10/04/2012

O herborizador implacável

Asplenium adiantum-nigrum L.
Estudar as plantas no campo, longe de bibliotecas e de laboratórios, pode ser tarefa ingrata. Há espécies de identificação imediata, ou que não exigem olho especialmente treinado; mas há muitas outras em que a certeza só se alcança pela observação de detalhes minúsculos ou mesmo microscópicos. Ainda que uma pequena lupa possa resolver certos dilemas, por vezes cedemos à tentação de recolher amostras vivas. Argumentamos, para apaziguar a consciência, que num campo de malmequeres o desfalque de um só não tem qualquer significado. Pois não tem, mas abriu-se um precedente. Da próxima talvez achemos desculpável a colheita quando houver apenas umas poucas dezenas de plantas. Não tarda estamos convertidos em caricaturas de botânicos profissionais, com a sua pá e o seu saco de amostras para enriquecer os museus de plantas secas que se chamam herbários. A diferença é que as plantas que recolhemos acabam no lixo e não em pastas de arquivo. E, tratando-se de populações vulneráveis ou escassas, nem sequer o herbário poderá servir de desculpa à avidez de botânicos pouco escrupulosos.

Está na altura de bater com a mão no peito e admitir a culpa: sim, arranquei a folha que se vê nas fotos; uma única folha, frente e verso. E por que pratiquei eu tamanha crueldade? É que a posição em que os fetos se encontravam, camuflados pela urze na base de um talude, tornava impossível a obtenção de fotos aceitáveis. A folha que arranquei — e a planta tinha muitas mais — exibia os esporângios já maduros e começava a secar. No final da sessão, deixei-a no local de onde a tirei, acreditando que os esporos acabariam por cumprir a sua missão propagadora. Sei que não causei dano significativo à planta, mas a memória do gesto não se me apaga: é como ter vendido a alma a troco de meia dúzia de fotos.

Ora essa — resmunga o leitor — tanto drama por um feto que se vê em todo o lado. Perdoe o leitor a franqueza, mas está enganado, como aliás eu próprio já estive. O feto-negro (Asplenium adiantum-nigrum) é raro em Portugal, aparecendo nuns poucos lugares mais ou menos montanhosos no Minho, Trás-os-Montes e Beiras; mas o fentilho (Asplenium billotii) e a avenca-negra (Asplenium onopteris), que com ele se podem confundir, são fetos muito comuns no nosso país. O Asplenium adiantum-nigrum parece quase um híbrido entre esses dois, o que, sendo o A. onopteris um dos seus progenitores, não anda longe da verdade. (O outro progenitor é o A. cuneifolium, que não ocorre em Portugal.)

O Asplenium adiantum-nigrum não é um híbrido: é uma espécie perfeitamente estável, capaz de se auto-reproduzir por via sexual, enquanto que um híbrido é por regra estéril, surgindo unicamente quando no mesmo local coexistem as espécies que lhe deram origem (embora possa também multiplicar-se vegetativamente). Contudo, estudos cromossomáticos comprovam sem margem para dúvidas que o A. adiantum-nigrum tem origem híbrida. A coisa funciona mais ou menos assim: quando se cruzam duas espécies distintas, cada uma delas dispõe no seu código genético de um certo número de cromossomas, organizados aos pares; e, ao contrário do que sucede na reprodução dentro da mesma espécie, em que os pares se combinam sem falhas, fornecendo cada parente um dos cromossomas em cada par, quando ocorre hibridação há cromossomas que ficam desemparelhados. O resultado desse defeito genético é, regra geral, a esterilidade. Contudo, essa criatura híbrida pode socorrer-se de um truque para conseguir perpetuar-se: em vez de tentar combinar cromossomas incompatíveis, opta por adicionar todos os pares de cromossomas que recebeu dos seus progenitores. No caso destes asplénios, isso significa produzir alguns esporos em que, em vez de 72 cromossomas (ou 36 pares), como há em cada um dos progenitores, há agora 144. Se esses esporos tiverem a fortuna de produzir plantas viáveis, adaptadas ao seu habitat, então elas, por não serem estéreis (os seus cromossomas, apesar de mais numerosos que antes, cumprem a regra do emparelhamento), vão constituir uma nova espécie. Sucedeu assim com o Asplenium adiantum-nigrum e com muitas outras espécies de pteridófitas. Só com a contagem de cromossomas foi possível desvendar-lhes a origem. Há até um jargão para estas coisas: as espécies ancestrais, com menor número de cromossomas, dizem-se diplóides; as suas descendentes por hibridação, com um número duplicado de cromossomas, dizem-se tetraplóides. O processo pode iterar-se, com espécies tetraplóides recombinando-se entre si (o que dá octoplóides) ou com outras diplóides (dando origem a hexaplóides). E por aí fora até se esgotarem os prefixos numerais.

7 comentários :

www.pedradosertao.blogspot.com disse...

Adorei passar por aqui. Imagens incríveis!

Abraço do Pedra do Sertão

@guia-real disse...

E este soberbo trabalho não pára!!
Tudo de bom para vós!
Um grande abraço Montanheiro!

Carlos M. Silva disse...

Olá Paulo e Maria
Entendo os teus escrúpulos por uma 'folhita' que para um leigo como eu 'é uma folhita entre algumas'!! mas lembra uma coisa: se achas (e dizes) que vendeste a alma, não te esqueças que ao vendê-la 'enches a alma' (e as folhas!) de quem por aqui passa e se delicia (e aprende)..por que como os fetos,também os humanos (embora mais maquiavélicos e mais autónomos?) esperam que os seus esporângios frutifiquem(!!!)
Cumprimentos
Carlos M. Silva

Vândalo Verde disse...

Olá Paulo e Maria, tudo bem?
É a primeira vez que estamos passando aqui no blog e achamos bastante interessante. Já estamos seguindo. Temos um blog voltado às boas causas do meio ambiente e, se for possível, gostaríamos que vocês nos seguissem para que possamos trocar ideias! É vandaloverde.blogspot.com
Um abraço

Paulo Araújo disse...

Obrigado pelos simpáticos comentários.

Carlos: a "penitência" pública é também uma maneira de me obrigar a não ser preguiçoso. Por vezes exige paciência encontrar o ângulo certo ou a luz certa para a foto; mas são ossos do ofício, e as plantas não têm culpa.

Miguel: não pára o trabalho mas atravessa uma fase de acalmia. Precisamos de "ir ali" às serras para recolher mais material.

Gi disse...

Paulo, percebo esse sentimento de remorso por se ter faltado aos nossos princípios, ainda que em "pequenas" coisas.

Gostei desta lição sobre híbridos. Obrigada.

Unknown disse...

Parabéns pelo lingo blos e maravilhosas fotos. j´s estou seguindo e convidando para uma visitinha no meu
http://blogdabeteorquideas.blogspot.com/
abraços e um lindo dia