aldeia do Vale, Pombal
Informações adicionais: herbácea perene com longos rizomas que podem dar origem a colónias populosas; as partes aéreas chegam a ultrapassar um metro de altura; singular entre as suas congéneres por ser uma planta dióica (as plantas das fotos são masculinas)

22/11/2011

Águas passadas

Baldellia repens subsp. cavanillesii (J. A. Molina, A. Galán, J. M Pizarro & Sardinero) Talavera


Segundo Amaral Franco e Rocha Afonso (Nova Flora de Portugal, vol. III), ocorrem em território português duas espécies de Baldellia, que se distinguem pelas folhas: a B. alpestris, endemismo ibérico, tem-nas elípticas; as da B. ranunculoides, nativa da Europa, norte de África e Macaronésia, são lanceoladas. Porém, a Flora Ibérica é de opinião diferente: as plantas do género Baldellia identificam-se por outros detalhes que não apenas as folhas e, para começo de conversa, por cá não há B. ranunculoides, que na Península se fica por terras de Espanha. O que temos, além da B. alpestris, são duas subespécies de B. repens (uma terceira subespécie, B. repens subsp. baetica, é um endemismo espanhol de distribuição restrita).

A razão desta destrinça está nos escapos das flores e nos frutos. Com paciência, tempo e atenção, há que observar as folhas, depois esperar pelas flores e pelos frutos (que são poliaquénios) e entretanto reparar que:
  1. Na B. repens, as anteras são maiores (mais ou menos um milímetro), o fruto ovóide é mais pequeno (com cerca de 20 aquénios), e cada aquénio (visto ao microscópio) exibe umas pequenas protuberâncias filiformes na superfície. Além disso, nota-se a produção de estolhos radicantes de onde nascem rosetas de folhas e flores axilares. Mesmo as hastes de flores lançam ramificações folhosas que se enraízam e dão origem a novas plantas, cumprindo um plano de disseminação vegetativa.
  2. Na B. ranunculoides, o fruto é fusiforme, tem em geral mais de 30 aquénios, e não há as tais protuberâncias. Esta espécie também lança estolhos e nós que se enraízam, mas sem a presença de folhas.
Com tanta minúcia, ganhámos, em troca da espécie perdida, duas subespécies de B. repens: a B. repens subsp. repens, que se restringe ao Algarve e ao Baixo Alentejo, e tem um fruto mais papiloso do que a outra, a B. repens subsp. cavanillesii. Esta ocorre em quase todas as províncias, as folhas medem 8 a 25 cm, o pedúnculo cerca de 15 cm e as três pétalas rosadas (raramente brancas) têm dimensões que rondam os 7 mm x 10 mm e um centro amarelo onde se juntam seis estames.

As nossas três baldélias são plantas perenes, armazenando reservas num «tuberobolbo» agasalhado por folhas velhas. E são ripícolas, de margens de lagoas, turfeiras e represas, de preferência com substrato ácido. Por isso estão ameaçadas pelas práticas, tão frequentes em Portugal, que levam à destruição ou degradação dos lugares húmidos. Os poucos exemplares que encontrámos nos canais que desaguam na lagoa de Paramos são forte indício de que este risco não é mera opinião.

21/11/2011

Eis o macho

Dryopteris filix-mas (L.) Schott


- Este é o meu marido. Não sei se já se conhecem, suponho que não.

Fingindo tratar-se de um encontro imprevisto, embora de facto (sem ele o saber) estivesse tudo combinado desde a semana anterior, a senhora Athryium filix-femina, num roçagar de frondes sopradas pela brisa, conduziu-me à presença do feto robusto a quem estava ligada por um improvável matrimónio.

- Como vai? O meu nome é Dryopteris filix-mas. Eu e a Athyrium nem parece que formamos um casal, pois não? Mas nenhum taxonomista moderno tem poder para separar o que o grande Lineu uniu.

Retribuí o cumprimento e disse algumas banalidades. Depressa porém me afastei, perturbado pela ideia de que afinal já antes tinha encontrado o senhor D. filix-mas e receando cometer algum deslize. Não fora ele que eu vira entre as fragas da serra, bem longe do aconchego do lar conjugal? E já antes não me aparecera ele numa espécie de acampamento hippie para grandes fetos nos umbrosos bosques do Gerês? Há uma tácita solidariedade masculina que seria imperdoável quebrar, e a nenhum homem cabe denunciar as escapadelas de outro.

