29/11/2013

Agulha no ribeiro


Bufonia macropetala Willk.


O naturalista francês George Louis Leclerc, conde de Buffon (1707-1788), é o homenageado na designação desta planta, ainda que se tenha perdido um f no processo. Como era frequente naquele tempo, Buffon foi um cientista versátil em vários domínios, não obstante ter errado na sua apreciação da natureza. Entre as suas contribuições mais famosas contam-se livros de História Natural, a participação em inúmeros debates sobre a teoria da evolução — sobre a qual propôs ideias muito válidas enquanto escorregava em deduções irreflectidas —, e a transformação do Jardim do Rei, em Paris, num importante centro de pesquisa em Botânica. Da sua breve passagem pela Matemática conhece-se a experiência com a «agulha de Buffon»: se lançarmos a agulha num papel pautado com linhas paralelas a igual distância entre si (e igual ao dobro do comprimento da agulha), a probabilidade de ela pousar no papel cruzando uma das linhas é 1/\pi, o inverso de um número que, justificadamente, muitos têm em grande apreço.

Buffon, numa abordagem marcada pelo preconceito, acreditava que a falta de sol (ou talvez o seu excesso) e uma dieta inapropriada eram, entre outros factores ambientais, as causas para a diferenciação racial. Além disso, entendia que a humanidade só poderia ter surgido (directamente de Adão) num local acolhedor e soalheiro (mas não em África, claro). Curiosamente, a Bufonia que o recorda parece apreciar afloramentos rochosos em locais onde a temperatura é amena ou mesmo elevada, e por isso ainda exibe flores em Dezembro. É nativa do centro e sul da Península Ibérica e de Marrocos; as plantas das fotos estão na Beira Baixa, nas arribas da ribeira da Isna (em cujos meandros vimos em tempos a Gratiola linifolia) e no solo pedregoso do leito de cheia do rio Ocreza, localizações a cerca de 180 metros de altitude.

Na Península Ibérica ocorrem mais três espécies de Bufonia, todas endemismos europeus ou da região mediterrânica. A B. macropetala é uma herbácea ramificada, lenhosa na base, de 10 a 30 cm de estatura, com as hastes de flores erectas e folhas ciliadas que parecem grãos de arroz-agulha. Talvez por a floração ser tão tardia, quando os possíveis polinizadores já estão a hibernar, emigraram ou cumpriram o seu ciclo de vida, as flores tendem a recorrer à auto-fertilização. A Nova Flora de Portugal, de Amaral Franco e Rocha Afonso, indica que a espécie ocorre na bacia do rio Tua, no centro montanhoso do país e no centro este. Nunca a vimos nas pedras do Tua e, com a barragem, é mais uma planta que desaparecerá da região.


Sertã: ponte do Charco sobre a ribeira da Isna
Na Isna, que apesar do seu percurso de 45 quilómetros não tem estatuto de rio, havia ainda outra surpresa: esta ponte torta, parecendo descansar o cotovelo numa das margens, que com a sua envolvente quase irreal faz lembrar um cenário de banda desenhada.

25/11/2013

Verdes cabelos de água



Groenlandia densa (L.) Fourr.


A serra de São Mamede é um enclave nortenho às portas do Alentejo. Em vez das infinitas estradas rectilíneas, onde os condutores adormecem de tédio, temos curvas e contra-curvas e um sobe-e-desce emocionante à moda do Marão ou das boas estradas minhotas (boas para o enjoo, dirão aqueles que nunca estão contentes). Os grandes espaços abertos cedem lugar a um arvoredo cerrado, e só a predominância dos sobreiros e carvalhos-negrais denuncia a latitude meridional. Os rios quase nada têm a mudar para serem gémeos daqueles que correm nas serras nortenhas: acompanham-nos as mesmas galerias de salgueiros, freixos e amieiros, é a mesma vegetação herbácea que reveste as margens. Saudamos o rio Sever, que nunca tínhamos visto, como quem reencontra um velho conhecido, lamentando que na Portagem o tenham convertido, por uma centena de metros, numa piscina de betão. Mas o rio sobreviveu à afronta: antes e depois da placa de cimento flutuam cabelos verdes que contrastam com o azul transparente das águas.

