27/09/2016

Cardo de outras areias


Carduus meonanthus Hoffmanns. & Link


O cardo-marítimo, de seu nome científico Eryngium maritimum, é uma planta moderadamente espinhosa que consegue ser tão azul como o mar que lhe está próximo. Chamamos-lhe cardo por causa dos espinhos (um aviso aos veraneantes para estenderem as toalhas noutro lugar), mas, ao contrário da maioria das plantas que conhecemos por esse nome, não pertence à família das asteráceas (ou "malmequeres"). Se não fosse já tarde para mudar a língua, seria melhor deixarmos de lhe chamar cardo — como possível alternativa, sugerimos azulino-das-areias. Os cardos reconhecidos como tal deveriam todos pertencer à família correcta; e então o legítimo cardo-marítimo ou cardo-das-areias seria aquele com que ilustramos esta conversa. Teria contudo o óbice de, em Portugal, surgir apenas nos areais costeiros e pinhais litorais do centro e do sul, e de ser, em geral, bastante mais raro do que o azulino, que preenche toda a costa portuguesa de Caminha a Vila Real de Santo António.

O Carduus meonanthus, planta bienal que pode ultrapassar um metro de altura, foi descrita originalmente em 1825 por Hoffmannsegg & Link no tomo II da pioneira Flore Portugaise (disponível aqui), a partir de exemplares colhidos pelos autores nos arredores de Lisboa e de Setúbal. O epíteto meonanthus significa "flores menores", entendendo-se que a maioria das espécies do género Carduus terá capítulos florais mais avantajados. Não é esse porém o caso do Carduus tenuiflorus, um cardo ruderal que é abundante de norte a sul do país. Tenuiflorus tem um sentido quase análogo ao de meonanthus: significa "flores estreitas". De tenuiflorus para meonanthus passamos do latim para o grego, mas os dois epítetos situam-se no mesmo campo semântico. A coincidência terá sido propositada, pois, como se pode verificar por estas fotos, os dois cardos (C. meonanthus e C. tenuiflorus) são muito semelhantes, tanto no porte geral como no tamanho e disposição dos capítulos. A diferença mais notória é que as folhas do C. meonanthus são bastante mais estreitas do que as do C. tenuiflorus, e têm um número maior de dentes ou espinhos; há também diferenças na forma dos capítulos e das brácteas involucrais.

Nesta altura há-de o leitor resmungar que só por pedantismo não assinalámos ainda uma distinção óbvia: o nosso Carduus meonanthus tem flores brancas, enquanto que o C. tenuiflorus as tem cor-de-rosa. Por muito que nos custe admitir, o critério da cor das flores, tão simples de usar por um leigo (e tantas vezes desdenhado por especialistas habituados a lidar com as plantas secas de herbário, que há muito perderam a cor) não tem, neste caso, qualquer significado. É que o Carduus meonanthus costuma dar flores cor-de-rosa, e só muito raramente dará flores brancas. Nada impede que a mesma variação ocorra, com igual parcimónia, no C. tenuiflorus e nas demais espécies do género Carduus.

Na verdade, só encontrámos dois ou três núcleos de Carduus meonanthus, algures no Pinhal do Rei, a meia dúzia de quilómetros de São Pedro de Moel. Todas as plantas tinham flores brancas. Por não frequentarmos as praias do sul, não voltámos a encontrar o Carduus meonanthus, e por isso nunca o vimos com flores da cor normal. Mas as brancas parecem-nos mais bonitas.

24/09/2016

Flores de sol

As flores que aqui trazemos hoje têm destinatário: são para Francisco Clamote, que descobriu recentemente uma nova espécie para a flora de Portugal.


Xeranthemum inapertum (L.) Mill.


