28/09/2013

Jardim vertical

Asplenium monanthes L.


A flora das ilhas açorianas, especialmente rica em fetos e aparentados, conta no seu elenco com algumas variações muito interessantes do avencão (Asplenium trichomanes), planta que no continente é muito comum em fendas de rochas e muros com alguma humidade. Nos Açores, o avencão não é nada comum e terá mesmo desaparecido de algumas ilhas; segundo Schäfer (Flora of the Azores — a field Guide, 2.ª edição, 2005), a sua presença no arquipélago quase se restringe a habitats construídos pelo homem. Daí que quem julgar vê-lo por lá deverá inspeccionar o achado com alguma cautela, pois poderá tratar-se do A. azoricum, do raríssimo A. anceps (só no Pico) ou do não assim tão raro feto-de-escoumas, assunto do texto de hoje.

O Asplenium monanthes, que ostenta a distinção de ter sido nomeado por Lineu em 1767 e não ter mudado de nome desde essa data, não é um endemismo açoriano; sem deixar de ser nativo do arquipélago, é das plantas mais viajadas que lá se encontram. Já Lineu, na descrição original, dava conta do seu vasto território de ocorrência: América desde o estado do Arizona até ao Chile; ilhas do Havai; África meridional incluindo ilhas atlânticas (Tristão da Cunha, Ilha Inacessível). A que se pode acrescentar Açores, Madeira, Madagáscar e a ilha da Reunião. Este pequeno feto, com folhas de uns 20 cm de comprimento, é um bilhete para a nossa imaginação discorrer por lugares que nunca visitaremos.

O formato peculiar das pinas (confira na segunda e terceira fotos) garante que o observador atento não irá confundir o Asplenium monanthes com algum dos seus primos. O epíteto monanthes, que significa "uma só flor", explica-se por cada pina ter em regra um único soro (agrupamento de esporângios) na página inferior. Enigmático é o nome vernáculo feto-de-escoumas, usado tanto na Madeira como nos Açores.


Terceira: estrada Angra-Biscoitos junto ao Pico da Bagacina
Na Terceira, o A. monanthes encontra-se esporadicamente sob coberto de urze e outros matos, em muros húmidos e bem assombrados, por vezes mesmo em taludes de estradas. O talude com maior biodiversidade em toda a ilha é por certo este junto ao Pico da Bagacina: um jardim autóctone mortalmente perigoso para quem o contemple sem prestar atenção aos bólides que correm disparados pela estrada. Os altos paredões, rasgados para fazer passar a via, são refúgio para plantas que já não existem nos montes adjacentes, convertidos em pastagens. Uma lista incompleta inclui, além do A. monanthes, da urze e da torga, as seguintes especialidades: Huperzia dentata, Platanthera micrantha, Vaccinium cylindraceum, Leontodon filii, Lysimachia azorica, Asplenium scolopendrium, Centaurium scilloides, Hypericum foliosum, Polypodium azoricum, Myrsine retusa, Laurus azorica e Woodwardia radicans.

23/09/2013

Chambre das pombas

Ammi trifoliatum Trel.




As pombas sempre voltam a casa, o que serve de desculpa para regressarmos, um mês depois, ao assunto dos pés-de-pomba açorianos. Pé-de-pomba é o nome que, seguindo a sugestão do Portal da Biodiversidade dos Açores, damos às umbelíferas açorianas do género Ammi. Curiosamente, esse mesmo portal apenas atribui tal designação vernácula à espécie Ammi huntii, de paradeiro desconhecido e existência incerta. As duas espécies que realmente existem, A. seubertianum e A. trifoliatum, não teriam recebido a graça de um baptismo popular. A imaginação do povo pode às vezes ser perversa, mas é inusitado que atinja tal requinte de abstracção.

Para tirar melhor proveito desta lição, o leitor terá a paciência de recapitular a lição anterior sobre o Ammi seubertianum. Observe atentamente as fotos e compare-as com as do A. trifoliatum que hoje ocupam a montra. Há-de notar que as folhas do A. seubertianum são mais largas e lustrosas, com um serrilhado mais regular nas margens; e, embora as fotos não o mostrem, são duras, algo suculentas, enquanto que as do A. trifoliatum são finas e maleáveis. O A. seubertianum é robusto e compacto, o A. trifoliatum é desgrenhado. De facto, as duas plantas nem são muito parecidas, e ao vivo certamente não se confundem. Também a ecologia e a distribuição as separam: o A. seubertianum distribui-se predominantemente por falésias costeiras, ao passo que o A. trifoliatum vive afastada do mar em crateras e ravinas a altitudes elevadas. De todas as ilhas do arquipélago, só numa delas, o Pico, é que as duas espécies coexistem.