As plantas anfíbias ou de águas pouco profundas formam um simbólico elo de transição entre os meios aquático e terrestre, recordando-nos o organismo primevo que emergiu do mar para povoar os continentes. Com os estragos que os habitats aquáticos ou paludosos têm sofrido, elas constituem, no seu conjunto, a parte mais ameaçada da nossa flora. Plantas que há 20 ou 30 anos eram comuns, como algumas do género Potamogeton, são hoje de ocorrência esporádica. Qualquer verdura aquática merece por isso a nossa melhor atenção: se não se tratar de uma infestante indesejável (também as há), ela funciona ao mesmo tempo como atractivo botânico e como certificado de limpidez das águas. Que, no caso do rio Sever, é inteiramente merecido.

A serralha-de-água, embora seja muito semelhante a alguns Potamogeton (em especial ao P. perfoliatus), e esteja incluída na mesma família botânica, pertence ao género mono-específico Groenlandia, um nome com ressonâncias nórdicas e friorentas que na verdade homenageia o botânico alemão Johannes Groenland (1824-1891). É uma planta vivaz rizomatosa, habitante de rios e lagoas, de que só as espigas florais assomam ocasionalmente fora da água. As folhas, de um verde claro e translúcido, medem até 4 cm de comprimento; são estreitas, sésseis e opostas, separadas por entrenós de não mais que 2,5 cm.

Em Portugal há registos históricos da Groenlandia densa em quase todas as províncias do continente: a Flora Ibérica só deixa de fora o Algarve, a Beira Alta e o Douro Litoral. No entanto, a sua distribuição real no nosso país deve ficar muito aquém desse retrato optimista. Globalmente, a sobrevivência da espécie não parece suscitar preocupações, pois ela é conhecida originalmente de três continentes (Europa, Ásia e África) e teve artes de migrar para mais dois (América do Norte e Austrália).


Portagem, Marvão. ponte sobre o rio Sever

23/11/2013

Planta de estimação


Odontites viscosus (L.) Clairv. subsp. australis (Boiss.) Jahand. & Maire


As inflorescências em espiga e as flores amarelas, de corola bilabiada e interior difícil de espreitar, fazem lembrar as da Odontitella virgata, mas há detalhes que as diferenciam — nos sulcos da flor, no aroma, no tomento e no visco que as revestem, e até no pólen — e que o olhar ensinado dos botânicos detecta, justificando a separação dos géneros. São, porém, ambas semi-parasitas, por isso pouco exigentes com o solo onde lhes calha nascer, mesmo que seja perturbado, seco ou exposto, embora não desdenhem de um bosque fresquinho de azinheiras, pinheiros, carvalhos ou outras árvores perenes. Naturalmente, aquilo a que chamamos parasitismo entre as plantas pode ser de facto um negócio vantajoso cujas contrapartidas desconhecemos. Ou, quem sabe, as plantas parasitas são os gatos e cachorros das outras, alimentados em troca de companhia e brincadeiras a tentar caçar o vento. Não se pode prever que talentos teremos desenvolvido daqui a uns milhões de anos, mas talvez nessa altura consigamos ouvir as plantas a crescer, a espreguiçar-se depois de um longo sono, algumas a ronronar.

Sendo planta anual, o exemplar que vimos florido numa encosta calcária, junto da população de Nothobartsia asperrima, não estará lá no próximo Verão. Esperemos que a descendência seja farta porque parece planta rara, de cuja ocorrência há registos apenas na Estremadura e Ribatejo. Para essa escassez, por certo contribui o baixo número (muito menor que os das outras espécies do género) de sementes por cápsula, algumas delas, caprichosamente, nem sequer viáveis.

Das nove espécies do género Odontites descritas pela Flora Ibérica, apenas duas são conhecidas em Portugal: além da das fotos, nativa do sudoeste da Europa e noroeste de África, ocorre a Odontites vernus, de flores rosa ou púrpura, que, embora tenha uma distribuição mais ampla, ainda não encontrámos.

19/11/2013

Quatro, cinco ou nada



Potentilla anglica Laichard.


