28/04/2015

Tomateiro do diabo


Solanum linnaeanum Hepper & P.-M.L. Jaeger


A planta das fotos trouxe-nos à lembrança um curto filme de animação que vimos há uns anos. O enredo é uma alegoria sobre a criação: duas nuvens têm a tarefa de gerar, moldando com mãos de nuvem pedaços da própria nuvem, as crias dos animais da Terra. Um par de cegonhas encarrega-se depois de fazer a entrega, sem engano, dos filhotes às respectivas mães. Uma das nuvens, habilidosa e maternal, faz amorosos bebés de gato, tigre, leão, urso e de outros tantos bichinhos fofos, aformoseando orelhas e patinhas com óbvio talento de design. A outra, rabugenta e um pouco estouvada mas artesã igualmente ágil, fabrica com afinco crias de cobra, jacaré, salamandra, aranha, escorpião, animais que nos amedrontam ou em que não vemos encanto especial nas formas e modos dos recém-nascidos. Naturalmente, a cegonha que colabora com a segunda nuvem não está satisfeita com a sua sorte e tenta mudar de emprego. A nuvem chove de raiva mas lá consegue chegar a um acordo: promete tentar fabricar bichinhos mais adoráveis; e o compromisso cumpre-se com um pequenino ouriço-cacheiro, lindo apesar de espinhoso.

Curiosamente, com as plantas, a nossa afeição tende mais para as já amadurecidas, de preferência a florir, ou para as árvores frondosas. Os rebentos parecem-nos ter, em geral, pouca graça, e há até quem os regue em demasia para ver se crescem mais depressa. Mas, se existissem nuvens-oleiros a gerar as plantas, esta de hoje seria criada por uma das ranzinzas. O aspecto geral é o do género Solanum. Vejam-se as flores: as cinco pétalas roxas unidas quase até ao meio que, quando ainda fechadas, formam um balão, abrem-se como flores-estrela tendo ao centro uma coluna amarela de estames a rodear um estilete. Mas a fisionomia crispada da folhagem e a profusão de espinhos causam uma impressão desagradável que nem os frutos jovens, semelhantes a fabulosas bolas de cristal, ajudam a aliviar.

Trata-se de uma espécie exótica, nativa da África do Sul, Moçambique e Zimbabwe, de que, por cá, só se conhecem registos no litoral sul e sudoeste, e sempre em locais ruderalizados. Talvez seja a espécie a que Lineu chamou Solanum sodomeum, e é conhecida em algumas referências inglesas como apple of Sodom. Na dúvida, foi rebaptizada, homenageando-se Lineu, o seu provável primeiro descritor.

25/04/2015

Bagas de sândalo


Osyris lanceolata Hochst. & Steud.
Ao contrário do que acontece com banqueiros e outros especuladores, o parasitismo entre plantas não é muito propício à ostentação. As plantas parasitas são, na sua maioria, pequenas herbáceas com um período de floração curto, ditado apenas pela necessidade de perpetuar a espécie. No resto do ano elas remetem-se a uma invisibilidade que condiz melhor com a sua índole oportunista.

Esta regra geral está, no entanto, sujeita a numerosas excepções que também têm o seu paralelo entre os humanos. Quem testemunha o estilo de vida de um milionário julga que ele terá trabalhado para acumular riqueza; e quem vê árvores ou arbustos pujantes acha que eles, através da fotossíntese, se alimentaram sozinhos para atingir tais dimensões. No entanto, há árvores e arbustos parasitas ou, pelo menos, hemiparasitas. O prefixo hemi, que significa metade, indica que o vegetal em causa, além de sugar várias das plantas que lhe estão próximas, dispõe de folhas verdes e é por isso capaz de realizar alguma fotossíntese. As duas fontes de alimentação, a própria e a roubada, contribuem para a dieta em proporções muito variáveis, havendo plantas hemiparasitas que, em percentagem, são quase totalmente parasitas, e outras que, em caso de necessidade, podem sustentar-se sem ajuda (um pouco como quem perde a fortuna num investimento azarado e descobre, com surpresa, que pode trabalhar para ganhar a vida).

