25/03/2014

Pirilampos selvagens


Luzula sylvatica (Huds.) Gaudin subsp. henriquesii (Degen) P. Silva


A relação entre a Luzula e os pirilampos já foi sobejamente explicada em fascículos anteriores. Detemo-nos agora no adjectivo que completa o título. Se o leitor quiser mostrar que acha a natureza muito gira mas de facto só a conhece da televisão, então deve usar, em todas as possíveis ocasiões, o termo "selvagem" em vez do mais apropriado "silvestre". Fale das nossas "flores selvagens", arregalando muito os olhos para sublinhar o susto, e nunca admita que aquilo que é espontâneo em bosques e prados se chama "silvestre". Selvagem é um lugar cheio de ameaças e rugidos, como os que aparecem nos documentários rodados na Amazónia ou nas profundezas de África. Não é termo adequado à natureza residual e domesticada que nos cabe por herança neste século XXI europeu. Quem já teve oportunidade de contemplar as nossas orquídeas espontâneas não ficou transido de medo mas apenas fascinado, e entendeu bem como seria descabido qualificá-las de selvagens.

De modo que os pirilampos selvagens, que não são pirilampos nem selvagens, pousaram no título apenas como pretexto para uma diatribe lexical. Regressando à temática botânica, sobre a Luzula sylvatica, que é frequente em bosques húmidos e margens de rios na metade norte do país, dir-se-á que a discrição em tons de castanho das suas inflorescências é amplamente compensada pelos tufos de folhas brilhantes que se mantêm verdes durante todo o Inverno. Revela um esforço meritório que floresça durante longos meses, de Março a Agosto, lançando panículas difusas sustentadas por hastes que podem atingir os 80 cm de altura, mas é pelas folhas planas e ciliadas, e não pelas flores, que gostamos dela.

A botânica não é uma ciência exacta, e por isso nela convivem sem desprestígio as opiniões mais desencontradas. Esta Luzula sylvatica é foco de divergências taxonómicas baseadas em certos pormenores morfológicos. Assim, muitos autores sustentam que em Portugal e na Galiza ocorre apenas a L. sylvatica subsp. henriquesii, endémica do noroeste peninsular, caracterizada por ter flores com tépalas mais pequenas do que a subespécie típica. A Flora Ibérica, na revisão do género Luzula publicada em 2010, recorre ao habitual argumento da existência de formas de transição para decretar que a alegada subespécie galaico-portuguesa é indistinguível da subespécie nominal, comum por essa Europa fora. Há sinais de que nem portugueses nem galegos estão dispostos a abdicar de mais este endemismo: por cá, tanto a Checklist da Flora de Portugal como o Flora-On mantêm como válida a subespécie henriquesii, e parece-nos de bom tom alinhar com tão distinta companhia.


L. sylvatica nas margens do rio Bestança

2 comentários :

ZG disse...

Belos pirilampos, sem dúvida! Mais um grande post!!

bea disse...

Pronto, já entendi que dou umas calinadas. Mea culpa. Mas é que prefiro selvagem (o termo não faz por menos,apresenta duas vogais abertas seguidinhas que entontecem), não no sentido de medos e uivos, mas naquele de algo que brota espontâneo e assim se mantém, avesso a qualquer arregimentação, livre.

Afinal são apenas e quotidianamente flores silvestres. Orquídeas selvagens? Mera perfídia linguística.
Agradecida pela lição