Raramente temos consciência do quanto nos esquecemos. Enquanto acontecem, deixamos sumirem-se ruídos, movimentos, imagens, pensamentos, como se a nossa memória, com rédea solta, esbanjasse o presente desinteressada do futuro. Essa rotina de ignorar parte do mundo deve ser, contudo, uma vantagem evolutiva, uma componente importante do nosso livre arbítrio. Muitos apreciariam possuir a arte de domar as suas memórias, uma gestão que a seu tempo estenderiam às lembranças dos outros. A grande maioria, porém, comove-se com o que pode durar uma eternidade, como estas inflorescências que resistem anos a fio depois de secas, símbolos de uma memória perene que se designam carinhosamente por saudades-perpétuas. Imortalidade que em grego os taxonomistas decidiram celebrar com o nome Xeranthemum.

As pedreiras já desactivadas, ditas antigas, como aquela perto da qual vimos este malmequer-de-palha, são cicatrizes tenebrosas em habitats cujo valor se esgotou para as pessoas que dali tiraram algum benefício, mas que se renovam quando a flora retoma o domínio. Nesta, um lugar árido em Vimioso, as plantas são ainda escassas, seja de Spiranthes spiralis ou de Cynoglossum cheirifolium, com uma distribuição tímida de quem acabou de chegar. Os talos fininhos desta espécie de Xeranthemum passarão ali despercebidos ao olhar destreinado se não estiverem em flor, o que só acontece em Junho, quando o solo já acusa a estiagem. São, porém, se a memória traiçoeira não se tiver esvaziado muito, as asteráceas mais bonitas que já vimos.

Desta espécie, há apenas, no portal Flora-On, este registo (de Ana Júlia Pereira e Miguel Porto) em Trás-os-Montes, região que, bafejada pela sorte, conta ainda com a única população conhecida da segunda espécie do género que ocorre em Portugal, o X. cylindraceum.

20/09/2016

A ressurreição do agrião



>Rorippa amphibia (L.) Besser


Rorippa nasturtium-aquaticum é o nome científico do popular agrião usado em sopas e saladas. Por falta de nome alternativo em português, temos chamado agrião às demais ervas do género Rorippa, quase todas elas amigas de ambientes húmidos ou encharcados. Com caules geralmente erectos e flores amarelas, não são assim tão parecidas com o verdadeiro agrião, que tem flores brancas e caules prostrados. De facto, estudos moleculares indicam que o agrião está mal posicionado no género Rorippa, e por isso há quem prefira emancipá-lo num género próprio, chamando-lhe Nasturtium officinale.

Falemos pois do falso agrião que hoje ocupa o escaparate. O epíteto amphibia sugere que ele está à vontade tanto na água como em terra. O local onde em Junho passado o encontrámos, uma lagoa pouco profunda de uns quatrocentos metros de comprimento, em Febres (Cantanhede), permitia-lhe fazer bom uso dessa versatilidade, não se ficando temerosamente pelas margens mas avançando bem até ao centro da lagoa. Espreitando com alguma dificuldade por entre a densa vegetação de árvores, juncos e canas, o que víamos (2.ª foto) era o amarelo das flores ocultando o azul da água. E era um amarelo espesso, pois a Rorippa amphibia, podendo ultrapassar um metro de altura, não é uma planta rasteira.

Não é apenas pelo habitat aquático e pelo porte avantajado que a Rorippa amphibia se distingue das congéneres que por aqui têm desfilado (a R. palustris é muito menor, a R. pyrenaica prefere lugares mais secos). Embora as folhas basais exibam forma muito variável, as folhas caulinares costumam ser inteiras e às vezes (1.ª foto) bastante largas. Outro pormenor distintivo é que os frutos (silíquas) são duas a três vezes mais curtos do que os pedúnculos (penúltima foto).

A extensão ocupada por esta Rorippa todo-o-terreno na lagoa de Febres sugere, correctamente, que a planta é capaz de se reproduzir vegetativamente, libertando estolhos que, enraizando-se, dão origem a novas plantas. Não tendo ela, ao que pudemos comprovar, conseguido instalar-se nas outras lagoas da região, é de supor que a reprodução por semente não tenha o mesmo grau de eficiência. Na verdade, e mesmo que esta população seja da ordem dos muitos milhares, a Rorippa amphibia é uma das espécies mais raras e ameaçadas da flora portuguesa. Assinalada apenas na Beira Litoral e no Ribatejo, mas pouco ou nada vista nos últimos anos, pode ser que a sua exuberante presença nesta lagoa de Cantanhede seja o seu canto do cisne em território nacional. (De resto, embora rara na Península, ela é comum na Europa para lá dos Pirenéus.)

