29/03/2016

Dança das ervilhas


Pisum sativum L.


A ervilheira, cujas vagens contêm filas de sementes esféricas muito leves, é uma planta anual que aprecia o frio e que entrou tardiamente, depois de muitos outros vegetais, na cozinha europeia. Entretanto, teve outros usos pois há mais de dois séculos que as ervilhas colaboram com a ciência. Depois de, pela mão experimentada de Mendel, terem sugerido as leis gerais da genética, ajudam agora os biólogos a entender como é que as plantas comunicam entre si e de que modo conseguem processar a informação que lhes chega do ambiente.

Neste âmbito, a discussão (e a controvérsia) centra(m)-se nas questões seguintes: os neurónios, que as plantas não têm, constituem uma solução muito engenhosa para guardar e gerir informação; mas haverá outras? As plantas têm consciência do que as rodeia, ainda que por mecanismos distintos dos dos animais? O problema é complicado porque temos, naturalmente, uma visão antropomórfica do mundo. Parece-nos que, sem um cérebro que pense, memorize, aprenda, comunique, interaja, se emocione, tenha consciência de si e dos outros, e saiba coordenar tudo isto, não se é inteligente. Repare-se que, se em vez da palavra «plantas» usarmos «computadores», estas perguntas não são novas (e as respostas resumem-se a: um computador pode ser capaz de muitas tarefas complicadas, mas não tem consciência de que as realiza nem sente satisfação por isso).

A combinação de qualidades que usámos para definir ser inteligente é discutível mas, se devidamente adaptadas ao mundo vegetal, talvez haja indícios de algumas delas entre as plantas. Nestas, aos nossos ouvidos silenciosas, que precisam de se defender, de ter sempre à mão água e nutrientes, e de um meio eficiente e controlável que transporte o pólen entre duas flores impedidas de se tocar, reconhecemos sinais de uma notável adaptação aos habitats e aos polinizadores. E vêmo-las capazes de inúmeras decisões (em que direcção crescer, quantas folhas novas devem nascer neste ramo, quando florir, como encontrar água, quando abrir os frutos e largar as sementes, etc.) que são demasiado difíceis de realizar quase em simultâneo sem algum grau de inteligência.

Mas, afinal, que provas nos apresentam os cientistas de que as plantas são capazes de comportamentos inteligentes? É aqui que intervêm as trepadeiras, como as que dão ervilhas. Elas usam gavinhas para se segurar enquanto ascendem em busca de luz e espaço. Para isso, precisam de saber localizar lugares onde se possam agarrar, mas não têm olhos para identificar postes. Contudo, neste vídeo, podemos observar como as plantas orientam a gavinha para um poste, revelando uma percepção do ambiente com que não contávamos. Além disso, repare-se como, mal uma das trepadeiras se enrola no pau, a outra planta pressente-o e, vencida, procura alternativas. Como foi possível transmitir essa informação de uma planta a outra? Que órgãos as fazem tão sensíveis a tantos estímulos? O aparato sensorial das plantas contém versões dos nossos cinco sentidos (sentem diferenças químicas no ar, na água ou no solo; reagem de modo distinto a diferentes comprimentos de onda da luz; as gavinhas sabem quando encontram um objecto em que se enrolar; e, acredite-se ou não, em alguns testes parecem saber interpretar sons), mas é muito mais completo e minucioso. Os cientistas estão convencidos de que se trata de uma comunicação química ou por sinais eléctricos, que podem ser emitidos por toda a planta. Além disso, as experiências destes neurobiólogos parecem indicar que as plantas memorizam informação, e com essa aprendizagem são capazes de resolver problemas que ponham em causa a sua sobrevivência (como se conta neste documentário).

A teoria mais bem aceite é a de que as células de cada planta funcionam como colónias de formigas ou abelhas, em que um número muito grande de indivíduos, cada um deles sem inteligência digna de nota, trabalha eficientemente em grupo, tal qual uma rede de ligações optimizada. De resto, toda a planta é feita de módulos, alguns descartáveis sem qualquer risco, e cada um coopera, seja a comunicar, a evitar ameaças ou a disseminar-se. Ora, tal como na Internet, para conseguir isto não é preciso um cérebro; basta estar vivo e pertencer a uma estrutura com tarefas bem distribuídas e devidamente coordenadas.

