25/03/2013

Mãe galinha


Asplenium X lucrosum Perrie & Brownsey [ = A. bulbiferum G. Forst. X A. dimorphum Kunze]



Junto à entrada dos jardins do Palácio de Cristal, no Porto, mora à sombra das camélias, julgamos que desde sempre, um grande feto muito decorativo, de frondes numerosas, escuras e rendilhadas. Resiste à chuva, ao frio, ao calor e aos maus tratos ocasionais; sobreviveu à instalação do sistema de rega que fez apodrecer as raízes das magnólias; e vai lançando, ano após ano, folhas sempre novas para substituir as que vão secando.

Desvendar a identidade de uma planta possivelmente tão antiga no seu canteiro como as mais velhas árvores do jardim tornou-se-nos imperativo. E o feto apresenta peculiaridades que deveriam facilitar a tarefa. As frondes sofrem de um claro dimorfismo: comparem-se as pínulas largas e achatadas na segunda foto com as pínulas quase lineares nas fotos seguintes. As pínulas largas são estéreis, enquanto que as estreitas são fertéis, com o verso preenchido por uma tira de esporângios (3.ª foto). Outro carácter distintivo é a presença de plantas-bebés produzidas por bolbilhos agarrados à página superior de algumas frondes (última foto): são novas plantas completas, prontas a enraízarem-se quando se soltarem da planta-mãe. Esse comportamento de cada folha funcionar como maternidade, afinal não tão raro no mundo das pteridófitas, acabou por ser decisivo na identificação do feto. Os anglo-saxónicos chamam-lhe mother fern ou hen and chicken fern. É popular em jardinagem e, sendo tão fácil de reproduzir (ele próprio, sem ajuda, se encarrega da tarefa), aparece com frequência no comércio hortícola. Com surpresa por causa do seu porte avantajado, embora a disposição linear dos esporângios esteja de acordo com o normal no género, aprendemos que se trata de um Asplenium: de seu nome completo A. bulbiferum, é originário da Nova Zelândia, Austrália e (segundo algumas fontes) de grande parte da Ásia.

Acontece que esta história, repetida em vários guias de identificação de plantas, está cheia de equívocos que só foram cabalmente esclarecidos em artigo publicado em 2005, na revista Plant Systematics and Evolution, por três botânicos neo-zelandeses: L. R. Perrie, L. D. Shepherd e P. J. Brownsey (veja também aqui). Concluíram os autores que a planta habitualmente cultivada em jardins e vendida um pouco por todo o mundo como Asplenium bulbiferum é na verdade um híbrido estéril, produzido talvez acidentalmente em Inglaterra durante o século XIX, que terá resultado do cruzamento do verdadeiro A. bulbiferum com o A. dimorphum. Estas duas espécies, apesar de geneticamente próximas, nunca teriam oportunidade de produzir um híbrido em condições naturais, pois a primeira é endémica da Nova Zelândia (não tem a ampla distribuição que alguns lhe atribuem) e a segunda da ilha australiana de Norfolk. Curiosamente, o híbrido que durante tanto tempo usurpou o nome de A. bulbiferum é mais cultivado do que o seu progenitor até na própria Nova Zelândia, onde chegou a ser usado em programas de regeneração de espaços naturais. Os estragos resultantes do erro não foram irreparáveis porque a esterilidade da planta, que só lhe permite reproduzir-se por bolbilhos, a manteve confinada a áreas relativamente pequenas. Morfologicamente, o híbrido é uma média perfeita dos seus dois pais, herdando de cada um deles uma característica crucial e distintiva: o dimorfismo foliar veio do A. dimorphum, e a produção de bolbilhos do A. bulbiferum.

O epíteto lucrosum com que os autores do artigo baptizaram o até então mal identificado feto presta jocosa homenagem às qualidades comerciais de uma planta cultivada em cinco continentes. Em Portugal, porém, a sua venda dificilmente seria negócio lucrativo, e por isso os bolbilhos das plantas do Palácio estão a salvo da nossa cobiça.

5 comentários :

Carlos M. Silva disse...

Olá

Autêntica história detectivesca esta vossa sobre o que por aí (por cá) cresce e por vezes mesmo à frente do nariz; certamente nem o Jardim Botânico sabe da missa toda!
Obrigado pela partilha da vossa inquisição 'férnica'.

Carlos M. Silva

Paulo Araújo disse...

Olá, Carlos.

Os fetos são um assunto divertido, também porque os botânicos andaram esquecidos deles durante uns tempos e ficaram ainda coisas por descobrir, mesmo acerca de plantas comuns. Só não te recomendo que te interesses mais por eles porque de outras formas de vida em que dás cartas (como insectos e afins) eu sei menos que zero.

Abraço,
Paulo

bea disse...

Tudo tem uma história. Tudo que existe diz de onde veio, com quem esteve, o que come e etc. É estar atento e disponível. Para olhar. E, neste caso, não só.

Parabéns pelo interesse, paciência e sapiência por aqui repartida. Jamáis entrei no Palácio de Cristal, mas conheço-o e nunca reparei no feto :)
Boa Semana

Carlos M. Silva disse...

Olá Paulo

As cartas que dou ..são blufs visuais; encontros bem mais possíveis - mas casuais pois não sei nem tenho procurado saber das suas épocas de aparição - que alguma vez imaginara; e lembro: sem plantas, sem flores ..boa parte desta bicharada ..não existia! E vice-versa!! se não ajudado ..via-me (e vejo-me) num autêntico zoo ..e cada um mais estranho que outro; apenas ..há mais insectos que plantas ..daí o investimento visual!
Quanto aos fetos ..há pelo uns cá de casa com que me meterei; são apenas 3 ou 4 ..e claro ..muita coisa do que publicaram me ajudará no que falta (e é bastante) da botânica caseira!
Abraço

Carlos M. Silva

Maria Carvalho disse...

Nota da Redacção: O termo estéril foi usado neste texto em duas acepções. Referem-se as frondes estéreis, as largas, por não darem esporângeos. E também se diz que o Asplenium x lucrosum é um híbrido estéril, o que significa que os esporângeos que nascem nas frondes férteis, candidatos a serem plantas novas, na verdade não são viáveis.