24/10/2017

Cárice peluda


Fuirena pubescens (Poir.) Kunth


Porque o deserto não é uma praia esticada até ao infinito, os beduínos preferem envergar grossos capotes em vez de optarem pelo traje sumário dos banhistas. O mesmo princípio leva certas plantas adaptadas à secura extrema (como este cacto) a cobrirem-se de pêlos para se protegerem do sol e minimizarem as perdas de água. Inversamente, as plantas que vivem em ambientes alagados pouca necessidade têm de tal resguardo, esperando nós, por essa razão, que elas sejam glabras ou a caminho disso. Esta ciperácea, amante de charcos como tantas outras da sua família, não parece estar de acordo com tal dedução, embora também não seja dos contra-exemplos mais eloquentes. A parte hirsuta da planta, a que se refere o epíteto pubescens, concentra-se na bainha das folhas, nos pedúnculos e nas inflorescências, enquanto que a parte por vezes submersa, que é a base do caule, fraca pilosidade apresenta.

O nome Fuirena homenageia o médico e botânico dinamarquês Jorgen Fuiren (1581-1628), ainda que esse género, englobando umas 60 espécies, seja predominantemente tropical e do hemisfério sul. Dessa lista, a F. pubescens é a única espécie (tangencialmente) europeia, por surgir na Península Ibéria, Itália e algumas ilhas do Mediterrâneo (Córsega, Sardenha, Baleares, Chipre, etc.), mas de resto tem uma distribuição vastíssima, abrangendo quase toda a África, o Médio Oriente, a Ásia tropical, a Austrália, a Papua Nova Guiné e muitas outras ilhas do Pacífico. Em Portugal aparece sobretudo nos charcos e represas que pontuam as grandes extensões arenosas do Ribatejo e do Alto Alentejo.

Se o habitat não ajuda a diferenciar a F. pubescens de outras espécies semelhantes (Bolboschoenus glaucus e Schoenoplectus lacustris, por exemplo), podemos notar que ela, além de ser peluda como as outras não são, é uma planta de menor envergadura, não ultrapassando, em regra, os 75 cm de altura (o Bolboschoenus atinge facilmente 1 metro de altura, e o Schoenoplectus lacustris mais que duplica essa marca).

18/10/2017

Flores do arco-íris

Hibernar não é, como sabemos, um privilégio dos ursos. Nas montanhas que se cobrem de neve quase todo o ano, são inúmeras as espécies de plantas que, tendo começado por arriscar pouco sendo anuais, evoluíram para formas perenes ou que geram sementes que, como as princesas dos contos de fadas, adormecem por longos períodos sem perder a viabilidade. Adequar-se com prudência a esse habitat extremamente frio, que só permite uma espreitadela ao sol numa fracção mínima do ano, exigiu adaptações minuciosas, e decerto várias tentativas até ao sucesso. No caso do género Androsace, um dos poucos com espécies a viver acima dos 4000 metros, o que notamos hoje é que as rosetas basais de folhas cobertas de penugem da Androsace villosa sem dúvida a beneficiam, pois as almofadinhas de folhas agasalham melhor a base frágil da planta e asseguram estabilidade em fissuras rochosas de taludes inclinados e expostos. E também nos parece que, num habitat com tanta brancura, as flores alvas têm maior chance de sobreviver aos predadores, não deixando de ser avistadas pelos polinizadores graças ao centro da corola mais garrido (como é usual na família Primulaceae). E não diriam igualmente que formar tapetes de flores é um excelente plano para uma planta rasteira com flores minúsculas como estes jasmins-da-rocha?


Androsace villosa L.


Pois sim, acreditamos que estes aspectos morfológicos são adaptações ao ambiente, mas como se confirmam cientificamente estas opiniões? Fomos à procura de artigos científicos neste assunto, e encontrámos publicações de botânicos empenhados em comprovar que as condições climáticas nas montanhas do hemisfério norte ajudaram a moldar a forma e o ciclo de vida que hoje conhecemos em algumas espécies do género Androsace, criando oportunidades valiosas de colonização.

Para testar as inúmeras hipóteses sobre os possíveis mecanismos de pressão selectiva, houve que criar modelos matemáticos que simulassem vários cenários de evolução, a interacção gradual com o habitat e a variação mais ou menos aleatória das condições necessárias à viabilidade das plantas. Juntaram-se-lhes análises genéticas para aferir o grau de diversidade de várias espécies conhecidas neste género (que somam cerca de 110), adaptadas a distintas ecologias, e para quantificar outros sinais filogenéticos com valor estatístico. Em resumo, as conclusões dos cientistas revelam que é bastante provável que, neste caso, haja uma conexão relevante entre a ecologia e a evolução morfológica: quando as espécies ancestrais de Androsace, com regimes anuais, chegaram a zonas mais frias e de maior altitude sem poder retroceder, a forma almofadada da folhagem foi a inovação que lhes conferiu a resistência e a tolerância adequadas ao clima agreste.