É comum nos Açores, entre a vegetação dos sítios húmidos (categoria que inclui a maior parte dos espaços naturais do território), encontrar em profusão as pequeninas flores amarelas (uns 5 a 8 mm de diâmetro) da tomentilha, ou Potentilla erecta de seu nome científico. A mesma planta é frequentadora assídua de habitats semelhantes em território continental, mais típicos da metade norte do país. Uma variação dessa planta, a Potentilla reptans, distingue-se por ter flores de cinco pétalas (as da P. erecta costumam ter quatro), pelo seu hábito prostrado (o caule enraíza nos nós), e pelas folhas mais largas, com maior número de folíolos. Em Portugal continental a P. reptans aparece no leito de cheia de alguns rios e ribeiros, apreciando particularmente as margens de calhau rolado. Nos Açores, onde é tida, com alguma incerteza, como exótica naturalizada, vê-se raramente, e só em quatro ilhas do arquipélago: São Miguel, São Jorge, Pico e Corvo.

Para compensar essa escassez, ocorre em todas as ilhas açorianas a Potentilla anglica, que não aparece no continente. Uma comparação das fotos acima com as da P. reptans torna clara a afinidade entre as duas espécies. De facto, a forma mais segura de as destrinçar é notar que a primeira sofre de uma hesitação patológica quanto ao número de pétalas com que enfeita as flores: a mesma planta tanto as dá com quatro como com cinco. Nesse e noutros detalhes morfológicos a P. anglica apresenta um carácter vincadamente intermédio entre a P. erecta e a P. reptans. A suspeita de que tenha origem numa hibridação entre as duas espécies é reforçada pela contagem dos cromossomas: a P. anglica é tetraplóide (56 cromossomas) e as outras duas são diplóides (28 cromossomas).

Ainda que não seja improvável vê-las juntas, a P. erecta e a P. anglica mostram, nos Açores, preferências ecológicas distintas. A P. anglica adopta um comportamento mais ruderal e frequenta locais mais secos, aparecendo mesmo em bermas de estrada e em caminhos de saibro. Ambas têm um perído floração alargado, que começa cedo na Primavera e se estende até Novembro.

18/11/2013

Nunca é tarde para ser narciso



Narcissus serotinus L.



Nome comum: narciso-tardio
Ecologia: clareiras de bosques, taludes pedregosos e zonas arenosas
Distribuição global: sudoeste da Península Ibérica e noroeste de Marrocos
Distribuição em Portugal: Alto e Baixo Alentejo, Algarve
Época de floração: de Setembro a Novembro
Data e local das fotos: Novembro de 2013, na margem do rio Guadiana
Informações adicionais: É uma herbácea perene que forma, com o Narcissus cavanillesii, o par de narcisos com floração de Outono que ocorrem em Portugal. As flores, levemente aromáticas e de corola curta com seis dentinhos amarelos, são em geral solitárias e nascem no topo de hastes erectas com uns 20-30 cm de altura. Os polinizadores são insectos, frequentemente abelhas ou, rareando estas em Outubro, talvez os muitos mosquitos que ainda mordiscam nas zonas ribeirinhas. Depois da flor, surge em cada planta uma folha linear de secção semicircular e glabra. Como é usual no género, os frutos são cápsulas com várias sementes escuras. A população que vimos pareceu-nos abundante, tanto quanto a do Ranunculus bullatus que lhe fazia companhia.


Elvas: 2/3 da ponte da Ajuda sobre o rio Guadiana

11/11/2013

A graça de uma cura



Gratiola officinalis L.