Este Osyris lanceolata — a que, apesar de ser também nativo de Portugal, chamamos sândalo-africano por se encontrar amplamente distribuído no quadrante sudeste desse continente — é um arbusto hemiparasita muito ramificado e de consideráveis dimensões, que amiúde excede os 2 metros de altura. Não sabemos de que grau de parasitismo é culpado: certamente menos do que o seu primo afastado Arceuthobium azoricum (espigos-de-cedro), mas talvez mais do que a extraordinária árvore-de-Natal australiana (Nuytsia floribunda), capaz no estádio adulto de sobreviver mesmo quando toda a vegetação à sua volta é extirpada.

Componente comum dos matos mediterrânicos algarvios, mais frequente perto da costa, o Osyris lanceolata substitui, no sul do país, o seu congénere O. alba, que ocorre no resto do território e tem preferência por lugares mais húmidos e abrigados. Os dois sândalos distinguem-se pela envergadura, com o O. lanceolata a vencer o O. alba em quase todos os parâmetros: na altura (o O. alba raramente ultrapassa 1 metro), no tamanho das folhas (as do O. alba são estreitas, quase lineares, e têm metade do comprimento das do O. lanceolata) e no tamanho dos frutos (os do O. alba são distintamente menores).

O nome sândalo evoca a famosa madeira perfumada originária da Índia, e pode parecer um despropósito usá-lo para designar um simples arbusto. Mas o sândalo-da-Índia (Santalum album) e o sândalo-africano (Osyris lanceolata), além de pertencerem à mesma família botânica, partilham muitas das propriedades aromáticas, tantas que o último é tradicionalmente usado em África para produzir óleo de sândalo.

21/04/2015

Tomilho das areias


Thymus carnosus Boiss.


O suiço Pierre Edmond Boissier (1810-1885) é dos autores botânicos que mais assiduamente nos visita, embora o faça discretamente, usando a abreviatura Boiss. em vez do nome completo. Há duas semanas, porém, ao falarmos desta linária miniatural, nomeámo-lo por extenso. Agora que repetimos a dose convém recordar aos distraídos que o icónico lírio-do-Gerês recebeu o nome de Iris boissieri em homenagem a Edmond Boissier.

Pelo que pudemos respigar em livros e páginas da Internet, Boissier não parece ter alguma vez assumido qualquer cargo oficial ou académico. A fortuna familiar permitiu-lhe dedicar a vida às expedições botânicas e à escrita e edição dos livros em que descrevia as plantas descobertas por si e pelos seus colaboradores. Com uma vincada predilecção pelo Mediterrâneo e pelo sul da Europa, grande parte das 6000 espécies que lhe são creditadas foram colhidas em Espanha ou em Portugal. Desse grupo faz parte o tomilho de hoje, baptizado no tomo II do seu Voyage botanique dans le midi de l'Espagne pendant l'anné 1837. Boissier sublinha que este Thymus carnosus, já anteriormente assinalado nas praias de Setúbal mas atribuído então a uma outra espécie, se singulariza, entre outras coisas, pela consistência carnuda das suas folhas.

Habitante de dunas e de pinhais litorais, este pequeno arbusto, que exibe hastes erectas de não mais que 40 cm de altura e folhas com margens muito enroladas, ocorre apenas na Península Ibérica, e só a oeste do estreito de Gibraltar. A presença na província de Huelva desqualifica-o, por escassa margem, como endemismo lusitano, mas é na costa portuguesa desde a Arrábida até Vila Real de Santo António que se encontra o grosso das suas populações. Fazendo parte da pequena lista de plantas legalmente protegidas em Portugal, a sua inclusão nos anexos da Directivas Habitats é plenamente justificada, embora raramente lhe assegure a protecção que merece. A sua (cada vez mais esporádica) presença nas praias do Algarve nunca fez refrear a construção de hotéis ou de aldeamentos turísticos, nem motivou o impedimento de acesso dos veraneantes a algum areal mais vulnerável.

Vimos o tomilho-carnudo na ilha de Tavira, perto da praia do Barril, e também no Vale do Garrão, num dos fragmentos de pinhal que os espampanantes bairros de vivendas com palmeiras ainda não engoliram. Era aí que um pequeno arbusto, enchendo-se de brios por saber que morava num dos metros quadrados de areia mais caros do país, fazia desabrochar, adiantando-se ao calendário, as duas ou três primeiras flores da temporada.