Mas os cientistas são teimosos, e animam-se precisamente com os desafios mais difíceis. Inspirados pela obra The power of movement in plants, de Charles Darwin, têm procurado nas plantas uma estrutura análoga a um cérebro. E, de facto, localizaram em cada raiz uma região muito mais bem oxigenada que as demais e sem a qual, embora cresça, a raiz perde a habilidade de seleccionar a direcção privilegiada em água, nutrientes e solo. É um pedaço minúsculo de raiz perto da ponta, enterrado para reduzir o risco de ser comido ou destruído, mas multiplique-se esse bocadinho pelo número de raízes e teremos, não um cérebro, mas um conjunto de células que funciona como um gigantesco sistema nervoso central, cuidadosamente empenhado na sobrevivência da planta e da espécie. Talvez o leitor aprecie ouvir mais detalhes nesta palestra (que dura cerca de 15 minutos e pode ser acompanhada por legendas em português se escolher essa língua em «Subtitles»), com o testemunho de um desses cientistas.

5 comentários :

José Batista disse...

Parece-me que o "problema" do artigo, que é brilhante, está precisamente em "antropomorfizar" as actividades vitais das plantas. Claro que as plantas têm que reagir às condições do meio, o que fazem com as adaptações que possuem, que foram adquirindo por evolução, com a selecção natural a eliminar as que não apresentam as características que lhes permitem sobreviver e reproduzir-se, nos meios em que se disseminam. Naturalmente, há muitos aspectos da morfofisiologia das plantas que escapam à nossa compreensão: basta pensar na circulação das seivas no seu interior, para o que temos (duas) teorias cheias de pontos fracos, ou no mecanismo da abertura e fecho dos estomas, em que a grande quantidade de explicações apenas reforça o muito que nos falta saber sobre as acções específicas subjacentes e possíveis relações entre elas. Há, também, a comunicação entre as plantas, mas aí, o vazio do nosso saber é ainda maior...
Contudo, a ideia de evolução, saída do cérebro do genial Charles Darwin, dá consistência à relação de harmonia e complexidade, seja de cada ser vivo, em particular, seja do mundo vivo em geral: as populações de seres vivos vão "ensaiando" continuamente novas possibilidades e as que são inviáveis são eliminadas pela natureza. As formas vivas que existem, e nos maravilham, são as que passaram o crivo da selecção natural, e perdurarão enquanto estiverem (suficientemente bem) adaptadas às condições do meio em que habitam.
De resto, se fizéssemos uma extensão (não ilegítima) do assunto, poderíamos também pensar na "inteligência" da matéria que leva certos átomos a disporem-se rigorosamente numa rede cristalina, cuja estrutura "reage" às condições termodinâmicas do meio que a rodeia...
Mas que o artigo é agradabilíssimo de ler, lá isso é.

bea disse...

Gostei de saber que a inteligência das plantas existe e lhes permite a adaptação. Desisti do segundo vídeo que me pareceu um pouco impressionante. O que me ficou foi a forma sempre idêntica como procuram reagir ao meio: para sobreviver. Pergunto-me se a inteligência humana procede assim, ou serão os comportamentos auto destrutivos um factor distintivo. Ou ainda uma forma de sobrevivência. É claro que a minha visão é antropomórfica, não há forma de ser outra coisa.

bettips disse...

Parece haver mais inteligência "num prato de lentilhas do que ricos no reino dos céus", isto atrapalhando propositadamente as parábolas que sabemos. É extraordinário o que descrevem: eu já me perguntava há que anos porque é que as plantas que tínhamos no quintal (e, mais tarde, vendo as videiras despidas mas com parafusinhos a crescer) se enrolavam habilidosamente nas canas... Abçs

Maria Carvalho disse...

José Batista: Este texto não emite opiniões, apenas resume o que de essencial se discute hoje em neurobiologia. Tal como diz, há um risco elevado de se formatar a natureza por padrões humanos, mas creio que os cientistas estão conscientes disso e tentam reduzir o impacto dessa parcialidade. Concordo que todos nós -- fogo e pedras incluídos -- somos, no essencial, átomos e reacções químicas; mas é precisamente por isso que a vida e as várias formas de inteligência não se avaliam apenas pela capacidade de juntar elementos da tabela periódica, mesmo que seja em redes cristalinas.

bea: Assinalou um detalhe importante: as plantas têm comportamentos que julgamos inteligentes mas, assim nos parece, com o único objectivo de sobreviver e preservar a espécie. Nisso também se distinguem de nós.

bettips: Tem razão: mais do que tudo, esta pesquisa científica ensina-nos a entender melhor as plantas e a apreciar a natureza com mais sabedoria. Na história da ciência, nem sempre os cientistas conseguiram explicar aos leigos o que descobriram. Nesse âmbito, estes vídeos e palestras são magníficas lições.

Maria Carvalho disse...

A propósito, diz Caetano Veloso na música Terra: (...) gente é outra alegria. Diferente das estrelas.