29/09/2015

Feto limonado



Oreopteris limbosperma (All.) Holub [sinónimos: Lastrea limbosperma; Thelypteris limbosperma]


Os fetos não dão flores e de um modo geral não querem comércio com insectos, e por isso seria despropositado que se fizessem anunciar pelo cheiro. Acontece que o Oreopteris limbosperma — um feto de médio porte com folhas de 50 a 70 cm de comprimento — cheira mesmo a limão, o que é um modo de o distinguirmos de espécies aparentadas como o Thelypteris palustris e a Christella dentata. Não se trata, contudo, de um daqueles perfumes intensos que nos agarram pelo nariz, até porque ele só se manifesta quando esfregamos as folhas com os dedos. Na verdade, o teste olfactivo só serve como tira-teimas e não dá qualquer ajuda na detecção da planta.

Em território português, o feto-limonado só ocorre na Madeira, no Pico e nas Flores, e ter-se-á extinguido no Faial. Nas mesmas ilhas aparece também a Christella dentata: como os dois fetos têm porte e aparência semelhantes, e ambos frequentam recantos sombrios e com forte humidade, põe-se o problema de os destrinçar sem a ajuda do olfacto. De facto, tal problema só se coloca nos meses de Verão, pois o Oreopteris limbosperma tem folhagem caduca, que seca e desaparece no Outono, e só começa a desenvolver folhas novas com a Primavera adiantada. Os caracteres diferenciadores entre as duas espécies são visíveis à vista desarmada, mas a lupa é sempre boa ajuda. A Christella dentata tem a ráquis penugenta, enquanto que a do Oreopteris limbosperma é glabra; neste os soros dispõem-se junto à margem das pínulas (daí o epíteto limbosperma), mas naquela apresentam-se bem afastados; finalmente — coisa que se observa melhor a contraluz — na C. dentata a venação das pinas forma uma rede contínua, mas no O. limbosperma ela é quebrada entre cada pínula e a seguinte (ver foto 5). Outro feto da mesma família também presente nos dois arquipélagos e com preferências ecológicas semelhantes é o Stegnogramma pozoi (feto-de-Pozo), mas aí as diferenças são tão vincadas que só os desatentos poderão fazer confusão. Sublinhe-se, em qualquer caso, que as frondes do feto-de-Pozo são pendentes (as dos outros dois são mais ou menos erectas) e que os seus soros são lineares, desprovidos de indúsio (em contraste, tanto a Christella como o Oreopteris têm soros arredondados).

Deve admitir-se que, por culpa da raridade do Oreopteris limbosperma e destes seus parentes próximos, o receituário anterior terá fraco uso mesmo para os afortunados que vivam nas ilhas ou as visitem com assiduidade. O Stegnogramma pozoi, apesar de ter presença assinalada em quase todas as ilhas açorianas, pouquíssimas vezes é observado; e o Oreopteris limbosperma, ao que consta ainda frequente nas zonas altas da ilha das Flores, sofreu, nas últimas décadas, um recuo acentuado no Pico (onde, em Agosto, o vimos num único local) com as desmatações para expansão das pastagens.

É sabido como as ilhas atlânticas serviram de porto de abrigo para a vegetação que a época glaciar fez desaparecer de grande parte do continente europeu. Na Península Ibérica, os locais onde essas plantas puderam sobreviver funcionam hoje como sucursais da vegetação macaronésia. Viajar pela Cantábria pode ser um pouco como viajar nos Açores, pois se soubermos onde procurar reencontramos velhos conhecidos como o feto-do-botão (Woodwardia radicans) e o feto-do-cabelinho (Culcita macrocarpa). Também o Oreopteris limbosperma e o Stegnogramma pozoi têm um pé nas ilhas e outro na Península, mas as proporções invertem-se: ao contrário dos dois anteriores, são muito mais frequentes no extremo norte de Espanha (e, mais geralmente, no norte da Europa) do que nos Açores. Talvez o porto de abrigo no Atlântico tenha sido para eles uma contingência temporária — não mais do que umas poucas centenas de milhares de anos — e agora que o bicho homem apareceu em cena está na hora de voltar para casa.