Era uso dar graças ao Criador por tudo quanto existia, entendendo-se que dEle vinham sobretudo as coisas boas. Essa gratidão passou de moda, mas plantas como esta, cujo nome Gratiola deriva do latim medieval gratia Dei, que significa graças a Deus, são testemunho dos tempos em que a devoção guiava as vidas. Só a misericórdia divina explicaria a existência, à mão de ser colhida, de uma erva tão extraordinariamente eficaz, nas palavras do botânico suiço Caspar Bauhin em 1623, «para expelir os humores malignos, tanto por cima como por baixo, e para cicatrizar feridas frescas». Com os avanços da farmacopeia e a menor crença na bondade divina, aliados ao facto de a planta ser algo tóxica e provocar intensa irritação das mucosas digestivas, o seu prestígio curativo foi-se apagando. Mas ninguém lhe tira do B.I. o nome latino onde a graça divina é sublinhada pelo epíteto officinalis, denunciador de uma ligação histórica às artes do boticário. É aliás providencial, sinal talvez de que as coisas deste mundo não estão tão mal ordenadas como às vezes parece, que se tenham encontrado fármacos modernos para substituir a Gratiola officinalis, pois a erva-dos-pobres, como já foi chamada, fez-se tão escassa no nosso país que não há pobres nem ricos que lhe cheguem. (À farmácia, pelo menos, ainda os ricos vão chegando.)

Frequentadora, tal como a sua congénere ibérica G. linifolia, de margens de cursos de água, com preferência por leitos de cheia e por águas baixas e de fraca corrente, a G. officinalis tem visto o seu habitat desaparecer a um ritmo acelerado com a construção das barragens, açudes, represas, piscinas de recreio e todo o género de acrescentos postiços com que se artificializam rios e ribeiras. Assim, apesar de a Flora Ibérica a assinalar em sete províncias portuguesas, principalmente nortenhas (Alto Alentejo, Beiras, Douro Litoral, Minho e Trás-de-Montes), até hoje só foram registados no portal Flora-On três ocorrências da espécie em pontos bem afastados do país: Barrancos, Vila Velha de Ródão e Melgaço.

De facto, tratando-se de plantas tão distintivas como as duas gracíolas presentes em território nacional, a escassez de registos só pode explicar-se pela raridade. As duas plantas lançam tufos de hastes erectas com 20 a 50 cm de altura, com as da G. linifolia um pouco mais atarracadas; têm folhas opostas, quase amplexicaules, mais curtas as da G. linifolia, as da G. officinalis medindo até 5 cm de comprimento e com margens dentadas; as flores, que são axilares e solitárias, com longos pedúnculos, apresentam uma corola acentuadamente recurvada, sendo brancas com laivos de creme as da G. officinalis, e rosadas com centro amarelo as da G. linifolia (outras diferenças mais subtis são indicadas nesta página).

A G. officinalis faz companhia ao feto-dos-brejos nas pesqueiras de Melgaço, num rio Minho que permanece milagrosamente livre de barragens no troço que faz fronteira com a Galiza. Oxalá assim se mantenha nas próximas décadas.

09/11/2013

Crista de espinhos

Picnomon acarna (L.) Cass.


Não raro temos a impressão de que não fomos tão favorecidos pela natureza como, digamos, os pássaros ou os gatos. Contudo, em vez de asas ou sete vidas, recebemos um dote que, não sendo de uso tão simples, é igualmente poderoso: a imaginação. É o nosso trunfo, que nos permite antever desfechos do que ainda não aconteceu, e a raiz do talento de quem inventa. Enquanto a sua utilização não está devidamente apurada, os progenitores impedem, num gesto rápido, que o rebento se abeire perigosamente de uma escada, atravesse a estrada sem atenção, mergulhe num riacho sem pé ou toque num espinho de cardo. Chega-se a estranhar este desvelo porque a natureza, a que de algum modo também atribuimos uma faceta maternal, não nos ensina a agir assim. Ela, que não é meiga connosco, deixa-nos entregues ao acaso e ao medo, ou a uma aprendizagem por nossa conta e risco, punindo-nos tanto a ousadia, e inevitáveis enganos, como a hesitação em demasia.

Neste cenário sem certezas, uma planta espinhosa como a das fotos desperta um retraimento espontâneo e um recuo imediato, precisamente os mesmos que protegem a planta de predadores. Por isso, primeiro desviámos o olhar; segundos depois reparámos que não tinha só picos: havia também um leve algodão a cobrir as folhas, que têm consistência coriácea, e, no topo, umas inflorescências corimbosas, de cor rosa-púrpura, defendidas por inúmeras brácteas; de seguida, vimos que o caule tinha asas. Rendidos, libertos desse grilhão que é a cautela instintiva, emendámos a mão e imaginámos que seria uma herbácea rara e especial.

