08/07/2014

Serapião queimou o bico


Serapias cordigera subsp. azorica (Schltr.) Soó. [= Serapias atlantica D. Rückbr. & U. Rückbr.]


Quem visita o arquipélago açoriano na Primavera ou no Verão não demora a reparar que, embora seja invulgar o dia em que não chove, as temperaturas máxima e mínima diferem pouco e são amenas, rondando frequentemente os 21ºC. É o clima ideal para quem aprecia passeios pelo campo ou pela praia, embora nos primeiros se deva acautelar contra nevoeiros densos e repentinos, e, optando pela beira-mar, tenha de se resignar a uma areia escura feita dos grãos grossos em que o mar vai desfazendo a pedra vulcânica. Nestas ilhas de paisagem paradisíaca, a estabilidade do clima parece ser um traço distintivo na sua curta história geológica: ao contrário de outras ilhas da Macaronésia, os Açores não parecem ter sofrido transições climáticas abruptas, nem períodos de aridez a entremear outros de dilúvio que, noutras paragens, são responsáveis pela diversificação da flora. As plantas que lá se instalaram tiveram apenas de fazer um esforço inicial de adaptação aos novos polinizadores, ao novo solo e à nova ecologia. Se os endemismos açorianos são escassos, isso talvez se deva em parte às extinções locais que a intervenção humana tem vindo a provocar.

No que respeita à flora, as ilhas são (estranhamente, aliás) muito semelhantes. As excepções são poucas, e algumas em vias de desaparecer, seja pela voracidade dos inúmeros coelhos, seja pela agilidade das cabras ou pelo incentivo mal gerido dado à pastorícia. Mas os relógios das ilhas não são idênticos. Na ilha de Santa Maria, mais seca e mais próxima do continente, o início de Junho é já tarde para ver orquídeas, e nesse mês do ano passado não conseguimos ver nenhuma Serapias em flor. Pelo contrário, no grupo central do arquipélago, é em Junho que elas estão no auge da floração; e é em São Jorge que é mais fácil fotografá-las. Não temos dúvidas em reconhecer nas flores das fotos, pelo labelo vermelho escuro e grande, o parentesco desta Serapias com a europeia Serapias cordigera. Contudo (e parecendo desse modo seguir uma regra a que as outras orquídeas açorianas também obedecem), as flores desta Serapias são muito menores do que as da prima continental; e, na ilha do Pico, as flores tendem a surgir, com elevada percentagem, em versões rosadas ou brancas. Por isso, alguns botânicos propõem que se autonomize como espécie (sugerindo o nome Serapias atlantica), enquanto outros optam cautelosamente por uma diferenciação ao nível de subespécie (adoptando a designação Serapias cordigera subsp. azorica).

Não é surpresa que nos Açores haja poucas espécies de orquídeas e cada vez menos efectivos de algumas delas. Afinal, a grande maioria destas plantas prefere solos calcários, e esse tipo de substrato não existe nos Açores. Além disso, as ilhas estão bastante longe do continente europeu ou do americano, e a colonização das ilhas por plantas e animais não terá sido aventura fácil. Ainda assim, das cinco orquídeas conhecidas nas ilhas açorianas, quatro são consideradas endémicas. A mais frequente é, sem dúvida, a Platanthera pollosthanta, talvez por ser menos exigente quanto a fungos e microrrizas. A das fotos, pelo contrário, que ocorre em todas as ilhas com excepção das do grupo oriental, está ameaçada em todas elas pelo uso intensivo dos prados pelo gado, e talvez à beira da extinção em São Jorge. Nesta ilha, resta-lhe o bordo magro dos matos, uns pastos minguados sem acesso fácil para vacas e alguns taludes elevados de estrada.


São Jorge: estrada do Topo
Há ainda, felizmente, uns raros refúgios como o desta última foto. Isso, e cientistas estrangeiros preocupados com a sobrevivência da flora açoriana.


São Jorge: cimo da Fajã dos Vimes

1 comentário :

bea disse...

As ilhas dos Açores têm rara beleza.
Que haja orquídeas espalhadas pelo campo já é um sinal potenciador de pensamentos benévolos; e que sejam exemplares únicos no mundo, ainda mais.