13/09/2016

Lagoas de Cantanhede

Que resta de natureza num concelho como Cantanhede, onde todos os metros quadrados de terreno parecem ter sido avaramente aproveitados para algum fim? Entre pinhais, eucaliptais, vinhas, campos de cultivo, fábricas, armazéns, povoações desordenadas e vivendas avulsas, numa paisagem plana, sem maciços rochosos e sem recantos, haverá ainda lugar para o que é espontâneo? A resposta, já se adivinha, é enfaticamente positiva. Basta lembrar que os pinhais da Tocha, embora infestados por acácias, dão abrigo a camarinhas, samoucos, giestas variadas, sargaços amarelos e brancos, salgueiros-anões, meia dúzia de espécies de orquídeas, e até a um verbasco endémico da costa portuguesa. Beneficiando das estradas em estado calamitoso, da ausência de redes de telemóvel e de outros inconvenientes que afugentam os veraneantes, certos pontos do cordão dunar apresentam uma flora em muito bom estado. Avançando para o interior, e já perto da sede de concelho, o Horst de Cantanhede é uma pequena ilha calcária que, a somar a uma invejável colecção de orquídeas, logrou reunir uma mão-cheia de raridades (como esta, esta ou esta), algumas delas no limite norte da sua distribuição em Portugal.

E, rodeadas por matas de produção ou por campos agrícolas, muitas são as lagoas e charcos que pontuam as imagens aéreas do concelho. Antes da invenção do Google Earth, só quem consultasse os mapas militares se aperceberia dessa fartura de águas paradas. Não havendo diferenças de altitude, ou sendo elas quase insignificantes, as águas não se esforçam por chegar ao mar a não ser nas épocas de muita chuva. Artificiais ou naturais, essas lagoas acabam por ser o refúgio de plantas que desapareceram das zonas do país onde os habitats palustres se fizeram raros. Em Cantanhede, as populações de Utricularia australis, uma planta carnívora aquática com flores amarelas que fazem lembrar as das linárias, devem ser as maiores do país.

A freguesia de Cantanhede com maior número de pequenas lagoas talvez seja a de Febres; um dos lugares da freguesia tem precisamente o nome de Lagoas. Será apenas coincidência que uma terra com tantas lagoas e charcos se chame Febres? O senso comum considera (ou considerava) tais lugares como viveiros de mosquitos transmissores de infecções — ou seja, causadores de febres. Mas, como o nosso clima não é tropical e a água faz falta, e como um ecossistema em equilíbrio raramente é fonte de pragas, é preferível deixar as lagoas em paz em vez de tentar secá-las. Além do mais, mesmo não se aconselhando mergulhos, as lagoas são bonitas, com margens agradavelmente providas de sombras para acolher famílias merendantes.



Schoenoplectus lacustris (L.) Palla


O Schoenoplectus lacustris, popularmente conhecido como bunho (embora o mesmo nome se dê a uma espécie de menor porte, Scirpoides holoschoenus, comum em todo o país), é uma ciperácea de quase três metros de altura que guarnece profusamente duas das mais recatadas lagoas de Febres. Como planta rizomatosa que é, forma densos aglomerados na borda das lagoas, suprindo a falta do caniço (Phragmites australis), que talvez prefira substatos mais arenosos. As hastes deste bunho, quase destituídas de folhas (que estão em regra reduzidas a bainhas), são grossas, com uns 2 cm de diâmetro, e têm secção perfeitamente circular. As inflorescências, formadas por várias dezenas de espiguetas cada uma com 1 ou 2 cm de comprimento, surgem como cabeleiras despenteadas no topo das hastes, e a floração, que começa na Primavera, prolonga-se pelo Verão dentro. De acordo com a Flora Ibérica, a espécie deveria estar presente em todas as províncias portuguesas, mas no portal Flora-On só se dá conta de ocorrências no centro e sul do país. A mesma Flora Ibérica considera, além da subespécie nominal (representada nas fotos), a subsp. glaucus, que vive em sapais e em estuários e tem dimensões menores.

O nome galego (e espanhol) do Schoenoplectus lacustris, que é antela, recorda um dos piores actos de destruição da natureza levados a cabo no país vizinho ao longo do século XX. A planta deu nome à lagoa de Antela, uma das mais extensas zonas húmidas da Península Ibérica: com 40 Km^2 de área, era várias vezes maior do que a nossa Pateira de Fermentelos. Situada na província de Ourense, a cerca de 600 m de altitude, a lagoa foi drenada em 1959 por ordem do governo de Franco, que justificou o ecocídio pelo aproveitamento agrícola dos terrenos e como medida para erradicação dos mosquitos.

1 comentário :

bea disse...

Apesar de todo o seu rico manancial em flora que se extingue, as lagoas não são lugares apetecíveis para merendas familiares ou das outras. Concordo que as deixem ficar, têm utilidade vária. Mas a aprazibilidade reduz-se - e nem sempre - ao aspecto visual. É pena que os lírios roxos se vão extinguindo, lastimo que se suma o curvo encanto da cor.