Concluí depois que a minha comoção fora injustificada. Dentro do género Dryopteris os traços de família podem ser tão vincados que a distinção entre espécies não se faz sem observação minuciosa. É perfeitamente perdoável counfundir, como eu fizera, o feto-macho Dryopteris filix-mas com dois dos seus irmãos gémeos: o falso-feto-macho (Dryopteris affinis) e o feto-macho-de-altas-montanhas (Dryopteris oreades). Machismo à farta que tentaremos desenredar parcialmente.

O D. filix-mas e o D. affinis são fetos de grande tamanho: os exemplares adultos que vegetam em solos ricos em húmus têm frondes com mais de um metro de comprimento, agrupadas em elegantes penachos. O D. filix-mas, contudo, tem hastes e ráquis muito menos escamosas, e as suas pínulas (segmentos de última ordem das frondes) são, ao contrário das do D. affinis, arredondadas e nitidamente dentadas a toda a volta. Ecologicamente também há diferenças: além de frequentar bosques, o D. filix-mas pode aparecer (como sucede na serra de Estrela) em lugares pedregosos, e por vezes chega mesmo a despontar em fendas de muros. Em Portugal dá-se também uma distinção geográfica: ainda que ambos surjam sobretudo na metade norte do país, o D. filix-mas é muito escasso a baixa altitude, e só é fácil encontrá-lo nos maciços montanhosos do interior; o D. affinis, por seu turno, é comum nos bosques nortenhos, mesmo nos que estão perto do litoral.

19/11/2011

Quermesse com flores da serra



Data e hora
sábado, 26 de Novembro de 2011, 15h00
Local
sede da Campo Aberto, à rua de Santa Catarina,
730-2.º, no Porto

(perto do cruzamento com Gonçalo Cristóvão)
****
venda e leilão de
produtos artesanais e do comércio justo
****
às 16h00
palestra ilustrada
sobre a flora da serra da Estrela

18/11/2011

Queria ser Queria

Arenaria querioides Pourr. ex Willk.
Há quem não goste de doces, nem se tente por um chocolatinho a meio da tarde, e que nas festas se agarre aos pratinhos de azeitonas ou aos de polvo avinagrado. Entre as plantas também se encontram extravagâncias de paladar, e esta é, nesse particular, um mau garfo. É calcífuga e não se dá a altitudes inferiores a 700 m, por isso restringe-se a clareiras de matos e ladeiras de montanha com solo pedregoso rico em sílica. Apesar da baixa estatura, é perene e por vezes lenhosa. Os caules são penugentos e nota-se que a folhagem é densa, de folhas rígidas que se unem na base, com uma nervura média e margens esbranquiçadas.

Este ano quase não a víamos florida porque só a avistámos em Julho. Em Maio próximo, as inflorescências estarão mais vistosas, com flores de cinco pétalas acetinadas a encimar hastes acastanhadas de uns quinze centímetros. Trata-se de um endemismo ibérico que ocorre apenas no noroeste e no centro da Península. Há registo de variações morfológicas: na serra da Estrela, Brotero e Coutinho assinalaram a existência de populações do que parece ser uma subespécie de menor altitude, mais rasteira e de flores solitárias.

O epiteto querioides significa "semelhante a Queria" — talvez Queria hispanica, hoje em dia sinónimo de Minuartia hamata. Por essa e por outras arrumações taxonómicas, o género Queria já não tem representantes na flora europeia. Lineu utilizou-o para homenagear o botânico espanhol José Quer y Martínez (1695–1764), cujas viagens e colheitas de plantas e sementes estiveram na origem do espólio do Real Jardín Botánico de Madrid. A correspondência com Lineu terá sido suscitada pela Flora Espanhola que Quer escreveu e Casimiro Gomez Ortega (1741–1818) terminou de publicar.

17/11/2011

Flor Ásia Douro

Commelina communis L.
Como na pintura ou escultura, há flores que cumprem melhor o papel de modelo que posa para o artista e o inspira. As várias peças da flor-de-um-dia, apesar da curta duração, podem bem servir de motivo em aulas de botânica para alunos que apreciam desafios. Além de duas pétalas azuis (tom próximo do índigo), cuja forma justifica outro nome comum para esta planta (flor-pé-de-pato), há uma pétala menor, branca e quase escondida cuja função é um mistério. Salientes, em cima, estão três estames vistosos, de pontas amarelas em cruz. Logo abaixo, muito perto do estilete curvado, há mais três estames longos. O conjunto encaixa-se num invólucro nervado e verde, uma folha modificada em barcarola que é uma bráctea grande situada na base da inflorescência (como as espatas dos jarros). Além disso, a inflorescência contém em geral dois grupos de flores: o inferior, feito de flores hermafroditas e mais escondido na espata; e o superior, só com flores masculinas. São de Verão ou Outono e, com as folhas, fazem lembrar algumas plantas do género Tradescantia, que pertence também à família Commelinaceae (o nome Commelina, escolhido por Lineu em 1753, refere-se a dois irmãos naturalistas holandeses, Jan e Caspar Commelijn).