Vale do Garrão

18/04/2015

Suspiros com folhas de arruda


Pycnocomon rutifolium (Vahl) Hoffmanns. & Link


Guardámos o último dia da nossa estadia no Algarve, em Fevereiro, para visitar o Alvor, lugar que evoca o acordo assinado, em Janeiro de 1975, por Portugal e pelos movimentos de libertação de Angola. Chovia bastante e o ar impregnado de maresia saturava o ambiente, relembrando-nos que ali há outra ria, a de Alvor. Mais uma vez não é bem uma ria mas um pequeno rio, que reúne as águas de quatro ribeiras que nascem na serra de Monchique e que desaguam num estuário largo onde coabitam dunas cinzentas, praias, sapais salgados, terrenos agrícolas, mato natural e pinhal. Este é um habitat classificado como Sítio de Importância Comunitária, galardão que se espera suficiente para que seja devidamente conservado.

Parecia, junto ao caminho para a praia, que alguém fizera dispor inúmeros coxins verdes, de folhas muito divididas, com antenas espetadas, uma ou outra encimada por capítulos de flores brancas. Já nos tínhamos cruzado com estas plantas na Ponta da Areia, em Vila Real de Santo António, mas nessa altura circulávamos num passadiço alto que não permitiu fotografá-las em pormenor. Desafortunadamente, a chuva forte obrigou-nos a abreviar o passeio na praia mas, com dois guarda-chuvas tentando proteger fotógrafo e objectiva, foi possível registar estas flores de Inverno. Parece que a floração da planta atinge o auge no fim da Primavera; suspeitamos que, por essa altura, estes herbáceas altas de folhagem basal densa quase ocultarão a areia com o seu lençol de flores brancas.

O género Pycnocomon contém uma espécie da região mediterrânica (P. rutifolium, cuja distribuição conhecida em Portugal pode ser vista aqui), e um endemismo da Península Ibérica, Pycnocomon intermedium, de flores arroxeadas, que também aprecia solos arenosos, sejam do litoral ou do interior. O leitor pode comparar, nestas fotos sem salpicos de chuva, aspectos morfológicos das folhas, flores e frutos das duas espécies, e obter na mesma página mais informações sobre as suas preferências ecológicas.

14/04/2015

Decifrar os lábios


Cheilanthes maderensis Lowe


São motivo de justificado espanto o zelo e a perspicácia com que os botânicos, esses mexeriqueiros, investigam a vida amorosa dos fetos. Um leigo até apostaria que o assunto é vazio, já que (julga ele saber) é pelas flores que as plantas se amam e se reproduzem, e os fetos nem flores têm. Mas também algum historiador ingénuo poderia pensar que, por força do celibato, nada haveria a contar da vida carnal do clero católico, e afinal foram muitos os filhos de pais incógnitos gerados no silêncio dos mosteiros e das casas paroquiais.

A promiscuidade vegetal tem aspectos interessantes, em particular entre as pteridófitas. Quando se cruzam duas espécies distintas, o mais provável é que o híbrido resultante seja estéril, já que os cromossomas do "pai" e da "mãe" são incompatíveis e não conseguem formar pares perfeitos. Um modo de fintar a esterilidade é, em vez de tentar o emparelhamento, duplicar o número cromossómico, juntando todos os cromossomas dos dois progenitores. O filhote dessa relação é chamado de poliplóide (triplóide, tetraplóide, pentaplóide e assim por diante, dependendo de quantas cadeias de cromossomas herdou); e, tal como sucede com os híbridos, exibe caracteres morfológicos intermédios entre as duas espécies. Trata-se, contudo, de uma nova espécie, capaz de se multiplicar por reprodução sexuada. Ainda que muito raramente um acasalamento interespecífico resulte em poliploidia, calcula-se que ela seja responsável por mais de metade das espécies vegetais existentes à face da Terra. O mecanismo darwinista de evolução e adaptação graduais não é pois o único a actuar na diferenciação das espécies.