E é. A Flora Ibérica indica, em rascunho, que esta planta (a que Lineu chamou Carduus acarna e os espanhóis tratam por cardo-branco, chicote-de-cristos, crista-de-galo ou espinho-de-caçar-pássaros) é anual e ocorre no Alto Alentejo e no Algarve. Este exemplar é, porém, de Trás-os-Montes, de um torrão junto ao afloramento calcário de Castro Vicente, perto do rio Sabor. E, de facto, a Terra Quente e o nordeste ultrabásico são locais referenciados por Amaral Franco, na Nova Flora de Portugal, para este género monoespecífico. A floração dá-se entre Junho e Agosto; foi sorte nossa tê-la visto no final de Setembro ainda em flor e já com frutos. O tal acaso que também é servo da natureza.


Castro Vicente: cabeço de Santo Cristo e amendoal

04/11/2013

O admirável feto das neves


Dryopteris expansa (C. Presl) Fraser-Jenk. & Jermy


Às vezes é mais fácil deixarmo-nos embalar por ideias feitas, mesmo quando a realidade se empenha em contradizê-las. Imaginamos, nós que não esquiamos nem somos adeptos do turismo de Inverno, que a serra mais alta de Portugal continental se reveste invariavelmente, de Novembro a Março, com um manto da mais alva e fofa neve disponível nos cartazes das agências de viagens. Mesmo que o Photoshop seja convocado para acentuar a brancura e preencher as falhas; mesmo que às vezes as fotos nem sejam da serra da Estrela, mas sim dos Alpes; mesmo que na estância de esqui se prefira a neve artificial àquela pouco fiável que tomba do céu — mesmo sabendo disso tudo, acreditamos que a serra é branca no Inverno, e que, além dos sacos plásticos usados na popular prática do scu, há debaixo da neve vidas em suspenso à espera do degelo. E acreditamos que é em Abril que na serra tudo recomeça: em seis ou sete meses há que dar sentido a um ano inteiro.

Foi em Setembro, já a temporada de 2013 declinava, que pudemos finalmente observar, graças à amabilidade de Alexandre Silva, o Dryopteris expansa, ou feto-macho-das-neves como passaremos a chamar-lhe. Era o cromo que nos faltava dos cinco fetos ou aparentados que, em Portugal, são (quase) exclusivos da serra da Estrela: os outros são o Dryopteris oreades, Lycopodium clavatum, Cryptogramma crispa e Asplenium septentrionale, existindo o último também em Bragança e na ilha da Madeira. Se os ordenarmos por grau decrescente de raridade, a medalha de ouro cabe ao Lycopodium clavatum, ficando a prata para o D. expansa e o bronze para o Cryptogramma crispa. Trata-se de um pódio pouco invejável, pois significa, para essas plantas, que elas estão à beira de desaparecer do nosso país. Só nos pontos mais altos da serra da Estrela é que as temperaturas médias são suficientemente baixas para permitir a sobrevivência dessas espécies adaptadas ao frio e aos invernos impenitentes do norte da Europa. E é previsível que o aquecimento global venha agravar as suas condições de vida.

Como é típico do género Dryopteris, o feto-macho-das-neves mantém estreitos laços de família com outros fetos a que muito se assemelha e dos quais se destrinça com dificuldade. Alguns deles estão consabidamente ausentes do continente português, e por isso não nos devem preocupar. Um outro não frequenta altitudes tão elevadas. Resta, para nos confundir, o D. dilatata, que se supõe, apesar dos consideráveis obstáculos geográficos, ser o resultado do matrimónio entre o D. expansa e o D. azorica. (Há quem se dedique a coscuvilhar a vida amorosa dos fetos, fazendo revelações sensacionais em revistas apresentadas como científicas mas com indisfarçável pendor cor-de-rosa.) Se pudéssemos ser francos, admitiríamos que na prática o D. dilatata e o D. expansa são indistinguíveis — ou, pelo menos, que muitas vezes não se pode tirar qualquer conclusão segura examinando apenas uma ou duas folhas. Porém, estando em causa a nossa reputação, nada como transcrever o cristalino receituário dos manuais que ensinam estas coisas. O primeiro passo é examinar o DNA: o D. expansa é diplóide (84 cromossomas), enquanto que o D. dilatata é tetraplóide (168 cromossomas). Na falta de equipamento de campo para proceder a tal contagem, a morfologia das plantas pode dar alguma ajuda: o D. expansa tem, em geral, as pínulas basais mais próximas da ráquis muito desenvolvidas, de comprimento pelo menos metade do da pina correspondente; além disso, as pínulas do D. expansa costumam ser planas, enquanto que as do D. dilata são algo convexas. Para quem tiver a paciência de esperar, há ainda a bonita cor alaranjada que as folhas do D. expansa adquirem em Setembro, antes de secarem e desaparecerem: ao D. dilatata, por ter folhas persistentes no Inverno, está vedada essa variação cromática.