As flores não têm néctar nem perfume. Desvendar a sua relação com os polinizadores é, portanto, o desafio que se coloca ao estudante. Para a planta é importante que as visitas dos insectos aconteçam com frequência; para os atrair lá estão as pétalas azuis grandes e os três estames superiores que, apesar de estéreis, sendo garbosos e coloridos fazem acreditar em mírificas ofertas. Para evitar que o insecto se vá sem mais conversa, os estames inferiores laterais, que são funcionais, avisam que há mais pólen ao dispôr. Mas, aí chegando, não convém que o insecto se limite a recolher esse pólen. Como se força uma abelha a tocar o estigma deixando lá o pólen que traz de outras flores? Chamando a atenção do bicho: a flor acena-lhe com um lenço branco e luzidio (a pétala pequena), diminui a exuberância das anteras dos estames laterais (que são acastanhadas) e coloca um sexto estame ao centro com uma ponta amarela brilhante e quase colado ao estilete. Estes sinais orientam o polinizador para o ponto certo onde a fertilização deve ocorrer.

Estas flores têm uso em medicina chinesa, com fama de antipiréticas, febrífugas e antitússicas. As pétalas azuis produzem um pigmento japonês famoso para quimonos e pinturas em madeira. A folhagem não escapa à gulodice dos antílopes.

Trata-se de uma planta anual, de prados, pomares, bordos de florestas, lugares de solo fértil com sombra e bastante humidade. É baixa (não mais que 30 cm de altura) mas tem fôlego bastante, porque se dissemina também vegetativamente enraizando os nós dos caules, para competir com outras espécies — e pode tornar-se invasora nefasta em alguns habitats. E onde a vimos? Junto à foz do rio Corgo, na Régua, perto do lugar onde a última (e já desaparecida?) população portuguesa de Marsilea quadrifolia deveria estar a salvo.

16/11/2011

Alcachofra silvestre

Cynara humilis L.


Nomes vulgares: alcachofra-branca, alcachofra-brava, alcachofra-de-São-João
Ecologia: terrenos incultos, prados e pousios, em lugares secos
Distribuição global: Península Ibérica e norte de África (Argélia e Marrocos)
Distribuição em Portugal: centro e sul do território continental
Época de floração: Maio a Agosto
Data e local das fotos: Julho de 2008, Fórnea (foto 1); Junho de 2010, Alvados (restantes fotos)
Informações adicionais: as alcachofras cultivadas pertencem à espécie Cynara cardunculus, que tem folhas mais largas e menos espinhentas; ambas as espécies podem ser usadas como coagulantes na produção de queijo

15/11/2011

Proibido esquecer

Myosotis ramosissima Rochel


Regressamos a medo a um género que já nos causou não poucos embaraços. Só nos Açores a história foi outra: quando vimos o Myosotis maritima, depois de um sobe e desce de alpinista amador em rochedos de lava negra, sabíamos muito bem o que estávamos a ver. Mas no continente a dúvida e os Myosotis são companheiros inseparáveis.

Chamamos Myosotis ramosissima à planta no escaparate porque não temos outro nome que mais bem lhe encaixe, apesar de ela divergir em pequenos aspectos da descrição usual dessa espécie: tem um hábito semi-prostrado quando devia tê-lo erecto, os cálices das flores são mais peludos do que deveriam ser, e os pedúnculos que as sustentam parecem-nos demasiado curtos. Os restante caracteres observáveis (o formato das folhas, a pequenez das flores, a aparência hirsuta, as hastes ramificadas na base) já obedecem porém ao manual, e dão-nos alguma confiança de que a identificação esteja correcta.

O não-me-esqueças-super-ramificado é uma planta anual com hastes até 40 cm (em geral bastante menores), folhas de 1 a 4 cm de comprimento, e flores de 2 a 3 mm de diâmetro. O contraste de tamanho entre as flores liliputianas e as folhas bem desenvolvidas é aliás uma das singularidades da espécie. Amplamente distribuída na Europa, Ásia e norte de África, no nosso país aparece de norte a sul em habitats variados (sítios secos ou temporariamente encharcados, areias marítimas), florescendo nos meses de Primavera.