Pico: lagoa da Rosada

26/09/2015

Cabeça de plumas


Pterocephalidium diandrum (Lag.) G. López


Se não estivesse em flor, talvez não reparássemos nestas plantas quando nos cruzámos com elas em Vinhais ao seguirmos por um caminho de terra solta e taludes de xisto. Já a tínhamos visto aqui, e até foi uma surpresa que as inflorescências, que nas fotos parecem grandes, fossem afinal diminutas quando comparadas com a altura da haste (uns 70 centímetros). O que chama a nossa atenção de imediato é a penugem a proteger o capítulo de flores (com corolas pequenas de cor violácea), as brácteas ciliadas, e os dois tipos bizarros de aristas nos cálices.

Para que servirão estes apêndices que persistem nos frutos e a nós quase parecem ameaçadores? É provável que impeçam a acção de predadores e ajudem à disseminação dos frutos. Mas talvez tenham também a função de atrair polinizadores especializados nestas flores, beneficiando-os relativamente aos polinizadores generalistas. Esta diferença é importante. É verdade que haver muitas visitas de diferentes polinizadores aumenta a probabilidade de ocorrer a fecundação. Porém, também é plausível que um polinizador generalista, que é inconstante na escolha das flores onde poisa ou recolhe o néctar, transporte pólen de várias espécies e, desse modo, não deposite o pólen adequado na flor certa. O desperdício de pólen e de área no estigma se as abelhas ou formigas lá colocam pólen não compatível, impedindo sistematicamente a fecundação, pode condenar uma população pequena de uma espécie a ficar à mercê do acaso. Por isso, é vantajoso que as flores formem capítulos vistosos e densos (como é comum nas asteráceas e dipsacáceas), onde os polinizadores se demorem como num jantar gourmet; e lucrativo que as populações formem agregados cerrados, com pouco espaço para a presença de espécies competidoras, as tais que distraem os polinizadores e provocam a mistura inconveniente de pólenes.

Esta é uma herbácea anual com uma distribuição vasta em Espanha, e os registos nacionais também são animadores. Em 1805, Lagasca designou-a Scabiosa diandra. O género Pterocephalidium (que alude às tais praganas curvadas nas inflorescências) é recente (proposto por López Gonzalez em 1987), monoespecífico e endémico da Penísnsula Ibérica. O epíteto diandrum refere-se ao par de estames em cada flor (que se podem ver na antepenúltima foto). Não se lhe conhece nome comum, seja em português ou em espanhol.

24/09/2015

Vá aos Açores sem sair de casa


A Ç O R E S

Conhece a vidália? Já viu o pau-branco ou o cedro-do-mato? Já alguma vez encontrou os cubres, a alfacinha ou a erva-do-capitão? Sabe que nos Açores existem quatro orquídeas endémicas? Se vive nos Açores, o portal Flora-On ensina-o a reconhecer as plantas que tem à porta de casa, muitas delas exclusivas do arquipélago. Se mora longe e planeia uma visita, o Flora-On proporciona-lhe uma quase completa antevisão (com fotos, mapas de distribuição e informações ecológicas) da extraordinária e tantas vezes ignorada flora endémica das ilhas.