17/09/2016

Maio em Cantanhede

Comecemos por recordar como é uma Leuzea conifera, uma das asteráceas mais bonitas dos calcários do centro e nordeste do país. Aprecia clareiras de bosques e taludes rochosos com solo bem drenado. Note como a folhagem é rasteira e como os capítulos de flores, terminais e solitários, nascem protegidos por uma atraente pinha de brácteas coriáceas e brilhantes.

Façamos agora algumas alterações ao formato e ao porte desta espécie. Estiquemos as folhas até terem uns 20 cm de comprimento e margens quase sem recorte, apontando num papel, para não esquecermos, que longifolia seria um epíteto apropriado para uma tal planta. Puxemos também para o alto a haste floral até ela atingir uns 70 cm, e finalmente coloquemos em cima uma pinha como a da L. conifera, arredondando-a, porém, para que se equilibre sem esforço na ponta do talo. E aqui temos mais uma espécie perene de Leuzea, a que chamaremos Leuzea longifolia. Assim alta e de folhas erectas, está perfeitamente adaptada a habitats húmidos, com solos margosos e escorregadios.


Leuzea longifolia Hoffmanns. & Link / Rhaponticum longifolium (Hoffmanns. & Link) Soskov


Naturalmente, a espécie que acabámos de fabricar é nossa. Trata-se de um endemismo lusitano, descrito em 1825 por Hoffmannsegg e Link na Flore Portugaise ou description de toutes les plantes qui croissent naturellement en Portugal, de que se conhecem apenas meia dúzia de populações, todas com poucos indivíduos. Teoricamente protegida por legislação portuguesa e da Comunidade Europeia, está de facto em perigo de extinção devido à destruição imparável dos habitats palustres no nosso território. A boa notícia é que a população que conhecemos, talvez a mais nortenha de todas as que existem, situada perto de uma das inúmeras lagoas de Cantanhede, parece em franca expansão entre os matos de urze, murta e carvalho-anão.

O género Leuzea tem estado em actualização e as suas espécies que ocorrem em Portugal foram transferidas para o género Rhaponticum. A L. longifolia designa-se Rhaponticum longifolium, nome a que tem direito desde 1959 a partir da investigação do botânico russo Yurij Soskov.

13/09/2016

Lagoas de Cantanhede

Que resta de natureza num concelho como Cantanhede, onde todos os metros quadrados de terreno parecem ter sido avaramente aproveitados para algum fim? Entre pinhais, eucaliptais, vinhas, campos de cultivo, fábricas, armazéns, povoações desordenadas e vivendas avulsas, numa paisagem plana, sem maciços rochosos e sem recantos, haverá ainda lugar para o que é espontâneo? A resposta, já se adivinha, é enfaticamente positiva. Basta lembrar que os pinhais da Tocha, embora infestados por acácias, dão abrigo a camarinhas, samoucos, giestas variadas, sargaços amarelos e brancos, salgueiros-anões, meia dúzia de espécies de orquídeas, e até a um verbasco endémico da costa portuguesa. Beneficiando das estradas em estado calamitoso, da ausência de redes de telemóvel e de outros inconvenientes que afugentam os veraneantes, certos pontos do cordão dunar apresentam uma flora em muito bom estado. Avançando para o interior, e já perto da sede de concelho, o Horst de Cantanhede é uma pequena ilha calcária que, a somar a uma invejável colecção de orquídeas, logrou reunir uma mão-cheia de raridades (como esta, esta ou esta), algumas delas no limite norte da sua distribuição em Portugal.

