09/01/2012

Língua-de-cobra

Reserva Ornitológica de Mindelo (Vila do Conde)
A protecção da natureza, em Portugal, nunca foi uma prioridade, mesmo quando o ambiente fazia parte de uma agenda política que a crise remeteu para segundo plano. O "ambiente" pode ser muita coisa, e de todas as suas possíveis acepções os nossos governos têm preferido aquelas que envolvam obra que se veja. É assim que, em nome das "energias renováveis", se destroem rios e se plantam ventoinhas por tudo quanto é cume; e é também assim que, na gestão de áreas ditas protegidas, se esbanja em desproporcionados centros de interpretação o dinheiro que não há para vigilantes da natureza ou para acções de conservação no terreno. Por isso "área protegida", em Portugal, pouco mais significa que um espaço onde vigoram certas restrições à construção de edifícios ou ao uso do solo. Quanto ao resto, a natureza lá saberá tomar conta de si, desde que as agressões não sejam muitas.

Consta dos anais que a Reserva Ornitológica de Mindelo (ROM), criada em 1957 por iniciativa de Santos Júnior, professor na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP), foi a primeira área oficialmente protegida em Portugal. Situada no concelho de Vila do Conde, logo a sul do rio Ave, e repartida entre as freguesias da Árvore e do Mindelo, ocupava 554 hectares de dunas, charcos e pinhais. Ainda que legalmente a ROM nunca tenha sido abolida, a expansão urbanística roubou-lhe boa parte da área e a Universidade do Porto deixou de a usar para trabalhos de campo. Houve extracção de areia nas dunas, secaram muitos dos charcos, a ribeira foi poluída, depositaram-se entulhos, chegaram veraneantes e veículos todo-o-terreno, a vegetação infestante de chorões, acácias e canas instalou-se e expandiu-se. Mas o ambíguo estatuto de protecção conseguiu evitar o mais sério dos atentados: o coração da antiga reserva, entre as dunas primárias e os hectares de pinhal, foi poupado às construções. Em toda a linha de costa entre Ovar e a foz do Cávado não sobrou outro pedaço de natureza com uma riqueza ecológica comparável.

Foi para proteger tal riqueza que, em Outubro de 2009, por decisão unânime da Assembleia Metropolitana do Porto, foi oficialmente criada a Paisagem Protegida Regional do Litoral de Vila do Conde, que se estende por 380 hectares entre a foz do rio Onda, em Labruge, e a foz do rio Ave, na sede do concelho. O quinhão maior da nova área protegida, com cerca de 266 hectares, é o que resta dos 554 hectares da antiga ROM.

E que foi feito nos 27 meses decorridos desde essa feliz data? Burocraticamente, nada: não há orgãos de gestão, não há plano de ordenamento, não há sequer placas de informação para visitantes. E no terreno também nada se nota, como se a remoção do lixo, o controlo da vegetação infestante e o impedimento da circulação de veículos motorizados dependessem de aturados estudos e da benção de doutas comissões.

Ophioglossum lusitanicum L.


Neste compasso de espera a vida vai seguindo o seu curso, e a velha Reserva Ornitológica de Mindelo ainda guarda algumas surpresas para os naturalistas que a percorram de olhos bem abertos. No leito ou nas margens dos frágeis charcos temporários sobrevivem plantas que, na região do Porto, são preciosas relíquias de outras épocas: Spiranthes aestivalis, Centaurium chloodes, Samolus valerandi. Lista a que agora se acrescenta o Ophioglossum lusitanicum, um estranho feto que recebe no vernáculo o nome de língua-de-cobra-menor e que andava desaparecido do litoral nortenho. A última colheita para o herbário da FCUP data de 1912 e foi feita no lugar da Boa Nova (Leça da Palmeira). As populações por nós agora encontradas situam-se bem mais a norte, numa área onde a planta nunca havia sido detectada. Aliás, o relatório de 2007 que serviu de base à criação da paisagem protegida (texto integral — PDF) não inclui o Ophioglossum lusitanicum na listagem, que se quis completa, da flora local. (E também não inclui várias outras espécies de muito mais fácil observação, como o Samolus valerandi, o Asplenium marinum, a Vicia lutea e a Serapias parviflora.)