22/09/2015

Descomplicar o codesso

Adenocarpus complicatus (L.) J. Gay


Não são muitas as plantas que têm nome genuíno em português; se não as soubermos reconhecer, é a língua que empobrece com as palavras que vão caindo em desuso. Vamos então repetir as vezes que forem necessárias, escandindo pausadamente as sílabas: CODESSO. Os codessos (género Adenocarpus) são diferentes das giestas (género Cytisus), e com um pouco de atenção não custa nada tratar cada coisa pelo nome certo. Os codessos são arbustos mais compactos e arrumadinhos, com folhagem de um verde mais vivo, e as suas flores, dispostas ordenadamente em espigas, têm metade do tamanho das flores das giestas mais comuns. Se na ausência de espinhos e no formato das folhas trifoliadas os dois géneros se assemelham bastante, podemos ainda assim notar que as folhas do codesso têm em regra um pecíolo bem mais comprido e, além disso, são persistentes, enquanto que em muitas giestas a maioria das folhas já caiu por altura da floração. Como último pormenor distintivo podemos atender aos frutos (vagens), que nas giestas são muito variáveis mas sempre mais ou menos penugentos, e nos codessos se apresentam revestidos por glândulas pecioladas de cor castanha (ver 3.ª foto).

Ao leitor não faltarão oportunidades para testar os seus conhecimentos, já que tanto codessos como giestas são comuns em boa parte do território continental. Ambos se apressam a colonizar campos abandonados ou taludes de estrada, fazendo também parte dos matos que se instalam em clareiras de bosques e substituindo o arvoredo nos lugares onde a floresta foi devastada. Se o pastoreio, as queimadas e os incêndios não travassem o processo de sucessão ecológica, esses matos converter-se-iam gradualmente em carvalhais.

A maior complicação associada ao codesso é que a espécie ilustrada nas fotos (justamente o Adenocarpus complicatus) não é a única que ocorre em Portugal. Contudo, as três espécies mais comuns, todas de aspecto muito semelhante, têm distribuições quase disjuntas, o que facilita a tarefa de as identificar: o A. anisochilus, que é um endemismo lusitano, aparece no Algarve e Costa Vicentina; o A. lainzii, tido por endemismo ibérico, surge no noroeste (apenas a norte do Douro, mas incluindo todo o Minho); e o A. complicatus está espalhado pelo interior do país desde a serra de São Mamede até Trás-os-Montes (mas excluindo o Minho). Nada impede, porém, que, com os movimentos de terras das grandes obras ou através de boleias involuntárias (as glândulas tornam as vagens agarradiças), algumas sementes sejam transportadas para longe do seu local de origem. O leitor consciencioso não deverá pois fiar-se por inteiro na geografia ao decidir a que espécie pertence determinado codesso, sobretudo se se tratar de um exemplar solitário. Além do mais, o A. lainzii e o A. complicatus co-existem ao longo da linha que vai do Marão ao Gerês. O único modo seguro de os distinguir é pelo cálice das flores, que no A. lainzii (mas não no A. complicatus) está recoberto por glândulas (foto aqui).

19/09/2015

Aeroportos & charcos

Há uns anos, a propósito da extinção em Portugal da orquídea Epipactis palustris, lembrámo-nos da carta que, a 4 de Julho de 1901, Gonçalo Sampaio escreveu a Júlio Henriques, onde anunciava «Cheguei ante-hontem de Ilhavo, onde encontrei algumas plantas interessantes... A Epipactis palustris é ali abundantissima e forma, em localidades, pradarias em que se podia colher aos carros. Colhi muitos exemplares...» Nessa altura, um leitor anónimo reagiu perguntando «Desapareceu? Porquê e onde?» Curiosamente, face ao extravio de uma coisa valiosa, a nossa reacção é com frequência precisamente esta. Talvez porque nos alivie ter uma explicação convincente sobre os eventos que conduziram à perda, como se assim aprendêssemos a evitar contratempos idênticos. Igualmente importante parece ser conhecermos onde o prejuízo aconteceu, mantendo acesa a esperança de, voltando ao local, reavermos o que se perdeu. Mais tarde achamos graça e, suspirando, confessamos algo como «Se soubesse onde perdi o brinco, não estaria realmente perdido.»