Acontece que aquilo que salta à vista quando observamos as plantas no seu habitat pode não ser evidente em material seco de herbário. Há 40 anos, apesar de já então haver ligações aéreas regulares, não seria tão fácil como hoje dar um salto às ilhas para esclarecer dúvidas taxonómicas. Tudo isso, somado à confusa história que rodeia o género Ammi nos Açores, ajudará a explicar por que decidiu Franco, na sua Nova Flora de Portugal (vol. 1, 1971), decretar que nos Açores existia apenas uma espécie endémica de Ammi, a que chamou A. huntii. Eric Sjögren, no seu Plantas e Flores dos Açores (Os Montanheiros, 2001, edição trilingue), parece ter adoptado idêntica opinião, embora chame A. trifoliatum a essa hipotética espécie única. Não é pois de estranhar que sobre ela diga que "a distribuição em altitude e as preferências ambientais ainda são pouco conhecidas".

Para ajudar a deslindar o mistério dos Ammi nos Açores, três botânicos espanhóis, Esther Bueno, Ana Juan e Manuel B. Crespo, publicaram em 2009, nos Anales del Jardín Botánico de Madrid, o artigo Lectotypification of three endemic taxa of Ammi L.(Apiaceae) from the archipelago of the Azores. Os autores notaram que para nenhuma das descrições publicadas das três espécies tinha sido designado um espécime tipo — ou seja, um espécime guardado em herbário que servisse como padrão (ou tipo nomenclatural) para aferir se uma dada planta pertencia ou não à espécie descrita. Nos primórdios da taxonomia botânica sucedia por vezes elegerem-se vários espécimes para, no seu conjunto, funcionarem como tipo nomenclatural, o que era causa de confusão se posteriormente se verificasse que esses espécimes não pertenciam todos à mesma espécie. Seria como descrever um certo mamífero tomando simultaneamente como modelos um chimpanzé e um gorila. Para as três espécies A. huntii, A. trifoliatum e A. seubertianum, os autores escolheram como tipo nomenclatural (diz-se neste caso lectótipo) plantas depositadas no herbário dos Kew Gardens. Para o A. huntii havia um só exemplar em relativas boas condições, e pela descrição que dele é feita tem mais semelhanças com o A. trifoliatum do que com o A. seubertianum. Mas há importantes diferenças com ambos, por exemplo no facto de ter brácteas trífidas, o que o aproxima mais da espécie continental A. majus (naturalizada nos Açores). Embora os autores do artigo não tirem qualquer conclusão, não é improvável que aquilo a que H. C. Watson chamou Ammi huntii fosse afinal um exemplar atípico de A. majus. Daí que há mais de um século ninguém tenha avistado, colectado ou fotografado a planta em nenhuma das ilhas do arquipélago.

Das outras duas espécies de Ammi açorianas completamos hoje no blogue a prova fotográfica da sua existência. Com o detalhe de, no caso no Ammi trifoliatum, o termos feito do modo mais difícil, escolhendo para a sessão fotográfica uma das ilhas onde a planta é mais escassa. De facto, de todo o rectângulo da Terceira, é só na maravilhosa Rocha do Chambre, onde faz companhia à Lactuca e à Pericallis, que esta pomba parece pôr o pé.


Rocha do Chambre, ilha Terceira

20/09/2013

Gaspar & os patalugos


Leontodon filii (Hochst. ex Seub.) Paiva & Ormonde


Há um ano, demos notícias sobre o patalugo-menor (Leontodon rigens), uma espécie de Leontodon endémica dos Açores, de porte grande e corimbos densos de inflorescências amarelas vistosas. É uma planta rara nas cinco ilhas em que ocorre, com excepção das Flores onde se pode encontrar até em bermas de estrada e penhascos costeiros. Faltou então mostrar o irmão, o patalugo-maior, de que há registos em São Miguel, Terceira, São Jorge, Pico e Faial e que, de mais avantajado, só tem os capítulos florais (com muito mais florículos) que são, todavia, solitários e portanto de efeito mais modesto.