Morfologicamente, a língua-de-cobra-menor é a versão miniatural da (que outra coisa haveria de ser?) língua-de-cobra-maior. O tamanho exíguo da planta é aliás uma das peculiaridades que dificultam a sua detecção: as folhas, que são carnudas e surgem sozinhas ou em grupos de duas ou três, têm o pecíolo quase todo subterrâneo e ficam-se pelos 2 a 4 cm de comprimento; a haste com os esporângios (por vezes ausente) pode duplicar a altura da planta, mas raramente ultrapassa os 6 cm. Só podemos ter esperança de a ver quando a vegetação circundante é muito rala. Para dificultar ainda mais a observação, o aparecimento da planta à superfície é efémero e decorre numa época (de Outubro a Março) em que a maioria dos botânicos está recolhida na toca.

O habitat desta língua-de-cobra são os locais arenosos ou de solo magro dotados de alguma humidade e cobertos por musgos. A planta evita locais muito expostos ao vento ou ao sol, e nas dunas agradece a protecção que algum pinheiro ou sargaço lhe possa proporcionar. Na Reserva Ornitológica do Mindelo descobrimos duas populações de 20 a 30 indivíduos cada, ambas ameaçadas pelo avanço dos chorões. Apesar de ser uma planta com ampla distribuição europeia, é escassa em Portugal, e no norte do país está em risco de desaparecer de vez. Quem se preocupa com a biodiversidade não quererá que isso aconteça. Fica o alerta para quem vier a gerir a Paisagem Protegida Regional do Litoral de Vila do Conde.

9 comentários :

Carlos M. Silva disse...

Olá Paulo (e Maria):
Não sei se o v/ apelo chegará a quem é dirigido por que o olhar apaixonado e burocratica/ descomprometido como é o vosso é bem mais intenso do que esses outros oficializados.
Das 3 vezes que lá fui,à ROM,em 2008 e 2009 (e numa a que não fui,esta integrada numa curso/visita,em 2008,do Ciência Viva-J.Bot.Porto, precisamente com o Paulo Alves,tb indicado no relatório que disponibilizas),vi o que descreves.Numa das vezes, verifiquei entre outras,haver uma 'Liga dos Amigos da ROM'(?) a fazerem 'algo' por lá.Nem sei se existem e como,mas decerto podem fazer quase nada.
Obrigado pelo que mostras aqui e pelo que fazem aqui;e pelo alerta do que outros não chegam a fazer ou não deixam fazer!
Carlos M. Silva

Paulo Araújo disse...

Olá, Carlos.

Pois, também duvido que este alerta seja lido por alguém com responsabilidades na ex-ROM. Não sei se tais pessoas existem e muito menos como contactá-las, senão já o teria feito. É que, além das ameaças que relatei, há uma outra que não se pode ignorar: as "limpezas" feitas por quem não sabe o que está fazer. Há o risco de que quem for arrancar os chorões arranque ou pisoteie tudo à volta, e lá se vão o Ophioglossum e outras raridades.

Paulo

Carlos M. Silva disse...

Paulo:
As 'altas instituições' deste país (não necessaria/ todas as pessoas que nelas trabalham) são buracos negros sem a matemática e a física daqueles;nele(a)s desaparece mesmo (?),quando 'alguém' quer!!Um dia pode ser que escreva um livrito s/ 'Aventuras/Desventuras nos "cotos" do Estado'(e título assim é para ser simpático!)
O máximo de que me lembrei foi enviar-te o e-mail do Paulo Alves,o pessoal e o instituicional(?)já que foi c/ ele que fiz o tal cursito e cuja saída de campo falhei (julgo saberes;um dos contribuidores blog 'v/ vizinho','Das plantas e das pessoas').Pode ser que ele saiba melhor o que/como fazer ou quem contactar, já que duvido? que o ICNB tenha algm sítio para alertas!Salvo se se alertar que os esporos deste feto serão 'mortais' e piores que radiactividade!!Aí sim,talvez se mexessem!
Abraço
Carlos M. Silva

ZG disse...

Excelente post!!

Dylan disse...

Partilho desse seu desencanto. Também eu gostaria de visitar esta Reserva, mas informações nem vê-las...
Tratar-se-á de uma Reserva virtual?!

Rui Filipe disse...

