30/01/2016

Mais iguais do que outros


Geranium subargenteum Lange

O leitor decerto concordará que o género Geranium é fácil de identificar, mais ainda se as plantas estiverem em flor. A forma da corola, os matizes de rosa, magenta e púrpura nas pétalas, a posição relativa das várias peças do perianto e a proeminência da coluna central de estames e ovário pouco diferem de uma espécie para outra neste género. E, numa mesma espécie, como a das fotos, não notamos qualquer diferença relevante entre indivíduos, ainda que comparemos plantas dessa espécie em regiões muito distantes. Essa invariância dos traços dentro de uma mesma espécie de seres vivos também se nota em alguns animais: vejam-se, por exemplo, os pardais; ou tente-se destrinçar duas abelhas-operárias. Contudo, quando procuramos essa quase coincidência da forma nas pessoas, só a vemos surgir em gémeos. Ou seja, ainda que não incluamos no guião de avaliação parâmetros mais ou menos subjectivos como a beleza, a inteligência ou o carácter de um indivíduo, somos realmente todos diferentes. Curiosamente, sobrevive na Terra uma única espécie do género Homo (H. sapiens, que alguns cientistas entendem tratar-se de uma subespécie, Homo sapiens subsp. sapiens), que, apesar de ser recente (os fósseis mais antigos datam de há 195 mil anos), exibe um acentuado grau de variação entre os indivíduos e uma diversidade genética notável nas populações. Tanto assim que a incapacidade de distinguir faces é considerada uma doença. Este é o tema explorado na peça de teatro e no filme de animação Anomalisa, de Charlie Kaufman, cujo protagonista vê todas as pessoas iguais, homens ou mulheres, não reconhecíveis nem mesmo pela voz.

Prestemos agora atenção ao gerânio das fotos, um endemismo dos prados de montanha do centro da cordilheira cantábrica. É uma planta alta (atinge uns 60 cm), com talos penugentos como é frequente em plantas perenes que têm de conviver com nevões no Inverno. As folhas, palmadas e muito divididas, com a face inferior acetinada (o que talvez justifique o epíteto subargenteum) são quase todas basais e agrupam-se em rosetas persistentes. As grandes flores nascem aos pares no topo de longas hastes. E em cada flor notam-se dez estames com anteras púrpura cheias de pólen azul. O fruto tem uma arista (como esta) a que se agarra a semente e que, no momento certo, a catapulta para bem longe da planta mãe. É parecido com o G. cinereum, de que até se desconfia que seja uma subespécie, mas esse gerânio, muito usado em jardinagem, não é espontâneo na região da Cantábria que visitámos.

26/01/2016

Segredos da Pipa (1)


Lamarosa, Coruche


Há tempos, a propósito de se fazer ou não um aeroporto num certo local, um ministro que já esquecemos dizia que o país a sul do Tejo era um deserto. Não se referia à presumível aridez mas sim à falta de gente, esquecendo por momentos o poder aglutinador que, para o bem e para o mal, costumam ter certas obras "estruturantes" tais como pontes, aeroportos e auto-estradas. É contudo verdade que o Tejo marca uma fronteira: para norte temos um país de montes e vales, verde e húmido, e para sul uma extensa planície onde a chuva raramente cai. Quando no nosso país falamos em sentido literal no "risco de desertificação" é nessa planície que estamos a pensar. Mas essa simplificação a traço grosso esquece que no limite nordeste do país a falta de chuva pode também ser um problema, e que no sul há enclaves frescos e ricamente arborizados como as serras de São Mamede e de Monchique. Há também muitos rios que, por estarem mais sujeitos a grandes variações do caudal do que os rios do norte, vivem na constante incerteza do futuro, e por isso são comoventes e preciosos.

As reservas de água, naturais ou artificiais, são um seguro de vida em regiões sujeitas à secura. Um velho montado de sobreiros rodeando uma represa, cercas de arame delimitando pastagens: eis uma paisagem que, sendo embora ribatejana de Coruche, poderia fornecer um dos mais típicos postais do Alentejo. A água atrai-nos como atrai todos os outros bichos, mas a nós, que bebemos água engarrafada, interessa sobretudo inspeccionar as plantas que encontram refúgio nas margens lodosas da represa. Entre dezenas de habitats semelhantes na região, calhou-nos visitar a represa da Pipa, e não ficámos desiludidos com o que vimos: Baldellia repens, Cicendia filiformis, Exaculum pusillum, Ludwigia palustris, etc. Enfim, um pequeno catálogo de plantas higrófilas miniaturais que, num raio de vários quilómetros, não poderiam sobreviver senão ali, no curto espaço de transição entre a fartura de água e a terra ressequida.