14/11/2011

Eis a fêmea

Athyrium filix-femina (L.) Roth


A insistência de Lineu em classificar as plantas de acordo com as suas peculiaridades sexuais causou na época algum escândalo. Não um escândalo de encher primeiras páginas, pois no século XVIII os jornais ainda estavam por inventar. Em vez de deflagrar em declarações públicas incendiárias, o escândalo ter-se-á resumido ao repúdio, por parte de muitos dos seus contemporâneos, de um método de classificação que no mínimo lhes parecia brejeiro. Mas o tempo lá fez o seu trabalho, e as ideias atrevidas de Lineu acabaram por tornar-se quase consensuais. É pela morfologia da flor que se reconhece a genealogia da planta, e a flor no mundo vegetal quer dizer sexo: há masculino e feminino, há sedução (dos polinizadores), há fecundação; não falta nenhum ingrediente escabroso.

O método de Lineu claudica face às plantas que não exibem orgãos de reprodução sexual. Os fetos, como sabemos, não querem saber de promiscuidades. Limitam-se a produzir esporos que dão origem a umas plantitas efémeras (chamadas gametófitos ou protalos) às quais cabe o acto procriador. A essas plantas que escondem (cripto) o casamento (gama) chamou Lineu criptogâmicas. Com todo esse secretismo, não espanta que o patriarca dos taxonomistas, no seu Species Plantarum, se visse em dificuldades para estabelecer relações de parentesco realistas entre os diversos fetos. O resultado é que muitas plantas que hoje reconhecemos como díspares se viram agrupadas em géneros que funcionavam, na prática, como posta restante. E, de todos os géneros de conveniência, nenhum foi mais amplo e indefinido do que o género Polypodium — que incluía não só o feto-fêmea acima retratado (a que Lineu chamou Polypodium filix-femina) como muitos outros posteriormente transferidos para uma multiplicidade de novos géneros: Dryopteris, Polystichum, Cystopteris, Cheilanthes, Davallia, Grammitis, etc. Das 70 espécies que Lineu enfiou no saco dos Polypodium, só 13 se mantiveram lá até hoje.

Filix-femina significa literalmente "feto-fêmea"; na próxima semana iremos conhecer o feto-macho que Lineu idealizou para completar o casal. Um casamento perfeitamente platónico e estéril, baseado numa diferenciação sexual que o próprio Lineu reconheceria como fantasiosa. Mas — diriam os seus detractores — o homem só pensava nessas poucas-vergonhas. Os dois fetos (macho e fêmea) fazem alguma vida em comum, por preferirem ambos habitats húmidos e sombrios; e, sendo os dois de grande tamanho (com frondes que podem ultrapassar 1 m de comprimento), a fêmea tem uma folhagem de textura mais delicada, com um recorte mais mimoso e enfeitado.

O Athyrium filix-femina é um verdadeiro caso de expansão global sem a ajuda de exércitos ou das novas tecnologias: é nativo em quase todo o hemisfério norte e, nas Américas, ainda dá uma saltadinha até ao sul. Em Portugal, e sobretudo na metade norte do país, é frequente encontrá-lo à beira-rio e noutros locais com humidade permanente.

11/11/2011

Agenda

Omphalodes linifolia (L.) Moench
  1. Endemismo do noroeste da Península Ibérica, ocorre na metade norte do território continental português. É herbácea perene, rizomatosa, que pode chegar aos 65 cm de altura. Tem uma roseta basal de folhas com mais de 10 cm de comprimento. A floração dá-se entre Abril e Setembro e a corola tubular das flores é azul com cinco pregas claras. É frequente em matos e solos cultivados, mas pede sítios sombrios e húmidos.
  2. Omphalodes linifolia (L.) Moench
  3. Planta anual do sudoeste da Europa (França e Península Ibérica), é rara em Portugal, onde se restringe a meia dúzia de locais no centro e sul. Parece gostar de clareiras de bosques, terrenos incultos com solo arenoso e zonas pedregosas. As folhas da roseta basal não crescem, em geral, mais de 5 cm, mas a planta atinge os 50 cm de altura. Floresce entre Abril e Junho, e a inflorescência terminal é rala. As flores não têm brácteas e as corolas, com cinco pregas, são por regra brancas (mas podem ser azuis).
  4. Endemismo português, do litoral centro: encontra-se pontualmente numa faixa que se estende de Cascais ao Cabo da Roca, embora se julgue que noutros tempos surgisse em todo o litoral, da Estremadura à Galiza. Desenvolve-se nas arribas e areais marítimos, e floresce entre Abril e Maio. É uma erva anual quase rasteira (mede cerca de 15 cm), glauca, com flores bracteadas que têm corolas com as mesmas cinco pregas e um matiz azul pálido. (Não esquecer de ver em 2012, está em risco de extinção.)