Por tudo isto, não nos surpreende que os lugares onde os registos antigos dos herbários indicam a presença de espécies entretanto desaparecidas sejam hoje escrutinados pelos cientistas em busca de possíveis sobreviventes. Porém, reencontrar as localidades onde há um século vicejavam plantas interessantes, ou onde se situavam as pradarias de Epipactis palustris de que fala G. Sampaio, é na prática impossível. Os apontamentos em herbários de outrora são vagos, sem coordenadas ou referenciais, servindo-se muitas vezes de indicações geográficas que entretanto deixaram de ter uso corrente. Mas os botânicos conhecedores e experientes guiam-se pela ecologia, pelo tipo de solo, pelas associações entre plantas, e outros parâmetros biológicos preciosos, e não raro redescobrem populações em locais que se julgavam degradados e sem valor.



Cheirolophus uliginosus (Brot.) Dostál


Tal como a orquídea a que aludimos, a asterácea que está hoje na vitrina já terá sido abundante no que actualmente se designa Área Metropolitana do Porto. Restam pequenos redutos onde a procurar, em Portugal ou em Espanha, e as populações conhecidas são dispersas e com tendência a regredir. É um endemismo da Península Ibérica que aprecia solos pantanosos, turfosos ou arenosos encharcados, sempre mais ou menos próximos do mar. Mas esses habitats praticamente desapareceram da nossa faixa litoral, ou estão irremediavelmente estragados com a construção de casas, portos, aeroportos e instalações industriais, a que se somam o desvio, entubamento ou poluição de ribeiras, e o uso intensivo da beira-mar para fins de lazer. Contudo, Paulo Alves conseguiu reencontrar o Cheirolophus uliginosus num eucaliptal em Matosinhos, mesmo ao lado do aeroporto do Porto, com solo macio e profusamente irrigado. Estas fotos são das plantas desse recanto peculiar.

Do género Cheirolophus só se conhecem três espécies ibéricas, duas em Portugal continental: a C. sempervirens, planta de base lenhosa que vive em orlas de bosques, taludes e afloramentos rochosos; e a C. uliginosus, herbácea vivaz com hastes fistulosas, capítulos florais solitários com pedúnculos compridos que parecem clavas e que nascem no topo de caules que podem atingir cerca de metro e meio de altura. As flores são de cor magenta, as marginais femininas, as do centro masculinas. Brotero designou-a Centaurea uliginosa em 1804, mas mudou de género em 1976 pela mão do botânico checo Josef Dostál (1903-1999), e é esse o nome em vigor.

15/09/2015

Perfume de Verão



Magydaris panacifolia (Vahl) Lange


Como um comerciante que mantém a loja aberta por ser essa a sua vida, e tem que garantir aos seus clientes que o mais recente produto para venda é uma maravilha e o melhor de sempre, mas sem desfazer dos produtos não menos extraordinários que antes vendeu aos mesmos clientes — também nós nos vemos compelidos a anunciar que esta é a nossa melhor umbelífera de sempre. Macia ao tacto (quase a diríamos aveludada), elegante no porte, disseminando um perfume de baunilha que evoca inocentes prazeres de Verão, a Magydaris panacifolia (que não tem nome em português) gratifica-nos os sentidos sem pedir nada em troca. Contudo, talvez o júri para a atribuição do prémio de beleza, picuinhas como é sua obrigação, faça reparo às folhas por destoarem do conjunto: são muito grandes, sobretudo as basais, desenhadas a traço grosso e não finamente divididas como é típico das umbelíferas; na textura, cor e nevação fazem lembrar as couves dos nossos quintais. Como atenuante há o facto de em meados de Julho, quando se dá o auge da floração, as folhas basais estarem em grande parte secas; e de, no resto do ano, essas folhas tão peculiares e inconfundíveis nos alertarem para a existência da planta, convidando-nos ao regresso na estação certa. Tudo ponderado, o júri poderá confirmar o favoritismo da Magydaris panacifolia, mas talvez a obrigue a partilhar o degrau mais alto do pódio com (pelo menos) uma dezena de outras umbelíferas.