Juncus pygmaeus Rich. ex Thuill.
Típicos de terrenos encharcados são os juncos e as ciperáceas, de que na Pipa havia uma variada amostra. Deixando duas ciperáceas para o segundo fascículo, falamos agora do Juncus pygmaeus, obrigado a ser pequeno pelo nome que lhe deram. De facto, este junco não costuma ter mais que uns 5 cm de altura, muito embora possa quadruplicar essa marca; e as flores, que são essenciais à identificação e por isso convém observar à lupa, ficam-se pelos 5 mm de comprimento. Pelo tamanho, o Juncus pygmaeus facilmente se confunde com outros juncos anuais como o J. bufonius e o J. capitatus. Contudo, as flores do J. bufonius costumam ser solitárias, enquanto que no J. pygmaeus, como se vê acima, elas aparecem aglomeradas; e no J. capitatus, ao invés do que sucede com o J. pygmaeus, cada inflorescência tem uma bráctea que claramente a ultrapassa (veja aqui).

Amplamente distribuído pela Europa ocidental e norte de África, o Juncus pygmaeus, à semelhança de muitas plantas anuais que vivem em condições instáveis, não parece ter uma época de floração preferida. Trata de cumprir o seu ciclo de vida quando pode; e, se a água baixou e a temperatura ainda é amena, Dezembro é um mês tão bom como qualquer outro.

23/01/2016

Verónica cantábrica


Veronica ponae Gouan


Com a discrição que nos é própria, celebrámos aqui, há catorze meses, a nossa primeira dúzia de verónicas, o que significa que já mostrámos quase três quintos das espécies do género que integram a flora portuguesa. Há géneros mais populosos, como Carex ou Silene, cada um deles com 40 ou mais espécies em Portugal, mas é indiscutível que as verónicas nos caíram no goto. Tanto que, alargando a nossa prospecção para lá da fronteira, avançamos sem receios supersticiosos para a décima terceira verónica, trazida esta das montanhas cantábricas.

A Veronica ponae foi baptizada por Antoine Gouan logo a abrir a sua obra Illustrationes et Observationes Botanicae, de 1773. O francês Antoine Gouan (1733-1821) correspondeu-se com Lineu e foi o primeiro botânico do seu país a publicar uma flora (Hortus Regius Monspeliensis, de 1762) seguindo o sistema taxonómico lineano. Além de descrever a espécie, Gouan fornece uma ilustração que capta o aspecto geral da planta mais fielmente do que muitas fotos. Como informação complementar, diga-se que a Veronioa ponae é perene, de base lenhosa, com hastes que não costumam ultrapassar os 40 cm de altura. As folhas, em geral cobertas de pêlos nas duas páginas, são opostas, de pecíolo curto e margens serradas, e têm um máximo de 6 ou 7 cm de comprimento. As inflorescências, em forma de cacho terminal, alongam-se significativamente na frutificação. Como quase todas as espécies de alta montanha, tem uma floração tardia, que no seu caso está concentrada em Junho-Julho mas se pode estender até Setembro.

Frequentadora de rochas e bosques húmidos e de prados junto a linhas de água, a Veronica ponae só não é um endemismo pirenaico-cantábrico porque, apesar de ausente das montanhas do sistema central ibérico, surge de surpresa no sul de Espanha, na serra Nevada.

19/01/2016

Sem fruto


Lycium intricatum Boiss.