Crê-se que as duas espécies descendem de um Leontodon europeu ou da Macaronésia, chamemos-lhe Leontodon-mater. Contudo, o parentesco real entre os dois endemismos açorianos, o Leontodon rigens e o Leontodon filii, que admitimos terem o mesmo ascendente, está ainda por esclarecer. A interrogação justifica-se porque, nas ilhas em que as duas espécies coexistem (Pico, São Jorge e São Miguel), elas competem pelo mesmo nicho, com uma floração quase simultânea (com o L. filii ligeiramente atrasado) e, por isso, podendo até beneficiar dos mesmos polinizadores. Estranha-se esta concorrência em família, e desconfia-se que a razão dela pode ser complexa e difícil de provar.

Alguns botânicos conjecturam que, depois de aportar às ilhas mais orientais, o Leontodon-mater chegou às Flores ou ao Corvo e, por isolamento geográfico num novo ambiente, criou no grupo ocidental do arquipélago uma espécie nova, o Leontodon rigens. Como em alguns mitos gregos, do Leontodon-mater não houve mais notícia, a selecção natural terá agido em conformidade. Entretanto, nas ilhas do grupo central, o Leontodon-mater também se adaptava ao novo habitat e fazia aí aparecer outro endemismo, o Leontodon filii, com idêntico desaparecimento da planta-mãe. Ninguém esperaria, claro, que os dois endemismos, nados em ilhas distintas, fossem idênticos. Não são, de facto: há diferenças notórias na morfologia das inflorescências e alguns marcadores genéticos confirmam a separação das espécies. Mas, admitindo que evoluíram longe um do outro, não é estranho que tenham tantos traços em comum? Que ambos sejam lenhosos na base, tomentosos, com látex branco, só com folhas basais, aceita-se, devem ser feições herdadas da mãe, que desconhecemos, a que não puderam escapar. Mas por que têm ambos, por exemplo, folhas com margens dentadas exactamente com o mesmo perfil, se as muitas espécies de Leontodon no continente variam bastante de forma neste pormenor?

E, voltando à questão que aqui nos trouxe, como é que os dois endemismos surgiram juntos nas três maiores ilhas do arquipélago? Talvez o filho das Flores e Corvo tenha colonizado estas três ilhas, numa viagem de retorno uma geração depois, e o confronto com o irmão não tenha sido prejudicial a nenhum deles. Não há, de momento, indícios de que esta convivência venha a ter como desenlace o fim de um deles — até porque correm boatos de que este patalugo-menor nas ilhas centrais é na verdade um patalugo-médio, o terceiro endemismo açoriano deste género, distinto do L. rigens inicial. Enfim, teremos de reavaliar a situação e voltar ao assunto daqui a, digamos, um milhão de anos.

Interior do Pico Gaspar com Euphorbia stygiana, Leontodon filii, Blechnum spicant, Myrsine retusa e Juniperus brevifolia
O exemplar das fotos pertence a uma população do Pico Gaspar, uma caldeira vulcânica pequena de paredes íngremes e vários narizes, que guarda uma flora notável. Revimos a planta na caldeira de Santa Bárbara, na Rocha de Chambre e até num talude de estrada que parecia um alforje de endemismos.

17/09/2013

Rara alface

As ilhas dos Açores são território recente, tendo a mais nova (Corvo) cerca de 0.7 milhões de anos e a mais idosa (Santa Maria) um pouco mais de 8. Tempo suficiente para lá se instalar flora continental variada. Mas como chegaram as plantas às ilhas? O arquipélago dista hoje do continente europeu cerca de 1300 quilómetros, um pouco mais da América e um pouco menos da Madeira. Parecem distâncias excessivas para que as aves transportassem sementes até lá, ou para estas se manterem viáveis depois de uma longa travessia a flutuar no mar ou levadas pelo vento. O mais certo, porém, é que tenham sido precisamente esses os mecanismos que povoaram as ilhas de vegetação, algumas há menos de um milhão de anos e através de múltiplos eventos de (re)colonização. Crê-se que, nessas épocas, os ventos e as correntes marítimas seriam mais favoráveis a essa migração de plantas para a vizinhança dos Açores, sobretudo as de origem europeia, macaronésia ou africana, e que o oceano Atlântico seria um pouco mais estreito. Certo é que, apesar dos episódios vulcânicos muitas vezes violentos, os indivíduos que ali aportaram tiveram oportunidade de, sossegadamente e em condições climáticas relativamente estáveis, se adaptarem ao novo habitat e a novos polinizadores, se disseminarem para ecologias distintas da mesma ilha gerando novas linhagens, colonizarem ilhas próximas, hibridarem ou isolarem-se, criando-se assim os endemismos açorianos que hoje se conhecem.