Quanto ás remoções de chorão , muitas das quais , se não todas são da minha responsabilidade, (um amador para os leigos, mas respeitador da natureza),como nessas ações que faço costumo pensar que todo o cuidado é pouco! isto para não destruir as plantas autóctones e voliosíssimas sejam elas quais forem abundantes ou raras!
Com todo o respeito a remoção sem pisoteio é impossível , e antes fazê-lo por quem conhece o local como a palma da mão,que tem conhecimentos sólidos da vida selvagem da zona , e não por grupos desordenados de dezenas de pessoas pagas ou não para fazerem esse trabalho.Eu não sou biólogo nem ecologista ,tenho apenas o nono ano,portanto não vou passar a vida toda a criticar falhados e imcompetentes de braços baixados ou de bolços cheios que nada fazem para proteger o seu,nosso património, pois quando fazem ,surgem por trás outros interesses!!!.Sei que sozinho é uma luta hercúlea , mas há uma coisa que me deixa contente!o facto de saber que nos espaços onde antes haviam chorões ,brotam hoje plantas autóctones.
Os perigos nesta reserva são outros: os cães "assilvestrados" e alimentados com água e ossos á sombra dos pinheiros.Estes nas suas deambulações abrem trilhos,nas dunas o seu pisoteio e o dos humanos vai conferindo á paisagem um aspecto rasante,matam e atacam animais selvagens,abrem buracos,...mas não vou continuar a culpá-los pois eles fazem aquilo que está na sua natureza!; mais, os casais de homosexuais que percorrem incessantemente as dunas e que se lamboseiam criando espectáculos deprimentes á vista de todos,...
No fundo a natureza é que importa e as suas espécies, por isso farei sempre o que estiver ao meu alcançe para a ajudar.
Um abraço

Paulo Araújo disse...

Obrigado pelo comentário, Rui.

(Outra coisa: se quiseres que te mostremos o local do Ophioglossum lusitanicum no Mindelo - acho importante que saibas onde está, caso ainda não o tenhas visto - podemos marcar lá encontro neste domingo à tarde. Contacta-me por email para combinarmos.)

Carlos M. Silva disse...

Olá
Só para isto.
Confirmo (nem era preciso!) o escrito no anterior comentário sobre os cães assilvestrados; já em 2009,na minha última ida -e não voltei lá também por isso- os vi lá e tive algum receio;cheguei a esperar num antigo apoio ao visionamento de pássaros,junto à ribeira(já quase destruído) que se fossem.E de facto alimentavam-nos,mesmo junto às casas, por baixo de acácias.Foi isso que vi nesse longínquo 2009.
Carlos M. Silva

JV disse...

Olá,

A todos os que por suas mãos e iniciativa se vão preocupando com o mundo em que vivemos, deixo o meu obrigado. Sou engenheiro civil, uma espécie muitas vezes mal vista por biólogos e académicos que se dedicam às plantas e aos bichos. Porém, eu não ligo ao que muitas vezes me chamam. Não quero saber! O que quero é que este mundo seja melhor, e de referência que a natureza possa encher os meus olhos de paisagens bonitas, o meus pulmões possam respirar um ar limpo e fresco, etc.
Eu também pelas minhas próprias mãos estou a tentar fazer um trabalho melhor do que aquele que é feito por pessoas de colete amarelo e motores com serras em punho fazem (é de recordar que essas pessoas, muitas vezes de baixo nível académico, fazem o trabalho que outros "cromos" super literados lhes mandam fazer - mesmo assim têm cérebro e é obrigação delas usarem-no). Estou a tentar que a cidade em que vivo seja mais autóctone. Pego numas sementes, enfio com elas em vasos e depois vou a terrenos que estão um pouco abandonados plantar as árvores. Não percebo muito de plantas e dos seus nomes em técnicos escritos em latim. Faço o que posso fazer. Dá-me gozo ver uma árvore crescer. Estou com um "projecto" (isto de dizer projecto faz parecer a coisa mais séria) de plantar árvores autóctones e que deem fruto. Com esta crise, se calhar é boa ideia plantar árvores que deem fruto nas cidades, não? Nunca se sabe.
Bem, passei por aqui pelo vosso blog ao acaso e gostei do que vi. Obrigado por cuidarem do mundo, por cuidarem também de mim.
Podem sempre fazer uma visista em http://na-faina.blogspot.pt/. De vez em quando deixo lá umas fotografias.