Temos tido um Inverno atípico, mais quente e com muita e por vezes furiosa chuva, ainda assim brando a julgar por aquilo de que o El Niño é capaz. Mas as plantas perenes de folha caduca, que apreciam igualmente o calor e o frio se estes as atingirem na época certa, andam confusas. Elas parecem ler os sinais da natureza, importantes para os seus ciclos de vida, nas variações da temperatura ambiente, no número de horas com exposição à luz solar, na quantidade de precipitação, etc. São dados que todas as plantas recebem em simultâneo, e por isso se comportam como se guiadas por um maestro, perfeitamente ajustadas às nossas estações do ano. Contudo, este ano não temos tido um verdadeiro inverno e, portanto, as plantas ou prolongaram o Outono (a ginkgo do Jardim das Virtudes só agora se despiu da folhagem, negando-nos em Novembro o espectáculo de a vermos coberta de folhas amarelas) ou julgam estar já na Primavera. E é ver os carvalhos ainda com folhagem, eles que daqui a um mês terão de começar a produção de folhas novas; ou reparar nas dedaleiras apressadas no florir, apesar de não haver ainda polinizadores que aproveitem tal benefício. Receia-se que tais mudanças climáticas e a inevitável falta do período de descanso acabem por debilitar as plantas e imponham depois um ano de fome às abelhas.

A cambroeira, planta arbustiva da família Solanaceae e espontânea em Portugal, não parece ter escapado às consequências da tão estranha mudança de calendário. Em geral, e apesar de ser resistente ao frio, à maresia e ao ar salgado, por esta altura deveria estar ainda a fingir-se de morta, reduzida ao feixe de ramos secos e ásperos, espinhosos nas extremidades, com que costuma iludir os rigores do Verão (como teria de fazer num habitat realmente semi-desértico em África, onde também ocorre e de onde talvez tenha vindo para a Península Ibérica). Nesse estado, cumpria-lhe aguardar as chuvas de Fevereiro-Abril para sair da hibernação. O exemplar (isolado mas de porte considerável e talvez idoso), que vimos no fim de Dezembro numa arriba da costa vicentina, estava com a folhagem carnuda e fresca, e exibia várias flores, mas nenhum fruto. Naturalmente, nesta altura não se viam abelhas ou outros insectos a polinizar as flores. Um desperdício, que, porém, muito apreciámos.


Bordeira, Carrapateira (Algarve)
Lemos que algumas experiências de campo indicam que o sucesso da germinação das sementes de Lycium é mais elevado se a dispersão for indirecta, talvez por assim se dar mais tempo à preparação das sementes. O ideal mesmo é que a baga seja comida por uma lagartixa e esta por um picanço que, sendo pássaro de patas curtas, não as pode usar para levar a comida ao bico e, por isso, espeta as presas em espinhos de arbustos para as consumir.

O outro Lycium que ocorre espontaneamente em Portugal, L. europaeum, anda desaparecido, embora a Flora Ibérica lhe atribua uma distribuição mais vasta que a do L. intrincatum. Mostrámos aqui há uns anos uma outra espécie, essa não considerada nativa de Portugal, o L. chinense, que conhecemos das dunas de Gaia entre a Aguda e Espinho.

16/01/2016

Ovos com chocolate


Hypericum richeri subsp. burseri (DC.) Nyman


Se excluirmos aquelas que são cultivadas para alimentação humana, os hipericões são das plantas que ao longo dos séculos mais têm interagido com o homem. As 490 espécies actualmente reconhecidas no género Hypericum distribuem-se por todos os continentes habitados, e o seu uso tradicional na farmacopeia popular tem vindo gradualmente a ser validado pela medicina moderna. A espécie europeia mais comum, H. perforatum, conhecida em Portugal como erva-de-São-João, pode ser usada tanto no tratamento de depressões como, aplicada externamente, para sarar lesões da pele. Em maior ou menor grau, quase todos os hipericões partilham dessas qualidades medicinais. E, além dos médicos e dos seus pacientes, também os botânicos amadores ou profissionais têm razões para verem os hipericões com bons olhos. Quando chegam a alguma província ou ilha onde nunca estiveram, e se começam a familiarizar com a vegetação local, não tarda que encontrem algum hipericão que nunca antes viram, possivelmente endémico da região. É como reencontrar um velho conhecido com uma indumentária renovada.