E, rodeadas por matas de produção ou por campos agrícolas, muitas são as lagoas e charcos que pontuam as imagens aéreas do concelho. Antes da invenção do Google Earth, só quem consultasse os mapas militares se aperceberia dessa fartura de águas paradas. Não havendo diferenças de altitude, ou sendo elas quase insignificantes, as águas não se esforçam por chegar ao mar a não ser nas épocas de muita chuva. Artificiais ou naturais, essas lagoas acabam por ser o refúgio de plantas que desapareceram das zonas do país onde os habitats palustres se fizeram raros. Em Cantanhede, as populações de Utricularia australis, uma planta carnívora aquática com flores amarelas que fazem lembrar as das linárias, devem ser as maiores do país.

A freguesia de Cantanhede com maior número de pequenas lagoas talvez seja a de Febres; um dos lugares da freguesia tem precisamente o nome de Lagoas. Será apenas coincidência que uma terra com tantas lagoas e charcos se chame Febres? O senso comum considera (ou considerava) tais lugares como viveiros de mosquitos transmissores de infecções — ou seja, causadores de febres. Mas, como o nosso clima não é tropical e a água faz falta, e como um ecossistema em equilíbrio raramente é fonte de pragas, é preferível deixar as lagoas em paz em vez de tentar secá-las. Além do mais, mesmo não se aconselhando mergulhos, as lagoas são bonitas, com margens agradavelmente providas de sombras para acolher famílias merendantes.



Schoenoplectus lacustris (L.) Palla


O Schoenoplectus lacustris, popularmente conhecido como bunho (embora o mesmo nome se dê a uma espécie de menor porte, Scirpoides holoschoenus, comum em todo o país), é uma ciperácea de quase três metros de altura que guarnece profusamente duas das mais recatadas lagoas de Febres. Como planta rizomatosa que é, forma densos aglomerados na borda das lagoas, suprindo a falta do caniço (Phragmites australis), que talvez prefira substatos mais arenosos. As hastes deste bunho, quase destituídas de folhas (que estão em regra reduzidas a bainhas), são grossas, com uns 2 cm de diâmetro, e têm secção perfeitamente circular. As inflorescências, formadas por várias dezenas de espiguetas cada uma com 1 ou 2 cm de comprimento, surgem como cabeleiras despenteadas no topo das hastes, e a floração, que começa na Primavera, prolonga-se pelo Verão dentro. De acordo com a Flora Ibérica, a espécie deveria estar presente em todas as províncias portuguesas, mas no portal Flora-On só se dá conta de ocorrências no centro e sul do país. A mesma Flora Ibérica considera, além da subespécie nominal (representada nas fotos), a subsp. glaucus, que vive em sapais e em estuários e tem dimensões menores.

O nome galego (e espanhol) do Schoenoplectus lacustris, que é antela, recorda um dos piores actos de destruição da natureza levados a cabo no país vizinho ao longo do século XX. A planta deu nome à lagoa de Antela, uma das mais extensas zonas húmidas da Península Ibérica: com 40 Km^2 de área, era várias vezes maior do que a nossa Pateira de Fermentelos. Situada na província de Ourense, a cerca de 600 m de altitude, a lagoa foi drenada em 1959 por ordem do governo de Franco, que justificou o ecocídio pelo aproveitamento agrícola dos terrenos e como medida para erradicação dos mosquitos.

10/09/2016

Lobelinha

Para escolher o nome de uma criança, muitos pais sofrem noites de insónia a listar nomes, a dizê-los repetidamente em voz alta para se habituarem à sonoridade, a testar a harmonia com os apelidos, a inventar diminutivos, a combinar floreios. A escolha é tão variada que lhes custa decidir, e não é assim tão raro que afinal depois se arrependam do nome que escolheram, chegando alguns a oficializar a troca. Descoberta uma nova planta, se ela é muito parecida com as de algum género já nomeado, então metade do binómio que a virá a designar está determinado. Se o mesmo se aplicasse às pessoas, os membros de cada família teriam um mesmo nome inicial desde o primeiro par de progenitores. Nas plantas, resta então ao botânico atribuir um epíteto que distinga cada espécie das outras do mesmo género. O problema deste procedimento está no modo mais ou menos rigoroso de se atestar que uma planta se parece muito com outra sem o rigor que hoje os testes genéticos conferem. Vejamos um exemplo.