As drásticas alterações climáticas que a humanidade está a impor à Terra, combinadas com a reduzida capacidade destas herbáceas de migrar rapidamente para outros nichos, podem levar a que estes ajustes ao clima e ao meio ambiente, que nos parecem tão fantásticos, as condenem afinal a desaparecer depois de milhões de anos de esforço de sobrevivência em regiões montanhosas dispersas, isoladas e antes fragmentadas pela neve. Com elas se apagará um legado notável na história geológica e evolutiva do planeta.

10/10/2017

Malva das ilhas douradas


Lavatera olbia L.


As ilhas douradas são as de Hyères, na Riviera francesa, destino de veraneio para gente abastada, um eterno pôr-do-Sol numa esplanada com palmeiras, brisa tépida, mar rumorejante embalando iates adormecidos. Foi lá, dois séculos antes de o turismo ser inventado, que esta Lavatera olbia ganhou o nome que hoje ostenta. Olbia era o nome grego da cidade de Hyères, e nestas coisas da taxonomia botânica já Lineu dava o exemplo ao preferir um nome obsoleto, numa língua morta, à designação vernácula. O que neste caso pode dar confusão, pois existe na Sardenha uma cidade que ainda hoje se chama Olbia, mantendo esse nome desde os primórdios da civilização helénica.

O postal turístico do Mediterrâneo exclui a chuva. Talvez a água que corre das torneiras e enche piscinas não venha do céu, mas de mananciais subterrâneos inesgotáveis, que não têm necessidade do mau tempo (como chamam os jornalistas aos dias de chuva) para serem recarregados. É com surpresa que aprendemos que esta Lavatera olbia, mediterrânica de baptismo, gosta de sítios com alguma humidade ou mesmo encharcados, como sejam as margens de pequenos rios ou ribeiras. Haverá tal coisa nas ilhas de Hyères, a maior delas com 7 Km de comprimento? Talvez a proximidade da água doce não seja, para esta malva, um requisito essencial. Lembramo-nos de a ver, há meia dúzia de anos, junto à ribeira da Fórnea, na serra dos Candeeiros. Nessa altura, como quase sempre, nenhuma água corria no leito pedregoso, mas a memória do efémero caudal de Inverno era suficiente para atrair umas tantas plantas higrófilas. O segundo encontro, em Alcobaça, aconteceu num mês de Maio chuvoso, com ribeiras extravasando dos leitos e inundando caminhos, e já não pudemos duvidar da predilecção deste arbusto pela água.

Arbusto muito ramificado, capaz de atingir dois metros e meio de altura, com flores de 5 a 7 cm de diâmetro, a Lavatera olbia, que se dá melhor em substratos calcários ou argilosos, ocorre na metade oeste da bacia mediterrânica, tanto no norte de África (Árgélia, Marrocos, Tunísia, Líbia) como na Europa (Itália, França, Espanha e Portugal). No nosso país está assinalada na Beira Litoral, Estremadura, Alentejo e Algarve. Pode confundir-se com a L. arborea, que no entanto é de menor porte, menos ramificada, apresenta flores com uma coloração diferente (as pétalas têm uma mancha escura, quase negra, na base), e prefere (embora não exclusivamente) areias litorais.

03/10/2017

Os ursos chamam-lhe um figo

Esta é época propícia ao fabrico de alguns licores e aguardentes, um expediente para aproveitar frutos demasiado maduros ou que não são suficientemente doces para outro tipo de consumo. Por exemplo, a safra do medronho (Arbutus unedo) não tardará a começar para que as bagas de casca rugosa e cor-de-fogo não se percam desfeitas no chão. O amadurecimento dos frutos, começados a produzir há um ano, decorre em paralelo com a floração do ano corrente, e por isso recolhê-los é tarefa que exige cuidados. Em poucos meses haverá nova aguardente de medronho, feita com mais paciência do que esforço. Na Península Ibérica só ocorre esta espécie de Arbutus, mas outrora em Espanha já houve outras duas: Arbutus alpina L., cujo fruto parece um apetitoso araçá negro, e Arbutus uva-ursi L., com bagas vermelhas muito vistosas e comestíveis, mas igualmente pouco saborosas em cru. Apesar das semelhanças com o medronho, estas duas espécies foram mudadas em 1825 para o género Arctostaphylos, mantendo-se os epítetos específicos. Ambas parecem apreciar solos calcários de montanha, e foi nesse tipo de habitat na Cantábria que vimos os exemplares das fotos.


Arctostaphylos uva-ursi (L.) Spreng.



Os arbustos de A. uva-ursi são de porte rasteiro e têm folhas persistentes, de textura coriácea, que se arranjam em hélice ao longo do caule. As flores nascem na Primavera em cachos de delicadas campainhas com os bordos revirados, um formato típico na família das ericáceas.

As referências sobre nomes botânicos que consultámos indicam que a designação genérica arctostaphylos significa literalmente cacho de uvas (staphyle) de urso (arktos). O epíteto uva-ursi diz exactamente o mesmo, mas em latim. Peculiaridades de um tempo em que o latim (com uns pozinhos de grego) era a língua culta obrigatória para quem queria comunicar em ciência, como é hoje o inglês.