Tivemos essa experiência nos Açores, quando travámos conhecimento com o endémico Hypericum foliosum, e voltámos a tê-la nos cumes da Cantábria, quando deparámos com um hipericão que, não ultrapassando a altura de um joelho, se destacava pelas flores grandes e abundantes. Comparado com o hipericão-do-Gerês (H. androsaemum), este hipericão cantábrico (de seu nome completo H. richeri subsp. burseri, endémico da cordilheira cantábrica e dos Pirenéus) apresenta folhas pequenas e hastes não ramificadas, mas em compensação dá flores duas vezes maiores. Habitando fissuras de rochas e ladeiras pedregosas, a sua irrepremível vocação ornamental é bem ilustrada na primeira foto, onde contracena com a dedaleira comum (Digitalis purpurea). Qual o jardineiro que não gostaria de acrescentar uma tão generosa pincelada amarela à paleta de cores do seu rock garden?

Numerosas espécies de hipericão têm as folhas, brácteas, sépalas e pétalas profusamente pontilhadas de negro. Essas glândulas negras segregam hipericina, composto responsável por muitas das propriedades medicinais destas plantas mas que, por tornar a pele anormalmente sensível à luz solar, é nocivo para o gado (e para as pessoas) quando ingerido em quantidade excessiva. O H. androsaemum e o H. foliosum são inteiramente desprovidos dessas glândulas, mas o Hypericum richeri ocupa o outro extremo da escala e, de todos os hipericões ibéricos, é talvez o mais sarapintado (atente-se na segunda foto). É pelo menos o único em que o carpelo está decorado com glândulas negras — o tal ovo com chocolate que se vê na última foto.

12/01/2016

Conto de Inverno


Avelaneiras (Corylus avellana L.) nas margens do rio Fílveda, Albergaria-a-Velha


A muita chuva dos últimos dias promete que, contra todos os pessimismos, a vida está para durar. O maior inconveniente, numa altura em que os rios realizam a sua vocação em plenitude, é não podermos visitá-los com as águas transbordando das margens. Regressaremos daqui a umas cinco ou seis semanas, quando eles estiverem menos impetuosos, dando tempo para que o amarelo vivo do narcisos se junte ao amarelo pálido das prímulas. Não é em todos os rios que se dá essa feliz combinação cromática, mas há rios em todas as províncias e todos os concelhos deste nosso maltratado território, e quase sempre eles nos dão muito mais do que esperamos. Consideremos, por exemplo, aquela região no centro-norte do país que faz a transição entre o Baixo-Vouga e as serras do interior: Vale de Cambra, Oliveira de Azeméis, Albergaria-a-Velha e Sever do Vouga, são esses os nomes anunciados nas placas de saída da A1 logo a norte de Aveiro. A julgar pelo que vemos ao longo da auto-estrada, todos esses concelhos estão perto de se transformarem em eucaliptais ininterruptos, num processo imparável de reconversão de antigos campos agrícolas que nem sequer poupa os olivais. Em vez de ser desmentida, essa impressão é tristemente reforçada quando nos desviamos da auto-estrada para as vias secundárias. À monotonia do eucaliptal soma-se o desordenamento da paisagem: as estradas fazem de ruas em povoações que nunca começam nem acabam, misturando vivendas, prédios, fábricas, postos de combustível, aviários, restaurantes de berma de estrada, vendas de carros usados. Não é certamente este o cenário ideal para realizar aquele cliché da "comunhão com a natureza" tão glosado em textos de promoção turística. Ainda assim, a câmara de Albergaria-a-Velha, seguindo o exemplo de muitas outras, quis atrair ao concelho praticantes de caminhadas e outros amigos da natureza, e para isso sinalizou vários percursos pedestres. Um deles (PR2) chama-se trilho dos três rios e acompanha o rio Caima e dois dos seus afluentes. Caima é também o nome da empresa de celulose pioneira em Portugal, nascida em Albergaria-a-Velha nas margens deste rio mas entretanto deslocada para outras paragens.