Foi por lhe termos visto as folhas em Abril de 2014 que regressámos a Campo de Víboras (Vimioso) no Verão do ano seguinte. A julgar pelo mapa de registos no portal Flora On, a Magydaris panacifolia distribui-se, no nordeste do nosso território, por uma faixa de 30 ou 40 Km de largura ao longo da fronteira, mas no sul do país, onde é mais frequente, já se aproxima da costa. A sua predilecção por climas mediterrânicos reflecte-se na distribuição global: Península Ibérica, Marrocos, Argélia e Tunísia. A Flora Ibérica atribui-lhe uma preferência por lugares secos e terrenos baldios que, à primeira vista, não é corroborada pelos prados sombreados por freixos onde a encontrámos. Mas entre as duas visitas o lugar tinha-se transformado: as valas que irrigavam a frescura primaveril dos prados tinham secado, o verde convertera-se num amarelo de palha, o calor era sufocante já em meados de Julho.

Na falta de elementos de comparação nas fotos, é útil informar que a Magydaris panacifolia é uma planta robusta e de estatura respeitável, podendo atingir ou mesmo ultrapassar os 2 metros de altura. Ramificada, exibindo numerosas umbelas floridas, cada uma com vinte a trinta raios, é quase tão vistosa como a canafrecha (Ferula communis), outra umbelífera que abundava em Campo de Víboras. Para não roubar protagonismo à vizinha, a canafrecha tinha florido mais cedo. É que não valia a pena entrar em disputas azedas, pois no nosso pódio há lugar para todas.


Campo de Víboras — Julho de 2015 (veja aqui foto do mesmo prado em Abril de 2014)

12/09/2015

Em São Jorge, com um brilho nos olhos

O género Euphrasia, da família Orobanchaceae, abriga cerca de três centenas de espécies de plantas hemiparasitas, algumas minúsculas, outras com porte arbustivo, e outras ainda podendo não depender de um hospedeiro para sobreviver. Na Península Ibérica, conhecem-se nove espécies e mais uns poucos híbridos. A Flora Ibérica aponta consolo-da-vista como nome comum em português para as plantas do género Euphrasia, alegando o seu uso tradicional para alívio de males dos olhos. Custa a crer, porém, que por cá (no continente) haja alguma designação vernácula para elas, pois só há registo de duas espécies, a E. hirtella e a E. minima, ambas com presença muito escassa e apenas na região de Trás-dos-Montes.

A destrinça entre as muitas espécies de Euphrasia nem sempre é fácil porque a hibridação é frequente neste género que, além de exibir esquemas bastante eficientes de adaptação a novos habitats, parecendo mesmo beneficiar de algum isolamento geográfico, sabe activar, se necessário, mecanismos de transição para uma auto-polinização dominante. São mais frequentes em regiões de clima temperado, notando-se que as de montanha são, em geral, anuais e pequeninas, como as três ou quatro espécies que vimos em flor na Cantábria em Julho, e que não ultrapassavam os 5 centímetros de altura.



Euphrasia grandiflora Hochst.


Neste contexto, os dois endemismos açorianos, a E. grandiflora e a E. azorica, ocupam um nicho muito especial: no hemisfério norte, só as Euphrasias açorianas são plantas perenes. São espécies muito raras e receia-se que estejam em declínio, apesar de ambas constarem da Convenção de Berna e da Directiva Habitats como muito vulneráveis, a exigir medidas de conservação imediatas.