Terra Brava — Terceira
A posição geográfica das ilhas não parece favorecer a dispersão e o cruzamento de espécies entre ilhas — a distância entre os sub-arquipélagos central e ocidental é de 218 quilómetros, e de 139 entre o grupo central e o oriental — mas também não deve ter exigido muitos esforços de adaptação da flora, graças a um clima oceânico húmido e a uma história de relativa tranquilidade climática. Porém, talvez estas sejam igualmente razões para o reduzido número de espécies endémicas por cada género e a aparente semelhança florística entre as ilhas, sobretudo quando se compara a flora açoriana com a de Cabo Verde, Madeira ou Canárias. Segundo M. Carine e H. Schäfer (Journal of Biogeography 37, 2010), oitenta por cento dos géneros com espécies endémicas nos Açores abrigam um único táxon e, embora as ilhas se espalhem por uns 600 quilómetros de oceano, contêm apenas quatro endemismos cuja distribuição está confinada a uma única ilha. Por exemplo, e ao contrário do que poderíamos prever, nas Flores, muito mais antiga do que o Pico e tão distante dos outros grupos de ilhas, ocorrem apenas três endemismos (quase) só seus (existem também no Corvo, que dista dela uns 19 quilómetros). Este é um assunto fascinante, que mantém ocupadas equipas de biólogos e geógrafos, confrontados com muitas dúvidas que os fósseis e a flora actual, parte dela em mau estado de conservação, não clarificam. A excepção a este cenário de interrogações é a ilha Graciosa, despojada da sua vegetação espontânea após o seu povoamento e com a percentagem mais elevada de flora introduzida em todo o arquipélago (~70%); é um exemplo paradigmático da nossa capacidade de destruição de ecossistemas. O estudo da flora açoriana é, todavia, recente, e quem sabe se não se descobrirão em breve mais endemismos, ou traços de adaptação ecológica, avisando-nos que afinal a especiação nas ilhas é assunto mais complexo do que parece.

Lactuca watsoniana Trel.



A Lactuca watsoniana, primeiro descrita por Trelease em 1897, é um dos endemismos dos Açores de aspecto mais surpreendente. Tem laços genéticos com a alface das nossas saladas (Lactuca sativa L.), mas a base é lenhosa, pode atingir dois metros de altura e tem folhas de tamanho invulgarmente grande. O nome alfacinha que nas ilhas lhe atribuem é certamente uma amostra do bom humor açoriano. Estas e outras diferenças morfológicas levam a crer que a sua inclusão no género Lactuca deveria ser revista, embora se conheçam espécies americanas deste género de porte igualmente desmesurado. As folhas são cordiformes, carnudas, glabras, as basais com um longo pecíolo, as caulinares a abraçar o caule. As inflorescências lembram as da chicória, mas com florículos brancos-de-neve, 8 a 15 por cada capítulo. Há registo de populações nas ilhas Terceira, São Miguel, São Jorge, Pico e Faial, mas todas com poucas plantas (o total não parece exceder os mil indivíduos) e numa área de distribuição muito restrita (sobretudo em crateras vulcânicas, ravinas e florestas de cedro-do-mato, em geral a altitudes elevadas e em lugares com muita água), onde compete com plantas exóticas, sofre a voracidade dos coelhos e não consegue superar a redução, ou indiferença, dos polinizadores. Por isso está na lista vermelha da IUCN de espécies em risco de extinção.

Encontrámos as primeiras plantas das fotos numa ravina da Rocha do Chambre, na freguesia de Biscoitos, que fica no interior da ilha Terceira. Depois vimos mais exemplares no bordo da caldeira de Santa Bárbara, num recanto sombrio e muito húmido, a uns 920 metros de altitude, pontuado por vários pés da orquídea Platanthera micrantha.