Porque as nossas caminhadas têm um propósito último que não é caminhar, não percorremos na nossa visita do início de Dezembro o PR2 do princípio ao fim, já que ele é extenso (14 Km) e atravessa vastas áreas de eucaliptal. Fizemos o troço do rio Caima junto ao lugar de Palhal, e em Ribeira de Fráguas seguimos durante dois ou três quilómetros o curso do rio Fílveda, partindo do chamado Parque dos Moinhos. O rio Caima pós-industrial apresenta-se despoluído, e ladeiam-no aqui e ali breves manchas de carvalhal, com o cortejo de arbustos e herbáceas habituais em terras do norte: Omphalodes nitida, Linaria triornitophora, medronheiros, folhados, gilbardeiras, fetos variados, etc. Esporádico em clareiras pedregosas, juntava-se-lhes o Anarrhinum longipedicellatum, ou samacalo-arouquense, um portugesíssimo endemismo desta região entre o Douro e o Vouga. Todos esses ingredientes foram repetidos nas margens do Fílveda ou no talude da estrada junto ao Parque dos Moinhos, mas em quantidades mais generosas e reforçados por uma galeria ripícola de altíssimas avelaneiras. Os moinhos desactivados brilhavam como a casa dos sete anões, e as duas pontes de madeira permitiram-nos acesso fácil a ambas as margens. O (impropriamente chamado) hipericão-do-Gerês (Hypericum androsaemum) estava por todo o lado, bem mais abundante do que alguma vez o víramos no Gerês. Uma prímula confundida com o calendário, ou apostada em jogada de antecipação, fazia brilhar uma única flor entre as suas irmãs ainda adormecidas pela invernia.

O rio Fílveda, como tantos outros rios da região, corre encaixado num vale como um segredo ciosamente guardado por um exército de eucaliptos. A maior surpresa de tão grata visita foi sentir que tínhamos obrigação de voltar.

09/01/2016

Veneno verde


Veratrum album L.
Entre uma flor grande e colorida e outra verde e minúscula, apostamos que é a vistosa que as abelhas descobrem primeiro. A razão é simples: a folhagem, também verde, tende a encobrir as flores, tornando-as difíceis de detectar pelos insectos; e estes, a quem convém minimizar o percurso entre um abrigo seguro e a comida, guiam-se pelo contraste com a cor das folhas. Com o hábito, os polinizadores dão como certo que as flores mais adornadas são as mais recompensadoras, seja em néctar, em pólen ou noutros serviços. Mas as plantas com flores verdes polinizadas por insectos não desapareceram. O que significa que conseguiram superar essa aparente imperfeição. Realmente, as plantas com flores inconspícuas e/ou de cor parda encontraram meios eficientes para atrair polinizadores, aproveitando-se em particular do facto de que, para a orientação dos insectos, são igualmente importantes o aroma, a abundância de néctar, a altura e o porte da inflorescência. E há mesmo algumas espécies que colocam grandes porções de néctar nas suas folhas para ensinar os polinizadores a colectá-lo em partes verdes da planta. Porém, porque subsiste o risco de por este processo serem atraídos apenas insectos pouco especializados ou mal intencionados, estas plantas mantêm activa a opção de auto-fecundação e algumas são bastante venenosas.

A espécie Veratrum album teve de recorrer a alguns destes expedientes. Perenes e robustas, as plantas desta espécie exibem no Verão inflorescências densas, aromáticas e altas (podem subir a um metro e meio), que se destacam bem nos habitats húmidos de montanha, com vegetação rala, que preferem. Além disso, têm flores estreladas, algumas hermafroditas e outras só masculinas, colocando estas no topo da haste floral e oferecendo em cada uma seis anteras gordinhas de pólen. Desse modo, garantem que mais insectos as procuram — algumas experiências, como as descritas no artigo The color sense of the honey-bee: the pollination of green flowers, de John H. Lovell (The American Naturalist 46, No. 542 (1912) pp. 83-107), sugerem que, frequentemente, as flores com pólen são as mais visitadas de uma inflorescência — e pela ordem certa, uma vez que convém à planta que um insecto só visite uma flor feminina depois de recolher pólen numa masculina. Para aumentar as suas chances, são generosas no néctar que servem e formam colónias tão vastas quanto o habitat permite. Apesar do tom geral esverdeado, notamos nas tépalas uns veios de tonalidade verde mais escuro, que garantem algum contraste com a folhagem e guiam o polinizador para o nectário (a estrutura brilhante em forma de "V" da flor no centro da terceira foto). Observamos também como a planta se protege do frio: as tépalas são ciliadas, o talo é penugento na parte superior e as folhas basais, sésseis e enormes, agasalham-no como um casaco de golas altas bem ajustadas.

