07/10/2014

Rio das ervas sem nome


Carex elata All.


Todas as nossas experiências sensoriais — o que vemos, cheiramos, ouvimos, saboreamos, tocamos — podem, acreditamos nós, ser traduzidas por palavras. Há quem leve tão longe essa crença que ache mais enriquecedor ler um relato sobre um certo lugar, em especial se o autor tiver firme reputação na bolsa de valores da cultura, do que visitá-lo com os sentidos bem abertos. Pablo Neruda chamou Confesso que Vivi ao seu livro autobiográfico. Se algum desses leitores fervorosos publicar uma autobiografia honesta, há-de intitulá-la Confesso que Li.

Essa vida em segunda mão, mediada pelas palavras dos outros, tem vários inconvenientes. O primeiro é que, se não tivermos experiência directa dos objectos ou seres que as palavras descrevem, as imagens mentais que formamos ou são lacunares ou têm fraca semelhança com aquilo que é descrito. Um pinheiro é diferente de um carvalho, um pinhal é diferente de um carvalhal, não há uma coisa indiferenciada e uniforme que se chame «floresta», há sim muitas florestas, cada uma com os seus cheiros e jogos de luz. Mas, se só tivermos uma noção vaga de floresta como uma formação mais ou menos extensa de árvores anónimas, então é o mesmo cenário que nos vem à cabeça quer estejamos a ler sobre os bosques da Noruega ou sobre a mata atlântica do Brasil. As descrições cuidadosas dos mais finos escritores deixam apenas um reflexo baço e irreconhecível no espelho do nosso cérebro.

Essas limitações do leitor podem, no entanto, ser em parte ultrapassadas se houver humildade em reconhecê-las. Passando do receptor ao emissor, um outro problema que afecta a transmissão de experiências através das palavras é a incompletude do nosso léxico. Em suma, não há palavras para tudo. Quem muito palavrosamente tentar descrever um perfume inédito, saberá que quem o ouve não fica habilitado a reconhecer tal perfume e muito menos a recriá-lo: em vez de palavras, fazem falta tubos de ensaio e fórmulas químicas. E há insuficiências que são próprias de determinadas línguas, reflectindo vivências ancestrais em que certas coisas, por não terem importância assinalável, era como se não existissem.

As quase 50 espécies de Carex que ocorrem em Portugal não existem na nossa língua: não há qualquer palavra em português para as designar. Outras línguas europeias são isentas dessa lacuna: os nomes «sedge» (em inglês) e «laîches» (em francês) indicam quaisquer plantas do género Carex, em geral bastante frequentes em zonas húmidas ou inundadas, mas não exclusivas desses habitats. Quem quiser traduzir para português um texto de um autor anglo-saxónico ou francófono que fale destas plantas não o pode fazer sem erro ou sem perda de informação. Se usar junco ou junça comete um erro, pois essas plantas, embora ocupem habitats semelhantes, são diferentes das Carex e, no caso dos juncos, nem pertencem à mesma família botânica. Em alternativa, pode usar um nome generalista e impreciso (como «erva» ou «capim») ou, como último recurso, não tentar sequer dar um nome a tais plantas (traduzindo por exemplo «sedge fen» por «brejo»).

Ficamos então sem palavras para descrever com rigor, e em português de lei, um rio como há muitos na metade norte do país, com o leito pontuado por grandes tufos de verdura compostos por hastes e folhas elegantemente arqueadas. Uma tal descrição impressionista poderá satisfazer alguns, mas não aqueles que prezam uma informação exacta. Assim, a planta ilustrada nas fotos tem o nome científico de Carex elata, em inglês é conhecida como tufted sedge, e os tufos por ela formados podem ultrapassar um metro de altura. Se ao habitat ribeirinho adicionarmos o aspecto geral e as espigas das inflorescências, visíveis de Março a Maio, é de admitir que a identificação da planta não ofereça dificuldades de maior. Não é esse o caso da maioria das espécies do género Carex, em que a distinção pode depender de diferenças subtis na forma dos frutos. De facto, o género Carex é tão intrincado que o seu estudo mereceu um nome à parte dentro do universo da botânica: trata-se da caricologia. Contrariando as suposições fáceis, um caricólogo não colecciona caricas nem compila estatísticas sobre campeonatos de sameirinha, mas dedica-se, em vez disso, ao estudo e classificação das Carex.

Faremos uma breve (e trapalhona) introdução à caricologia num dos próximos fascículos.


Parada de Pinhão, Sabrosa

5 comentários :

ZG disse...

Belo cárex, belas fotos - e que local tão interessante!!

ZG disse...

O Rio das ervas sem nome quase que poderia ser o rio Lethe (que já tem sido por vezes identificado como sendo o minhoto rio Lima), eventualmente próximo dos famosos prados dominados por Asphodelus... (http://en.wikipedia.org/wiki/Asphodel_Meadows)

bea disse...

Que bonito, que bonito, que bonito!!!

Tem razão, não há como ir, estar, sentir a floresta para a saber distinguir de todas as outras na sua unicidade plural (o que não significa imaginar árvores tropicais em países nórdicos e o inverso).

Porém, nem tudo pode ser experimentado, sentido, vivido in loco. E aí os escribas fazem-nos o favor de nos dar uma ideia. Pode ser pálida. Ou não. Há muito lugar - e até pessoas - que não correspondem, a ideia é-lhes superior. Ok, pomos sobre a imagem do escritor a nossa própria com os enfeites imaginários... E há muito outro mundo a que nunca daremos correspondência. Chamamos vida. E é curta. Não dá para metade.

Bem vindas, ó carex!

Anónimo disse...

O rio Lethes, segundo algumas leituras seria o Leça e nao o Lima (como às vezes se lê). Segundo as crónicas romanas, era um rio pequeno e teria sido a similitude fonética do nome com o Lethes o que lhe inspiraria terror. Um bom nome português dos Carez seria cárice, um latinismo. No noroeste ibérico (Leao, Galiza) conhecem-se como carrizas (carriças)

ZG disse...

Sim, a designação cárice já tem sido usada e parece boa, sem dúvida!
Quanto ao rio Leça, também é uma excelente sugestão, de facto!