13/09/2013

Santa Bárbara quando não troveja

Serra de Santa Bárbara, ilha Terceira


A minha primeira visita à Terceira foi em Outubro de 2001, para assistir ao concerto de Tommy Flanagan no AngraJazz. Já era tarde para cancelar a viagem quando, a bordo do avião de Lisboa para as Lajes, li no Público (então distribuído gratuitamente a todos os passageiros, e não apenas aos de classe executiva) que razões de saúde tinham forçado uma alteração de programa: em vez de Tommy Flanagan, pianista dos dedos mágicos, teríamos Cedar Walton, músico com longo e estimável currículo. Iria até ao fim do mundo para ouvir Flanagan, mas dificilmente iria à Terceira só para ouvir Walton. As razões de saúde eram graves: Flanagan morreu seis semanas depois, em 16 de Novembro de 2001. Em outubros de anos sucessivos, voltei muitas vezes à Terceira e ao AngraJazz, mesmo sabendo que Tommy Flanagan nunca lá iria tocar, mesmo quando o cartaz não era dos mais promissores. O festival de Jazz era tão só o pretexto para regressar às ruas de Angra, ao jardim Duque de Terceira, à visão da baía do alto do Monte Brasil, ao sossego da Praia da Vitória. Sim, comprava bilhete para todos os concertos, então realizados nos claustros do museu e com os espectadores sentados em esplanada que fingia ser o Village Vanguard, mas com maior tinir de copos, mais conversa e menos atenção aos artistas em palco (sobretudo quando algum infeliz contrabaixista se lançava num solo). A amplificação era ensurdecedora, e esgotante o formato de concertos duplos com arrastados intervalos: o entusiasmo pela música nem sempre me segurava até ao final do segundo concerto, para lá da uma da manhã.

Depois o AngraJazz transferiu-se para o novíssimo Centro Cultural e de Congressos. Melhorou o som, havia mesas mas também lugares nas bancadas para quem preferisse a música à conversa. Até que compreendi, sem menosprezar o festival, que a ilha me bastava como motivo para a viagem, e que, interessando-me por plantas, era estúpido visitá-la apenas no mês de Outubro. É verdade que é nessa altura que a paineira (Chorisia speciosa) do jardim dos Capitães Generais começa a florir, mas também no Porto há uma paineira, embora mais rala de flores. Angra sem Jazz, ou a Terceira sem música, é diurna e sem dores de cabeça, mais apropriada à meia idade que vai chegando.




Este ano, em Agosto, eu e a Maria visitámos a Terceira juntos pela primeira vez. Das minhas visitas anteriores, em grande parte confinadas à cidade de Angra, tinham sobrado pedaços substanciais da ilha por desbravar, e muito do que vimos agora era de igual modo novidade para ambos. Uma ilha tão pequena alberga mundos muito diversos: a faixa litoral, onde as povoações se alongam num casario baixo, quase contínuo; um segundo anel formado por pastagens e plantações de criptomérias; e o núcleo central de montes vulcânicos com um revestimento cerrado de floresta nativa. O visitante de hábitos mais sedentários raramente tem um vislumbre desse terceiro estrato da paisagem insular, e mesmo a maioria dos autóctones parece ignorá-lo. De todas as ilhas açorianas, é a Terceira que guarda a maior e mais bem preservada extensão da floresta de louro e cedro que existia antes da chegada dos portugueses ao arquipélago. A conversa enganadora da "natureza em estado puro" com que se vende o "destino Açores" aos turistas, ilustrada com fotos de hortênsias e lagoas de um azul Photoshop, poderia ter nesta ilha, muito mais do que em São Miguel, um significado genuíno. Mas nem a criação do Parque Natural da Terceira, agregando as mais valiosas áreas naturais da ilha, convence os operadores turísticos a renovarem o discurso.

Não que fosse desejável ter essas áreas invadidas por multidões. A quase inacessibilidade de algumas delas é que garantiu a sua preservação; o silêncio e o isolamento seriam feridos de morte com o rodopio contínuo de turistas. Haveria que restringir os percursos e condicionar a carga de visitantes — coisas que, em parte, já foram feitas, mas não suficientemente divulgadas. A floresta de nuvens da Terceira é tão emocionante e labiríntica como uma floresta tropical. Deveria ser cartaz da ilha, tanto como Angra-património-mundial, o Algar do Carvão e as marradas dos touros.

