09/12/2013

A deusa substituta


Artemisia verlotiorum Lamotte


Artemisa, a deusa grega da caça, da vida ao ar livre e da castidade, deu nome ao género botânico Artemisia, que inclui numerosas espécies fragrantes e com uso culinário e medicinal, entre elas o famoso absinto e a madorneira que reveste as nossas dunas litorais. Algumas espécies são lenhosas, quase arbustivas, outras são herbáceas, outras hesitam entre os dois extremos. Nenhuma se destaca pela beleza da floração: os capítulos florais, que surgem em cachos, têm 4 ou 5 mm de diâmetro e são desprovidos de "pétalas" vistosas (ou, mais exactamente, de florículos ligulados).

A Artemisia vulgaris, que resume de modo perfeito as características do seu género, é uma das cinco espécies de Artemisia espontânea no nosso país. Originária da Europa, Ásia e África, aproveitou o seu uso em cultivo para se naturalizar no continente americano. É uma planta cespitosa, capaz de atingir os dois metros de altura (embora em geral se fique por 1,2 m), com grandes folhas penatipartidas e caules avermelhados, que revela preferência por terrenos baldios e ruderais e costuma florir entre Julho e Setembro. Em Portugal, onde aparenta ser pouco comum, está disseminda pelo norte e centro do território continental.

Percorrendo as margens do rio Minho nos arredores de Valença, deparámos com abundantes populações daquilo que nos pareceu ser a Artemisia vulgaris. A planta aparece na orla de terrenos cultivados e também, em muito maior número, nas ilhas formadas pelos meandros do rio, algumas delas com centenas de metros de extensão mas facilmente acessíveis na maré baixa (e também na maré alta, se calçarmos galochas). O desejo de a ver em flor obrigou-nos a repetidas visitas: só à enésima vez, já com o mês de Outubro adiantado, é que ela acedeu às nossas solicitações. E essa floração tardia e quase a contragosto já nos fazia desconfiar ter havido troca indevida, mais tarde infelizmente confirmada: a deusa da caça não se fazia representar pela Artemisia vulgaris, mas sim por uma contrafacção importada (de onde haveria de ser?) da China, a Artemisia verlotiorum. Esta espécie foi dedicada a Jean-Baptiste Verlot (1816-1891), director do Jardim Botânico de Grenoble, por ter sido ele quem primeiro a distinguiu da A. vulgaris.

Foram duas as provas circunstanciais que nos levaram à identificação correcta: é sabido que a Artemisia verlotiorum floresce de Outubro a Novembro e que, sendo uma planta estolhosa, é capaz (ao contrário da A. vulgaris) de formar populações muito densas por reprodução vegetativa. E, para dissipar quaisquer dúvidas, eram notórios caracteres morfológicos diferenciadores como as inflorescências pendentes (as da A. vulgaris costumam ser erectas) e as folhas menos recortadas.

João do Amaral Franco, no vol. 2 da Nova Flora de Portugal, editado em 1984, assinala a Artemisia verlotiorum apenas no centro-leste do país, mas a sua distribuição actual é por certo muito mais ampla. Não é improvável que esteja em curso a substituição gradual da espontânea A. vulgaris pela sua congénere exótica: as duas espécies, além de morfologicamente próximas, têm preferências ecológicas equiparáveis. Conhecem-se em Portugal outros exemplos do mesmo fenómeno de "render da guarda": a Bidens tripartita, hoje em dia muito rara, foi arredada pela americana Bidens frondosa, com a qual é amiúde confundida; e a Lindernia procumbens, que poderá estar extinta na Península Ibérica, deu lugar à também americana Lindernia dubia.


Valença: meandros do rio Minho

4 comentários :

Carlos M. Silva disse...

Obrigado.
Porquê?
Para além do prazer de vos ler ..discorrendo com sabedoria, motivo mais que suficiente, reside a razão no facto deste vosso post, e tanto quando sei ler e ver as vossas fotos, ter já dado o nome correcto - só agora - a umas que fotografara já em 2009; não cá mas nos arredores de Gredos, em H. Espino. Sobre Artemisia terei tido a certeza(?), mas talvez envenenado pela ignorãncia da coisa, terei achado que era a do Absinto.
Mas não será; não é!; pela data 3/Out., em que as fotografei, pela cor do caule que dizem, pela cor das flores e pela forma como pendem, a vossa escrita diz tudo.
Abraço e ..obrigado.
Carlos M. Silva

bea disse...

hummm...então é uma variedade chinesa, não pura (não nos bastavam as lojas). Mas bonita na mesma:) Lembra a folhagem do malmequer no que tem de ramuda e verde quebrado de recorte.

É bonita mesmo sem flor (ou com esses cotos de flor). Tal como o pedaço de rio que sabemos que corre, mas parece deitado em seu descanso de sesta:)

Boa semana

Paulo Araújo disse...

Obrigado pelo comentário, Bea. As plantas não têm culpa de serem trazidas por nós de um continente para outro, e é um bocado injusto dizer (como eu disse) que esta é uma contrafacção da A. vulgaris. Da China têm vindo plantas de que muito gostamos, como as camélias e as magnólias. Uma boa semana também para si.

Não tens de agradecer, Carlos. Isto aqui é serviço público (embora concessionado a privados), que se manterá enquanto tivermos plantas de que falar.
Abraço,
Paulo

Anónimo disse...

As Artemisia são um daqueles géneros que tinha receio que, de alguma forma me passassem despercebidos, pois tirando as espécies de sapal e duna, nunca tinha visto qualquer outra espécie, ainda que as obras de referência indiquem distribuições mais ou menos extensas em Portugal.
Felizmente, após ver estas imagens, posso dizer que não tenho qualquer noção de ter visto algo semelhante. Elas andam por aí, mas ainda não se cruzaram comigo. No dia em que isso acontecer, já estarei preparado.
Obrigado.

ACarapeto