Solenopsis laurentia (L.) C. Presl


A planta pequenina das fotos, de flores azuladas que se inclinam para o solo para aí depositar as sementes em segurança, parece uma lobélia pela configuração da corola bilabiada, o cálice dentado, a haste floral alta, o leve recorte das margens das folhas e o arranjo basal da folhagem. E houve quem, no século XVIII e XIX, a colocasse no género Lobelia, a começar por Lineu, que, em 1753, a designou por Lobelia laurentia. Contudo, as flores das lobélias não são solitárias; além disso, ensina a Flora Ibérica, têm a corola tubular fendida na parte dorsal, coisa que esta não tem. Razões suficientes para o botânico checo Carl Borivoj Presl (1794-1852) propor uma mudança de nome: em 1836 passou a ser uma espécie de Solenopsis, termo que deriva do grego solen, tubo, e opsis, aspecto, aludindo ao formato tubular das corolas. As espécies deste género têm uma distribuição restrita à região mediterrânica, Península Ibérica e ilhas Baleares (que possuem um endemismo, a perene Solenopsis balearica). Presl parece ter hesitado na escolha do epíteto específico, indeciso entre gracilis, minuta, salzmanniana ou canariensis. Tendo em conta a precedência de Lineu, pôs um ponto final no assunto ao optar por laurentia.

Esta é uma planta anual relativamente rara na Península Ibérica, estando em alguns locais à beira da extinção, mas de que há um número animador de registos no centro e sul de Portugal continental. Tardámos a vê-la porque não a procurámos no habitat de que ela realmente gosta (margens húmidas de linhas de água, charcos e barragens, sujeitas a encharcamento temporário) e por ser de porte tão diminuto, fácil de se esconder no meio de outras herbáceas. Vimo-la no início do Verão nas margens de uma grande represa no Ribatejo, um lugar tão rico em biodiversidade (mas só de plantas minúsculas) que circulamos sempre por ele em bicos de pés. Dias depois, ao visitar um terreno de solo margoso perto de Cantanhede (onde mora uma população notável de Leuzea longifolia) revimo-la a forrar sulcos mais ou menos encharcados onde antes tinham aparecido bons contingentes de Cicendia filiformis.

Ao contrário dos do Ribatejo, quase todos os exemplares de Cantanhede exibiam flores brancas que, como as azuis, têm dois lóbulos superiores erectos como orelhas, e três inferiores ligeiramente dobrados para trás, lembrando dentinhos de coelho. Notam-se também umas pintas brilhantes na parte interna do tubo, mais densas na vizinhança dos estames, no que parece um enfeite mas deve ser um alerta, tal como se julga acontecer nas gencianas.

06/09/2016

Mistério suculento


Tolpis succulenta (Dryand.) Lowe — fotografada no Porto Santo


Uma planta lenhosa quase rastejante, lançando uma confusão de hastes folharudas, entrelaçadas como teias de aranha, salpicadas de flores amarelas: eis o retrato à la minute da Tolpis succulenta, um endemismo da Madeira e dos Açores, por ocasião da sua terceira visita a este blogue (visitas anteriores: 1.ª, 2.ª). Tem sido nossa política não repetir convidados, para que a tarefa de mostrar toda a flora portuguesa (ou ibérica, ou macaronésia, ou do vasto mundo que ainda nos falta conhecer) possa alguma vez estar concluída. Por que razão abrimos, e pela segunda vez, uma excepção para este malmequer arbustivo? Gostamos da planta, e estamos dispostos a defender-lhe a beleza contra todos os detractores. A beleza vegetal, diga-se, não é uma qualidade absoluta e abstracta, independente de um contexto. Uma flor que irrompe da pedra, que consegue alimentar-se da secura, suscita-nos maior adesão emocional do que as abundantíssimas flores dos prados. E, entre todas as possíveis formações rochosas, as das ilhas atlânticas são as que mais nos entusiasmam, por ser duplamente improvável (pela pequenez da ilha face ao oceano e pela aridez da pedra) que a vida ali conseguisse instalar-se.