A caldeira de Santa Bárbara, uma imensa cratera com 13 Km de diâmetro, recheada, qual matriosca, com mini-crateras no seu interior, é talvez o mais valioso pedaço de natureza em todo o arquipélago açoriano, visitável só com autorização do Parque Natural da Terceira. Embora não existam barreiras intransponíveis para quem, clandestinamente, queira descer à caldeira, a verdade é que os trilhos se vêem mal, são cheios de bifurcações enganadoras, e há muitos buracos, ocultos pela vegetação ou por almofadões de Sphagnum (musgão), em que nos podemos magoar seriamente. O nevoeiro pode baixar sem aviso de um momento para o outro, confundindo qualquer senso de orientação. Tudo para concluir que o forasteiro, além de se munir da necessária autorização, deve ter a previdência e a humildade de recorrer aos serviços de um guia.

Foi o que fizemos: a guia por quem tivemos o privilégio de ser acompanhados não poderia ser mais conhecedora nem mais atenciosa. Mas na data aprazada, se não trovejou, o dia amanheceu chuvoso e nublado como nenhum outro durante a semana em que permanecemos na ilha. O estado de encharcamento geral, com as botas convertidas em esponjas, ditou que o passeio fosse algo abreviado. A maior parte da água que se nos agarrou ao corpo provinha não da chuva mas daquela que o nevoeiro fazia condensar nas árvores e arbustos pelos quais rompíamos. Toda a serra funciona como uma grande máquina de captação e armazenamento de água. O interior da caldeira é uma turfeira quase contínua, pontuada por lagoas de margens traiçoeiras. Os cedros-do-mato (Juniperus brevifolia), reduzidos a arbustos ou árvores-anãs, têm os troncos mergulhados no mesmo Sphagnum que cobre as ravinas. Os musgos e os fetos epífitos (Hymenophyllum, Elaphoglossum semicylindricum) formam nas árvores um rendilhado profuso que não deixa sequer adivinhar a cor dos troncos. Tapetes amarelos de Tolpis azorica e de Leontodon filii proclamam, por entre a névoa, que nos Açores a Primavera acontece em Agosto. Três raridades botânicas fazem uma breve aparição: a Scabiosa nitens, a Pericallis malvifolia e o Ranunculus cortusifolius.

Angelica lignescens Reduron & Danton


E a Poderosa Angélica, magnífica como nunca a vimos nas outras ilhas, num contingente de várias centenas de exemplares, tem aqui finalmente o cenário que condiz com o seu porte. Foi para se debruçar vertiginosamente no bordo da caldeira que ela ergueu a descomunal cabeçorra, onde o adiantado da estação fizera já substituir as flores por frutos.

09/09/2013

Cotovia de poupa rosada

Ceratocapnos claviculata subsp. picta (Samp.) Lidén


Não sendo muito frequente, a cotovia-de-poupa-rosada (nome com que acabámos de baptizar a planta acima ilustrada) não é por certo a raridade que as circunstâncias que a têm rodeado podem fazer crer. Como planta anual que é, o surgimento desta delicada trepadeira é efémero. As flores e frutos que a singularizam são miniaturais, potenciando a confusão com a muito mais comum cotovia-de-poupa-branca (Ceratocapnos claviculata subsp. claviculata). Foi Gonçalo Sampaio, que lhe chamou Corydalis claviculata var. picta, quem primeiro registou a sua existência, publicando em 1935 no Boletim da Sociedade Broteriana (ser. 2, vol. 10, pág. 222) a seguinte descrição:
«Encontrei esta interessantíssima variedade em Junho de 1931, nos arredores de Vila Nova de Paiva, onde abundava entre a povoação e o rio, e onde não consegui ver um único pé da forma típica da espécie, que é aquela que aparece no Minho, no Douro inferior e noutras terras da Beira Alta. Distingue-se imediatamente esta variedade por ter as pétalas exteriores laivadas de róseo-subvioláceo e as interiores fuscas na ponta, assim como por ter os frutos pilósulos. É planta verde, não glauca.»

A justeza das observações de Sampaio foi reconhecida quando, em 1953, Franco e Pinto da Silva promoveram a nossa cotovia à categoria de subespécie (Corydalis claviculata subsp. picta), galardão confirmado em 1984 pelo botânico Magnus Lindén quando a transferiu para o género Ceratocapnos. O mesmo Lindén, escrevendo na Flora Ibérica, anotou porém que «não se conservam materiais da colheita original e, ao que parece, não voltou a ser colhida senão numa única ocasião». Ficou pois a ideia de que a planta seria muito rara ou poderia mesmo estar extinta. De facto, para quem conhece as vicissitudes da botânica portuguesa, o episódio não é tanto um sintoma da raridade da planta, mas sim da escassez dos trabalhos de prospecção botânica em território nacional. Quando finalmente, na transição para este século, os botânicos regressaram ao campo, algumas ideias distorcidas e retratos incompletos foram corrigidos. Sabe-se hoje, pelo trabalho de João Domingues de Almeida (Flora e Vegetação das Serras Beira-Durienses, Coimbra, 2009), que o C. claviculata subsp. picta está de boa saúde na Beira Alta, e não apenas em Vila Nova de Paiva; e João Honrado (Flora e Vegetação do Parque Nacional da Peneda-Gerês, Porto, 2003) assinala que a planta é «frequente em matagais de orlas de bosques, na parte oriental do Parque».