Sendo ambas herbáceas erectas e altas (quase meio metro de altura), é fácil distingui-las pelas folhas (opostas, obcordiformes, de pecíolo curto e nervuras em leque, mas na E. azorica parecem romboidais por causa do ápice aguçado), através da arquitectura da folhagem (na E. grandiflora a ramificação nos talos parece começar mais perto da base das plantas) e pelo tamanho das flores (apesar do nome, os cálices da E. grandiflora são menores). Mas ainda que estivéssemos desatentos a estes pormenores morfológicos, a confusão não seria possível: a E. azorica só ocorre nas ilhas das Flores e Corvo, onde habita sítios húmidos de ravinas, crateras e rochedos de lava entre os 100 e os 500 metros de altitude, enquanto que a E. grandiflora é herbácea de montanha, acima dos 750 metros, e só existe no grupo central do arquipélago. Aparece em clareiras de matos de Erica azorica e Juniperus brevifolia, ou em prados naturais de zonas declivosas junto a escoadas lávicas ou bordos de crateras. Julga-se que parasita gramíneas endémicas (Festuca francoi, Deschampsia foliosa ou Holcus rigidus) ou asteráceas também endémicas (Tolpis azorica, Lactuca watsoniana, Leontodon filii).

Na ilha do Pico (onde foi recolhido o holótipo com que Watson descreveu a E. grandiflora em 1844) resta uma população pequena; na Terceira só se conhece um número reduzido de indivíduos na serra de Santa Bárbara; há registos antigos da sua presença no Faial, mas julga-se que ali está agora extinta; e na Graciosa nunca foi avistada.

É na ilha de São Jorge que moram as populações mais abundantes. E foi no Pico da Esperança e em pastagens do Planalto Central que a vimos no ano passado (em Junho, só as folhas) e a revimos este ano, em Agosto, já em flor.


Pico da Esperança, São Jorge, Açores

08/09/2015

Sabedoria provisória



Hedypnois cretica (L.) Dum.-Courset [= Hedypnois rhagadioloides (L.) F. W. Schmidt]


Ninguém pode honestamente declarar-se entendido em plantas enquanto não for capaz de reconhecer uma boa mão-cheia de gramíneas ou não souber destrinçar algumas das inúmeras variações do dente-de-leão. É esse o teste que aplicamos a nós mesmos para nunca perdermos de vista o quanto somos ignorantes. Mas de vez em quanto o nosso amor-próprio revolta-se por se ver tão amarfanhado e, virando-se para nós, diz com a voz sonante de um guru de auto-ajuda: yes, you can. Momentaneamente animados pela exortação, debruçamo-nos sobre uma dessas plantas insignificantes e levamos a cabo demorada sessão fotográfica. Chegados a casa, consultamos livros e portais da Internet para tentar resgatar do anonimato a planta fotografada. Nessa tarefa somos em regra bem sucedidos, mas estamos sujeitos a falhar quando as fotos, nem sempre por inépcia do fotógrafo, não captam os detalhes que permitiriam distinguir entre espécies muito próximas. E, é bom lembrá-lo, há géneros botânicos, como o Taraxacum (reunindo os verdadeiros dentes-de-leão), que não se deixam desvendar por amadores, e às vezes nem por profissionais.

Ainda que essa prática seja algo intermitente, é um facto que ela nos permite ir conhecendo pelo nome muitas das plantas que o vulgo costuma desprezar sob o nome abrangente de "ervas daninhas". Podemos (quem sabe?) ter esperança de que o dia virá em que não chumbemos clamorosamente no teste descrito no primeiro parágrafo. Acontece, contudo, que identificar alguma planta não é o mesmo que sabermos reconhecê-la, e que o nosso cérebro tem lotação limitada: quando nele arrumamos um novo conhecimento, há algum outro que é empurrado para o desvão do esquecimento definitivo. Acima de um certo patamar (ou a partir de certa idade), o saber deixa de ser cumulativo para passar a ser substitutivo.