Sim, tudo isto é verdade, mas a Tolpis succulenta não é a única planta das ilhas nesses habitats, e é indisfarçável que lhe temos dado tratamento preferencial. Acontece que ela, apesar de assinalada nos dois arquipélagos, apresenta um tal grau de variação que, se as plantas da Madeira fossem apresentadas às dos Açores (ou vice-versa), dificilmente as reconheceriam como suas iguais. Para comprovar o estranhamento mútuo, juntamos aqui fotos das duas variantes: em cima a madeirense (do Porto Santo), e em baixo a açoriana (de São Miguel). Salta à vista que uma tem folhas muito mais estreitas do que a outra, e que, embora o seu recorte possa variar muito, elas são tendencialmente pinatífidas na Madeira e com margens dentadas ou inteiras nos Açores. E a disposição das folhas basais numa quase-roseta é frequente na T. succulenta madeirense (ver 1.ª foto acima) mas não se observa nas plantas açorianas. Para que não se julgue que fizemos uma escolha capciosa das fotos para confirmar uma crença a priori, veja-se como nesta página da Naturdata, com imagens das duas T. succulenta, as diferenças são ainda mais notórias. As preferências ecológicas são também distintas: ao contrário do que sucede na Madeira e no Porto Santo, onde aparece em picos rochosos a altitudes consideráveis, nos Açores (e com excepção de Santa Maria, onde está por todo o lado) a T. succulenta é uma planta exclusivamente costeira.

Face ao testemunho das imagens, a estranheza é que as duas variantes tenham sido incluídas na mesma espécie, mesmo considerando que noutras épocas, não existindo fotografia digital nem estando banalizadas as viagens aéreas, as comparações não seriam tão fáceis como hoje. As plantas são organismos vivos, não objectos padronizados saídos duma linha de montagem; por isso, as descrições verbais de uma qualquer espécie admitem sempre uma margem de variação. O problema é quando o intervalo de variação é tão generoso que abarca, nos seus extremos, coisas realmente distintas. Foi o que sucedeu à Tolpis succulenta: com um bocadinho de elasticidade, conseguiu-se que a descrição originalmente aplicada às plantas madeirenses se aplicasse também às açorianas, embora de facto se estivessem a meter alhos e bugalhos no mesmo saco.

Além das óbvias diferenças morfológicas, sabe-se hoje que as duas variantes da T. succulenta são geneticamente distintas. Na verdade, a T. succulenta açoriana está evolutivamente mais próxima da T. azorica (a outra espécie do género endémica dos Açores) do que da T. succulenta madeirense. Há 15 anos que esse (tão mal guardado) segredo é conhecido. Num artigo intitulado Chloroplast DNA evidence for the roles of island colonization and extinction in Tolpis (Asteraceae: Lactuceae), publicado em 2002 no American Journal of Botany, os autores (Michael J. Moore, Javier Francisco-Ortega, Arnoldo Santos-Guerra, Robert K. Jansen) dizem o seguinte:

«We chose to follow Jarvis (1980) in using the name T. succulenta for plants of both the Azores and Madeira Islands. However, it seems clear from observations in the field, as well as from our cpDNA restriction site data, that the plants Jarvis and others have referred to this name segregate into two species, one endemic to the Azores and the other to the Madeiran archipelago.»

A mesma observação foi reforçada em artigos recentes de outros autores (por exemplo neste de Dezembro de 2015, da autoria de Lurdes Borges Silva, Julie Sardos, Miguel Menezes de Sequeira, Luís Silva, Daniel J. Crawford e Mónica Moura), mas falta ainda dar um nome apropriado à espécie açoriana para que ela seja oficialmente reconhecida como endémica do arquipélago, e para que a genuína T. succulenta seja tratada como endemismo madeirense. O problema não é assim tão simples, pois mesmo dentro dos Açores a espécie exibe variações importantes (por exemplo, as plantas do grupo central têm capítulos bem menores do que as de São Miguel e de Santa Maria). Talvez um só nome novo não baste. Aguardamos com expectativa as surpresas dos próximos capítulos.