O local onde a fotografámos, em Montalegre, já se situa fora do perímetro do PNPG, embora lhe seja contíguo. Mas ainda não nos satisfaz saber pelo testemunho dos sentidos que ela existe. As diferenças já assinaladas por Sampaio em relação à forma típica são tão marcantes que se nos afigura algo arbitrário mantê-la como subespécie; é urgente tirar o assunto a limpo com um estudo moderno, baseado em material colhido de fresco. Além disso, é inacreditável que a planta seja tida como endemismo lusitano, quando em Montalegre a vimos a menos de 7 Km da fronteira galega, sem nenhum obstáculo natural assinalável de permeio. Os espanhóis, em geral tão diligentes no estudo da sua flora, parecem ter descurado este território fronteiriço.

05/09/2013

Pão & queijo (da serra)


Teesdaliopsis conferta (Lag.) Rothm.


Apesar das várias visitas que fizémos no ano passado à serra da Estrela, e de então termos visto uns tantos exemplares desta planta num dos passeios sabiamente guiados pelo CISE, houve que esperar pela Primavera deste ano para se fotografarem as flores. É por isso que só agora a colocamos esta raridade na montra: é um endemismo do noroeste da Península Ibérica e, por cá, só há registo dela na serra da Estrela, acima dos 1500 m. Em Espanha ocorre no norte, na Cordilheira Cantábrica e nos Montes de Léon.

Na nossa primeira ida à serra este ano, procurámos, guiados pela memória (e pelo GPS), o núcleo que tínhamos visto no ano anterior a uns 200 metros da estrada. E lá estavam elas, com as rosetas densas (conferta) de folhas (todas basais) glaucas e glabras, desta vez floridas e em grande número. Julgámos que, com o alargamento das estradas, esta população seria a mais próxima, mas, na verdade, a espécie parece estar a recuperar das obras e a (re)colonizar outros sítios secos e pedregosos, com substrato silicioso. E a boa notícia é que as plantas que encontrámos na berma da estrada são vigorosas e fáceis de detectar.

É, porém, possível que, quando o leitor a for ver, ela já tenha mudado de nome. A designação actualmente aceite é a que Rothmaler (1908-1962) lhe atribuiu em 1940, embora a palavra Teesdaliopsis (que alude à semelhança — opsis — com as plantas do género Teesdalia) tenha sido proposta por Willkomm (1821-1895) em 1880, e a primeira citação da planta seja do botânico espanhol Mariano Lagasca y Segura (1776-1839), que, em 1805, a designou Iberis conferta. Os anais registam outras tentativas de a baptizar: Iberis radicans Lag. ex Nyman, em 1878; Iberis glauca Lag. ex Willk. & Lange, em 1880; e, mais recentemente, em 1998, Teesdalia conferta (Lag.) O. Appel. Esta última proposta, publicada na revista Novon do Missouri Botanical Garden, merecerá, por ser tão fresca, um debate mais apurado.

Os apoiantes da nomenclatura actual enfatizam que as espécies de Teesdalia são anuais, enquanto que a planta das fotos é perene; além disso, chamam a atenção para o facto de no género Teesdalia haver dois óvulos por cada lóculo (e quatro sementes por cada fruto), enquanto que esta planta tem apenas um (logo só duas sementes por cada fruto). Mas o autor do artigo, Oliver Apple, sublinha que estas são diferenças menores face a alguns aspectos morfológicos cuja coexistência é rara na família Cruciferae e que, curiosamente, são comuns a esta planta e a uma ou a ambas as espécies do género Teesdalia. Em particular, Appel refere que as flores, agrupadas em racimos terminais, têm quatro pétalas de dois tamanhos (as externas maiores), tal como a europeia Teesdalia nudicaulis, e que os frutos são alados. Sugere, por isso, que o género Teesdalia passe a abrigar três espécies, entre elas o endemismo ibérico Teesdalia conferta.