O género Veratrum contém cerca de 40 espécies nativas de lugares frios ou temperados da Europa, Ásia e América do Norte. Na Europa, ocorrem espontaneamente apenas duas, o V. album e o V. nigrum. Curiosamente, este último tem as mesmas características morfológicas do V. album mas as flores são de cor púrpura. Na serra da Estrela pode ver-se facilmente a única espécie presente na Península Ibérica, no bordo de lagoas perto da estrada da torre; as plantas fotografadas são de uma população muito numerosa da Cantábria.

05/01/2016

O regresso da memória

Não somos apenas o nosso corpo, e cada vez mais delegamos em artefactos a construção da nossa identidade mais íntima. A memória interna, aquela que carregamos no cérebro, enferruja por falta de uso, e parece que a sua capacidade de armazenamento diminui à mesma velocidade a que aumenta a dos periféricos onde vamos arrumando as nossas lembranças. Mensagens trocadas, contactos, fotos, o itinerário das férias, efemérides pessoais ou alheias, mapas e indicações de percursos, o nome desta planta, o nome daquela cara, a cidade onde havia este jardim, a praia sem rede e sem nadador-salvador: tudo o que estava dentro de nós e transferimos para a máquina, e que só ressuscita quando a ela nos ligamos. Para não notarmos o vazio, estamos sempre ligados.

E se a máquina se apagasse por acidente, e não existisse cópia de segurança? Foi essa amnésia tecnológica que nos atingiu faz agora seis semanas, quando uma actualização não solicitada do sistema operativo do computador limpou o disco externo onde guardávamos as fotos. Onze anos de passeios, de lugares, de nomes: milhares de memórias que de um instante para o outro deixaram de existir, consumidas por um incêndio sem chamas. Que fazer? Pedir uma indemnização à Microsoft? Solicitar os serviços de um mago das novas tecnologias? A solução foi usar um programa que por cem dólares nos pareceu uma pechincha e que, depois de escavar durante 12 horas em busca dos MB desaparecidos, trouxe à superfície, mais ou menos intactas, todas as fotos que alguma vez tiráramos e quem sabe se mais algumas. O óbice é que os nomes das fotos se tinham em grande parte perdido, e da meticulosa organização por pastas só sobrava um esqueleto sumário. Mas a matéria-prima estava lá, e à tarefa de reconstruir a memória nos entregámos neste Dezembro de 2015. Plantas, lugares, pessoas e bichos voltaram a ter nome. Ficaram de fora algumas pedras do Gerês que só conseguiremos nomear quando as reencontrarmos.

Esta nossa estreia em 2016 faz-se pois dessas memórias resgatadas, com duas plantas do género Stachys, ambas com fama medicinal e ambas presentes no nosso país, mas uma delas fotografada na Cantábria. Muito a propósito, a Stachys officinalis foi outrora usada para tratamento de problemas nervosos e de dores de cabeça e como tónico para avivar a memória.


Stachys officinalis (L.) R.Trevis. (fotografada em Cantanhede)


Lineu chamou-lhe Betonica officinalis, querendo com a escolha do epíteto assinalar-lhe a utilidade nas artes do boticário. Florindo entre Maio e Julho, a betónica (o nome lineano sobreviveu no vernáculo em várias línguas europeias) aparece aqui e ali de norte a sul do continente português, em clareiras de matos ou orlas de bosques sobre solos siliciosos. Mesmo no estado vegetativo, é facil de reconhecer pelas folhas de margens crenadas, formando uma roseta basal algo caótica. As suas hastes são finas e altas (até 90 cm), não ramificadas, com as flores reunidas em espiga na extremidade ou dispostas mais abaixo em verticilos esparsos.


Stachys sylvatica L. (fotografada na Cantábria)
A S. sylvatica, que em Portugal só parece ocorrer em Trás-os-Montes, prefere lugares abrigados e húmidos, e tem flores maiores e mais vistosas do que a sua congénere, resultado da necessidade de dar nas vistas e atrair polinizadores entre a competição cerrada das plantas de sub-bosque. Não tão versátil como planta curandeira, era usada e cultivada para tratar feridas, e por isso os britânicos lhe chamam woundwort.