Das cinco espécies de Cheilanthes existentes na Península Ibérica (e em Portugal), duas delas (C. hispanica e C. maderensis) são diplóides, significando isto que se situam na base da árvore genealógica. Destas duas e dos seus parceiros de ocasião descendem as restantes três espécies, todas elas tetraplóides: C. guanchica, C. acrostica e C. tinaei. O facto de os poliplóides guardarem a informação genética completa dos seus antepassados imediatos permite identificá-los mesmo em casos de paradeiro incerto. Assim, o que hoje aqui trazemos é o retrato de uma família algo disfuncional, em que se vêem a mãe (C. maderensis, em cima) e o filho (C. guanchica, em baixo) mas falta o pai (C. pulchella), que ultimamente só tem sido visto nas ilhas Canárias. Se a genética fornece provas inequívocas deste parentesco, aquilo que nos é dado observar (com a ajuda da lupa ou de fotos muito ampliadas) torna-o ainda mais plausível: tanto na forma das pínulas como na dos pseudo-indúsios (que no C. maderensis são fragmentados e no C. pulchella revestem continuamente as margens), o C. guanchica é a média aritmética perfeita dos seus progenitores.

Todos os Cheilanthes gostam de lugares secos, vivendo em fendas de rochas ou de muros com maior ou menor exposição solar. Não sendo o apreço pelo sol ou o grau de secura do habitat um dado fiável para diferenciar as espécies, é porém útil saber que o C. acrostica prefere rochas calcárias (sendo por isso o único dos cinco que ocorre nos afloramentos calcários do Centro Oeste, desde Sicó até à Arrábida), que o C. guanchica também gosta de substratos básicos, e que os restantes três se refugiam em rochas siliciosas ou (no caso do C. hispanica) em quartzitos. Sendo o C. hispanica de fácil identificação pela cor ferruginosa do verso das frondes, resta-nos o problema real de distinguir o C. maderensis do C. tinaei. Além do que está explicado nesta página, é de assinalar a presença de pêlos glandulares só no C. tinaei, e de algumas páleas (ou pequenas escamas) ao longo da ráquis do C. maderensis (3.ª foto acima).

O regresso do C. guanchica aqui ao escaparate justifica-se não só para compor este retrato de família, mas também para celebrar o nosso reencontro, na serra do Monchique (Algarve), com um feto que antes apenas víramos na ilha do Pico (Açores).



Cheilanthes guanchica Bolle (fotografado em Monchique, Algarve)

11/04/2015

Sementes que cantam


Ilha de Tavira: comboio da praia do Barril

Planeámos uma visita à ilha de Tavira em pleno Inverno para a conhecer sem o rebuliço da época balnear e ali ver algumas das plantas do areal que preferem florir durante a época fria. Chegados ao aldeamento de Pedras d'el Rei, cruzámos uma ponte estreita e bastante curvada, e embarcámos num vagão com bancos de escola primária, puxado por uma máquina a vapor de brinquedo, que nos levou, sem ruído nem pressa (a distância era curta: apenas 1 Km), até à praia do Barril. Apeados perto do mar, deparámo-nos com várias casas de apoio a veraneantes e com uma longa fiada de casuarinas (Allocasuarina torulosa) — árvores essas que, sem dúvida, garantem abençoada frescura nos meses quentes, mas não condizem com a paisagem que esperávamos encontrar num habitat prioritário do Parque Natural da ria Formosa.

Durante a viagem de comboio notámos, entre a vegetação predominantemente rasteira, uns arbustos de ramagem ondulante pejada de flores brancas.



Retama monosperma (L.) Boiss.


Reconhecêmo-los porque já havíamos visto no Alentejo um arbusto aparentado (Retama sphaerocarpa) que dá flores amarelas durante a Primavera-Verão, e cujos frutos, que têm a casca dura e a semente solta (raramente é mais do que uma) a chocalhar lá dentro, soam como minúsculas cabaças de percussão.

A retama (vassoura em espanhol) que vimos na praia do Barril, e de que se conhecem numerosas populações em dunas secundárias ou em pinhais costeiros do litoral centro e sul do país, é hoje em dia mais fácil de avistar porque tem sido utilizada na revegetação dos taludes e separadores das auto-estradas. Junto ao mar, ela sabe proteger-se do vento e da maresia: os talos novos são penugentos e as flores também se agasalham com basto pêlo; além disso, os galhos sem espinhos são maleáveis e abanam sem quebrar (por isso, fazem-se com eles vassouras afamadas). Nas estradas terá de resistir aos herbicidas e às roçadelas frequentes que por certo deformarão o porte de tamargueira que lhe é característico.