Uma das plantas que aprendemos recentemente e ainda não esquecemos foi esta asterácea anual da região mediterrânica, Hedypnois cretica, que, pelas folhas e pelos capítulos florais, faz lembrar um dente-de-leão em miniatura. Tal como nos dentes-de-leão genuínos, os capítulos (que neste caso têm menos de 1 cm de diâmetro) são só constituídos por florículos ligulados, enquanto que nos malmequeres os florículos centrais (que formam o disco) são diferentes dos periféricos (que dão as "pétalas"). Porém, ao contrário dos dentes-de-leão, os papilhos do Hedypnois cretica não são plumosos mas sim formados por escamas rígidas (penúltima foto), o que significa que os frutos, em vez de se deixarem levar pelo vento, preferem apanhar boleia agarrando-se à nossa roupa ou ao pêlo dos animais. Outros caracteres distintivos do H. cretica são os pedúnculos engrossados e as brácteas involucrais, que têm forma quase linear e ficam duras e recurvadas aquando da frutificação. É uma planta com um comportamento semi-ruderal, que gosta de locais secos tanto no litoral como no interior, e surge, de modo efémero, durante os meses da Primavera.

05/09/2015

Como preparar a poção mágica


Viscum album L.



Os leitores de Astérix e Obélix, a banda desenhada sobre a única aldeia gaulesa não dominada pelos romanos, por certo se lembram de Panoramix, o druida que prepara poções mágicas, seja para garantir por uns preciosos instantes uma força excepcional aos aldeões, seja para multiplicar cada aldeão por dois ou mais, assegurando que tantas cópias vencem os romanos pelo número se não pela força. Para algumas destas poções, Panoramix precisa de leite de unicórnio; para outras, ele vai, com uma foice de ouro, colher visco aos carvalhos mais antigos da floresta. Sem o visco, a aldeia gaulesa tem apenas Obélix para a defender, ele que não precisa de reforço de poção porque caiu em criança num caldeirão em que ela se confeccionava.

Por certo os autores dessas personagens conheciam a fama medicinal do visco, cujas bagas (que são venenosas) eram/são usadas pelos ervanários para tratar distúrbios respiratórios e outros males. Além disso, o visco marca presença, simbólica ou real, na mitologia e no folclore de várias culturas. É uma planta perene, nativa das regiões temperadas da Europa, Norte de África e parte da Ásia, que retira água e nutrientes das árvores que parasita, estas em geral de folha caduca mas de copa larga, como carvalhos, oliveiras, macieiras, choupos, freixos e bordos. Não são inteiramente conhecidas as vantagens da associação para a árvore hospedeira, mas sabe-se que nem todas sobrevivem à presença maciça de um tal hóspede.

Não há modernamente qualquer registo confirmado da sua presença em Portugal, mas Amaral Franco menciona-o na bacia do rio Minho ao descrever a subespécie album do V. album no primeiro volume (de 1971) da sua Nova Flora de Portugal. Os exemplares das fotos são da Cantábria, no norte de Espanha, onde vimos uma população com um número impressionante de indivíduos, alguns a formar colónias de formato esférico com cerca de um metro de diâmetro, parasitando sobretudo tramazeiras (Sorbus aucuparia). Segundo o portal Anthos, o V. album tem uma distribuição vasta em Espanha.

Notemos alguns pormenores desta planta nas fotos. As folhas, de 2-8 centímetros de comprimento, são sésseis e coriáceas, morfologia comum a outras espécies da família Santalaceae, com nervuras paralelas, e agrupam-se em pares opostos; os ramos verde-amarelados bifurcam-se regularmente; as flores, que nascem no fim do Inverno junto às axilas das folhas, são inconspícuas, quase sempre unisexuais, e parecidas com as de Osyris alba mas com 4 pétalas; finalmente os frutos, que foi o que vimos em Julho, parecem bagas brancas, viscosas quando maduras, que lembram as de camarinha.

A flora nacional conta ainda, pelo menos no papel, com outra espécie de visco, o V. cruciatum, que parasita em particular oliveiras e pilriteiros, dá bagas vermelhas e, embora raro, talvez ainda ocorra no Alto Alentejo, na região de Portalegre.