Tolpis succulenta (Dryand.) Lowe — fotografada em São Miguel

03/09/2016

Flores cristalizadas

Imagine-se em pleno século XV, à chegada de um barco de navegadores a uma ilha nunca habitada. Derreados de cansaço, receosos da terra estranha e impressionados com o silêncio, talvez comecem por um fogo que abra uma clareira, mostre caminhos e afaste perigos. De seguida, há que encontrar água doce, alimento e abrigo. Só muito depois surgirão outras preocupações, como a limpeza pessoal e a do lugar. Nesse tempo, fazer uma mistura de água quente e cinzas de soda para branquear a roupa era acessível a todos a partir das folhas esmagadas ou queimadas de várias plantas comuns à beira mar. A barrilha (Mesembryanthemum cristallinum) era uma das mais usadas para se produzir um substituto do sabão, reservando-se as folhas da erva-do-orvalho (Mesembryanthemum nodiflorum), comestível e fonte importante de sal, para saladas e caldos. Há registos do plantio destas espécies no ilhéu Chão; actualmente, sem uso, são ambas muito frequentes em todo o arquipélago da Madeira, sobretudo perto do mar.


Mesembryanthemum crystallinum L.





Mesembryanthemum nodiflorum L.


As duas espécies de Mesembryanthemum que vimos no Porto Santo só denunciavam o parentesco pelas flores. A M. nodiflorum é mais frágil e as folhas são cilíndricas, sésseis e avermelhadas, exibindo alguns pêlos cristalinos que guardam água e sal, enquanto a protegem de geadas, ventos e insolações. É nativa da região mediterrânica, Macaronésia e zonas costeiras da Península Ibérica. A M. cristallinum (orvalho-da-aurora ou erva-gelada) é maior e mais vistosa, com as folhas ovadas ou espatuladas em arranjo compacto e densamente cobertas por balõezinhos cristalinos. Ocorre também em arribas litorais e dunas do continente. Com origem em substratos rochosos, arenosos ou argilosos do sul de África e Europa, é considerada exótica em Portugal continental e nas ilhas. Mas é de crer que em algum momento do passado ambas as espécies de Mesembryanthemum tenham sido exóticas no arquipélago da Madeira.

Há dois pormenores curiosos da adaptação das plantas do género Mesembryanthemum ao intolerável excesso de sal. Este acumula-se nas raízes e folhagem, mas é libertado à medida que as folhas envelhecem e caem. Desse modo, em vez de ser um problema, o sal transforma-se num aliado precioso para estas plantas. É que, durante a fase de produção de sementes, grandes porções da planta secam e espalham muito sal pelo chão, assegurando assim na vizinhança um habitat salgado que nenhuma outra planta consegue colonizar, e onde as suas sementes germinam sem concorrência. Quanto à aridez e calor extremos, também aí estas plantas são engenhosas a sobreviver. As suas folhas estão formatadas para, durante o dia, reduzirem a absorção de dióxido de carbono e, desse modo, evitarem perdas de água por transpiração; trabalham depois arduamente de noite para captar e armazenar dióxido de carbono, essencial à fotossíntese no dia seguinte. Por causa deste mecanismo, diz quem provou que, de dia, as folhas são muito mais saborosas.

Segundo W.T. Stearn (Dictionary of plant names for gardeners), a designação do género começou por ser Mesembrianthemum, escolhida por Jacob Breyne em 1684. Esta palavra deriva dos termos gregos mesembria (meio-dia) e anthemum (flor), em alusão ao facto de as flores só abrirem quando o sol vai alto. Entretanto descobriram-se espécies de Mesembrianthemum em que a floração é noturna, e o nome tornou-se inapropriado. O botânico alemão Johann Dillenius (1684-1747) corrigiu a designação em 1719 com um rasgo de pragmatismo genial: substituiu o i por um y, e desse modo alterou a raiz da palavra e a informação que ela fornece. Mesembryanthemum refere-se a mesos (meio), embryon (embrião) e anthemum, aludindo correctamente à posição do ovário nas flores de todas as espécies deste género.