O género Retama, que já se chamou Lygos (termo grego que alude aos talos flexíveis) e talvez venha a integrar-se no género Genista, abriga apenas duas espécies espontâneas na Península Ibérica. A de flores brancas é conhecida como piorno-branco e (quem sabe, também entre os ingleses que frequentam o Algarve) como bridal veil broom.

06/04/2015

Pequenas, amarelas e breves


Linaria munbyana Boiss. & Reut.

Do Algarve a Marrocos ou à Argélia é um pequeno salto, que as plantas deram muito antes do homem e das divisões geopolíticas por ele criadas. Embora discreta e pouco vista, quem sabe se por culpa da floração precoce, a linária de hoje fornece mais um exemplo desses laços transmediterrânicos. Completada a primeira dezena da nossa série de plantas algarvias, verificamos que, com excepção dos dois endemismos vicentinos, todas elas marcam presença tanto a norte como a sul do mar Mediterrâneo. E a Linaria munbyana faz ainda parte, com a Aristolochia baetica e a Phlomis purpurea, do clube mais selecto das plantas que são exclusivas dos quatro países mais ocidentais da bacia mediterrânica: Espanha, Portugal, Marrocos e Argélia. É tentador perguntar se essas plantas euro-africanas são mais de cá ou de lá: tiveram origem na Península Ibérica e daqui passaram para o norte de África, ou foi ao contrário? Talvez a pergunta seja irrespondível ou mesmo disparatada, pois os mares e os continentes não tiveram sempre a configuração que hoje apresentam. Mas, no que toca ao seu reconhecimento taxonómico, a Linaria munbyana é mais magrebina do que ibérica, pois foi a partir de exemplares colhidos na Argélia, perto da cidade costeira de Orã, que o suiço Pierre Edmond Boissier (1810-1885) e o francês Georges François Reuter (1805-1872) primeiramente descreveram a espécie na obra Pugillus plantarum novarum Africae borealis Hispaniaeque australis (Genebra, 1852) — título que em português dá Um punhado de novas plantas do norte de África e do sul do Espanha. O nome que lhe atribuíram, dedicado a Giles Munby (1813–1876), botânico inglês formado em Edimburgo e em Paris, dá testemunho da crescente presença europeia num país que tinha sido anexado pela França em 1830: Munby viveu e trabalhou na Argélia de 1839 a 1860, enriquecendo o conhecimento da flora local com centenas de novas espécies.

As fotos não enganam, e esta é uma daquelas linárias que só admitem viver nas dunas da beira-mar. Do Tejo para norte esse grupo parece ter um único representante, mas se descermos pela costa alentejana a diversidade vai aumentando, e são pelo menos quatro as linárias dunares que enfeitam a costa algarvia. De todas elas, a Linaria munbyana — atingindo 2 a 6 cm de altura, com flores de 1 cm ou menos de diâmetro, e floração de Fevereiro a Março — é certamente a menos vistosa e a que menos vezes é observada. Como planta anual que é, tem a sorte de cumprir todo o seu breve ciclo de vida antes de as praias onde vive serem tomadas de assalto pelos veraneantes. A sua fortuna pode, contudo, oscilar bastante, com as populações a variarem de uns anos para os outros entre muitas centenas e poucas dezenas de indivíduos. A acreditar no que pudemos ver, 2015 terá sido um bom ano para ela.

02/04/2015

O lince e a sequóia

Imagine-se que, depois de toda a comoção e efervescência mediática com o retorno do lince-ibérico a Portugal, é chegado o momento de soltar na natureza os primeiros linces criados em cativeiro. Com muitos jornalistas, fotógrafos, operadores de câmara, políticos e biólogos a postos para a ocasião, eis que os bichos que saem das jaulas de transporte, algo sobressaltados por tanta gente à sua volta, são simples gatos domésticos e não os desejados linces. Contudo, não se ouve qualquer reparo. Talvez apenas ao ministro pareça que alguma coisa nas orelhas dos felinos agora postos em liberdade (e que rapidamente desaparecem de vista) não bate certo com as fotos que consultou à socapa na Internet antes de vir para a cerimónia. O ministro, porém, acha prudente calar-se: não lhe cabe pôr em dúvida a competência dos técnicos especializados que ajudaram a criar os alegados linces, e que agora se quedam emocionados vendo-os ir à sua vida. Quanto aos jornalistas, estão ali para propagar a boa nova e não para fazer perguntas impertinentes. E assim acontece: televisões, redes sociais, imprensa escrita — toda a comunicação social, mostrando imagens dos gatinhos, garante que os linces estão de volta a Portugal. Como de costume, há um ou outro São Tomé empedernido que duvida até do que vê, mas felizmente ninguém leva a sério esses poucos incréus que tentam refutar a notícia chamando a atenção para o pormenor das orelhas.