Na serra da Estrela, o D. expansa ocorre acima dos 1700 m, em populações dispersas e escassas, com uma ou duas dezenas de indivíduos nos melhores casos. Em contraste, o seu congénere D. oreades é frequente e aqui e ali abundante nas cumeadas da serra. Para visitarmos o D. expansa, vimo-nos obrigados a descer uma cascalheira vertiginosa próxima dos Cântaros e a regressar esbaforidamente pelo mesmo caminho. Logo depois estava-nos reservado um prémio pelo esforço, pois encontrámos um novo núcleo da espécie (meia dúzia de plantas) na zona das Salgadeiras, de muito mais fácil acesso.

02/11/2013

Nome digital


Nothobartsia asperrima (Link) Benedí & Herrero


Quando a vimos pela primeira vez, era ainda Inverno, ela exibia, no meio de rochas calcárias da serra de Sicó, apenas uma haste de folhas novas e lustrosas, de cor verde escuro, que nos fizeram lembrar a Euphrasia azorica. Consultadas algumas Floras, conjecturámos que se trataria de uma Nothobartsia — que, como o nome indica (nothos é o termo grego para "falso" e, em latim, notho também se refere a bastardo, não legítimo, como a luz da Lua), é parecida com as plantas do género Bartsia. Houve quem lhe chamasse Euphrasia aspera (Brotero em 1804) e Bartsia asperrima (Sampaio em 1913), mas ainda hoje se discute se deve ser Nothobartsia aspera (designação proposta por Bolliger & Molau em 1992) ou Nothobartsia asperrima (nome proposto por Benedí & Herrero em 2005). Não se tratando exactamente de uma maior ou menor sensibilidade do taxonomista à textura rugosa e peluda dos caules e folhas desta herbácea, a Flora Ibérica decidiu-se pelo último nome, com o fundamento de que a alternativa seria ilegal à luz do código da nomenclatura botânica.

Controvérsias à parte, o que nós queríamos mesmo era ver a planta com flores, que são amarelas com pequenas bossas eivadas de roxo ou vermelho. Ora, as plantas, ao contrário dos bichos e das pessoas, estão presas ao chão, muitas vezes a pequena distância das plantas vizinhas, e não têm meios para arredarem pé e mudarem de casa nem quando são já adultas. Por isso, se o cenário onde moram não estiver em vias de requalificação, não passar por lá a brigada da limpeza-de-bermas, nem lá se instalar entretanto uma pedreira, basta uma nova viagem na altura da floração para reencontrar a planta, desta vez florida. Dito e feito: no fim de Agosto voltámos à serra para conferir a identificação dela e o seu carácter (muito) áspero. A população maior e mais fácil de fotografar que conhecemos está, porém, na serra de Aire, ao cimo de uma ladeira com cerca de 800 m de extensão, carregada de tomilho, roselha-grande, carrascos e azinheiras, além de várias preciosidades.

Esta planta é perene, de base lenhosa, semi-parasita, com ramagem ramificada e talos que podem chegar a um metro de altura. É quase um endemismo ibérico, do sul e oeste da Península Ibérica, havendo também registo da sua presença no norte de Marrocos. Há quem assegure que, em português, o nome vernáculo é escamédrio, mas esta palavra não consta de nenhum dicionário da língua portuguesa que conheçamos.