Mas a história haveria de ter um novo episódio. Descobriu-se em 2008 (veja as páginas 1357 e 1358 da revista Taxon, volume 57, fascículo de Novembro desse ano) que, seis meses antes de Teesdalia, tinha sido proposta a designação genérica Guepinia para a mesma Iberis nudicaulis L. (agora Teesdalia nudicaulis). Ora, segundo o artigo 11.3 do ICBN (Código Internacional de Nomenclatura Botânica), isso quer dizer que Guepinia tem prioridade relativamente a Teesdalia, e deveria ser esse o nome utilizado. Mas, oh desgraça, o mesmo código contém outro artigo, o 15.2, que impede a palavra Guepinia de ser aqui usada: é que ela passou entretanto a nomear certos fungos, e a emenda seria pior que o soneto. Houve quem, como recurso desesperado, e aproveitando a deixa de Oliver Appel, sugerisse que se legitimasse o nome Teesdaliopsis para as três espécies de Teesdalia: ficaríamos assim com um nome que aludiria à parecença destas plantas... consigo mesmas. Contaram-se argumentos de um lado e de outro, duzentas citações para Teesdalia, menos de dez para Guepinia, e assim, de momento, vence Teesdalia (género que os espanhóis designam incompreensivelmente por pan y queso).

02/09/2013

Longe do paraíso

Anthericum liliago L.
Do paraíso em forma de planta já nos devia bastar a Paradisea que, entre Maio e Junho, enfeita profusamente os lameiros do Gerês. Mas a notícia da existência de uma outra versão da planta, em modelo mais compacto, com menos flores e folhas mais estreitas, e de um modo geral menos vistoso, lançou-nos na habitual busca ao mesmo tempo fútil e recompensadora. Que poderá haver de mais inútil e improdutivo do que admirar uma planta de todos os possíveis ângulos, fotografá-la e deixá-la no exacto local onde a tivermos encontrado? E que poderá haver de mais consolador, pelo que tem de afirmação de liberdade, do que ocupar o tempo com tarefas improdutivas?

Isto é a doutrina geral, cuja aplicação a casos concretos nem sempre é tão exaltante. Procurar uma planta e não a encontrar combina de modo desagradável o inútil económico com o inútil de facto, ainda mais quando a busca decorre em lugar que, na paisagem e na diversidade vegetal, pouco tem para mostrar. Não é bem esse o caso da Queimadela, em Armamar. Aqui, em vez de vinhas, são pomares de macieiras que preenchem os montes, com algumas cerejeiras e restos de antigos soutos à mistura. Há pinhais e zonas de mato mediterrânico a separar as árvores de fruto plantadas em rigoroso alinhamento. Como é habitual na região duriense, o uso de químicos é desvairado, raramente escapando a vegetação de berma de estrada. Os matos e pinhais diminuem de ano para ano com a expansão dos pomares. É tão fácil apontar o que está errado que nos espantamos quando, contas feitas no final, apuramos um saldo altamente positivo para a nossa visita. O pinhal ao fundo da ladeira afirmou-se pela fotogenia, a roselha (Cistus crispus, uma surpresa) tinha flores irresistíveis, as cerejas estavam deliciosas, havia orquídeas raras e outras nem tanto — e, longe da Paradisea, num caminho de terra gretado pelo sol, apresentou-se-nos um único Anthericum liliago com uma única flor aberta (e outro a espreitar no meio do mato). A penúria explica-se certamente pela data tardia em que visitámos o local; mas não sabemos se o atraso foi de semanas ou de anos, e se em 2014 ainda haverá alguma planta para ver.

O populoso género Anthericum, com cerca de 300 espécies maioritariamente africanas, tem no A. liliago, espécie que ocorre em grande parte da Europa (desde a Península Ibérica à Turquia e à Suécia), o seu único representante na flora portuguesa. É uma planta vivaz, que floresce entre Junho e Julho, com folhas lineares, exclusivamente basais, e um escapo de não mais que 70 cm de altura hasteando 6 a 8 flores brancas com pedúnculos bem desenvolvidos (os da Paradisea lusitanica são notoriamente mais curtos). Em Portugal é uma rara moradora de encostas rochosas e clareiras de matos na bacia do Alto Douro.