Se um tal episódio de ignorância e credulidade colectivas é manifestamente improvável quando se trata de animais (embora seja comum a confusão entre lobos e cães assilvestrados), já o mesmo não sucede com as árvores. De facto, a história que a Câmara do Porto engendrou à volta do abate e substituição da sequóia-gigante do Jardim do Carregal teve um desfecho não menos burlesco do que a história imaginária do lince-que-afinal-era-gato. Nem sequer faltaram jornalistas para amplificar o dislate. Jornalistas que, quando para ele alertados, responderam com o silêncio que as pessoas de bem reservam aos interlocutores inconvenientes.

A Câmara Municipal do Porto (CMP) não trata as árvores com especial carinho, sendo bem mais lesta a abatê-las (por razões que nem sempre se entendem) do que a substituí-las. As tílias que há três ou quatro anos foram cortadas à frente dos jardins do Palácio de Cristal nunca foram substituídas. Pelo contrário, encheram-se as caldeiras com paralelipípedos. Noutros locais da cidade onde se fez o mesmo (e foram muitos) usou-se cimento ou alcatrão, mas o resultado foi idêntico: desapareceram não só a árvore mas o próprio lugar da árvore. E o modo como a CMP lida com as suas árvores em nada se alterou com a mudança do poder político.

Mas houve uma coisa que mudou. Se ao vereador faltam força política, competência ou vontade para melhorar os serviços sob a sua tutela, já lhe sobra argúcia para entender que, muito mais do que fazer as coisas bem, importa noticiá-las bem. Entre nós, o desvelo encenado pela árvore ou pela natureza, mesmo sendo oco (coisa que nenhum jornalista se dá ao trabalho de averiguar), garante sempre boa imprensa. Em vez de se plantarem as árvores que fazem falta nas ruas que a CMP se encarregou de despir, o vereador determina que será plantada uma só árvore, mas essa árvore e os eventos criados a propósito dela hão-de ser notícia do maior destaque.

E as coisas pareciam correr a preceito. A morte da sequóia-gigante (Sequioadendron giganteum) do Jardim do Carregal e a sua longamente anunciada substituição renderam, só no jornal Público, nada menos que quatro notícias ao longo de 15 meses (1, 2, 3, 4). Era o vereador a lamentar a perda de uma árvore classificada (coisa que ela nunca foi), era a promessa de que seria substituída por outra da mesma espécie, era o painel com a foto da falecida em contra-luz, era a colaboração dos alunos de Belas Artes.

O leitor por certo já adivinhou o desfecho da história. No meio de tanta festa e animação cultural à volta da árvore, ninguém se lembrou de olhar para ela com olhos de ver. No lugar da anunciada Sequoiadendron giganteum (sequóia-gigante), o que mora no Jardim do Carregal desde 19 de Março é mais um exemplar de Sequoia sempervirens (sequóia-sempre-verde). A segunda destas espécies, ao contrário da primeira, é frequente nos jardins do Porto e de outras cidades portuguesas. No próprio Jardim do Carregal há mais uns vinte exemplares de sequóia-sempre-verde, alguns deles a meia dúzia de metros do exemplar agora plantado.

As duas sequóias têm folhagens muito diferentes, e não é preciso ser-se um fino conhecedor de árvores para as distinguir. Isso mesmo é ilustrado pelas fotos que se seguem, tiradas esta semana nos jardins do Carregal e da Cordoaria (é no último que vegeta uma das duas únicas sequóias-gigantes do Porto; a outra está no Parque de Serralves).


Sequoia sempervirens (D. Don) Endl. — plantada em 19 de Março de 2015 no Jardim do Carregal


Sequoiadendron giganteum (Lindl.) J. Buchholz — fotografada no Jardim da Cordoaria