02/12/2013

Sabor de Outono



Colchicum multiflorum Brot.


Há plantas que parecem reduzir-se à simplicidade de uma flor, como se um romantismo exacerbado as levasse a viver só de beleza, recusando tudo quanto seja apenas utilitário. Porém, como elas não definham de uma tísica galopante, e antes reaparecem frescas ano após ano, é de suspeitar que guardem na despensa algum sustento de que se alimentam à socapa. Assim é com os Crocus e os Colchicum de floração outonal: não lhes vemos as folhas, mas elas existem. Para não estragar a pose etérea, só surgem algum tempo depois das flores. Os leigos ou distraídos nunca relacionam as flores acesas no Outono com os anónimos tufos de folhas na Primavera. Que o truque não funciona com observadores mais qualificados prova-o a existência destas fotos, tiradas no final de Outubro em Ferradosa (Alfândega da Fé), a 3 Km do rio Sabor. Miguel Porto, inventor e coordenador do portal Flora On, que por lá passou em Maio, não se deixou enganar pelo disfarce, e teve a generosidade de nos dar o alerta. As folhas do Colchicum multiflorum, com uns 30 a 40 cm de comprimento por 2 a 4 cm de largura, são uma versão menos robusta das da cebola-albarrã (Urginea maritima), outra planta bolbosa que pratica o desfasamento temporal entre floração e folhagem. Eram muitas as folhas que o Miguel viu, formando um tapete num bosque de freixos e amieiros, habitat sombrio pouco indicado para a Urginea. Quase enterrada no centro de uma roseta de folhas, a cápsula de um fruto acabou por desvendar a identidade da planta.

É altura de o leitor manifestar a sua estranheza: uma planta que se vê por todo o lado justifica uma viagem de centenas de quilómetros para ser observada? O leitor que nos perdoe a franqueza, mas está enganado. A planta que, entre Outubro e Novembro, se vê florida em prados e bosques de norte a sul do país é o açafrão-bravo, ou Crocus serotinus. As flores do Colchicum multiflorum, embora algo mais altas, têm de facto aparência semelhante, justificando o nome comum açafrão-bastardo. É porém avisado não usar a planta como condimento culinário, pois ela é a tal ponto venenosa que o gado, com uma intuição infalível para estas coisas, nunca lhe toca. Na verdade, quem por engano procure extrair-lhe o açafrão logo nota que as flores não dispõem do estilete ramificado, amarelo ou vermelho, de onde se obtém a iguaria. (Ressalve-se que o açafrão cultivado, diferente do açafrão-bravo, é o Crocus sativus.) O Colchicum e o Crocus também se distinguem pelo número de estames em cada flor: seis no primeiro contra três no segundo.

Contudo, a semelhança morfológica entre as duas plantas não é apenas superficial. Nos dois casos, o que vemos irromper do solo não é uma haste encimada por uma flor — é simplesmente uma flor, em regra até desprovida de pedúnculo. Aquilo que nos parece ser uma haste é um tubo oco por onde passa o longo estilete ligando o estigma ao ovário subterrâneo. Por isso os frutos surgem rente ao chão, aninhados no meio da folhagem. Este modo recatado de produzir frutos não favorecerá a dispersão de sementes a grandes distâncias; e, embora o Crocus serotinus seja comum, o mesmo não se pode dizer das duas espécies de Colchicum que são espontâneas em Portugal: além deste C. multiflorum, endemismo ibérico que só vimos em Trás-os-Montes e no Alto Alentejo (perto de Castelo de Vide), também ocorre o C. lusitanum, que tem tépalas com um padrão axadrezado e prefere substratos básicos.

4 comentários :

bea disse...

E dos pastos se fez flor....

Anónimo disse...

9Como sempre, belos imagens a ilustrar excelentes textos.
Foi na primavera que vi pela primeira vez o açafrão-bastardo. Os tufos de folhas luzidias e abastadas, mas sem qualquer flor ou indício dela deixaram-me intrigado. Nunca tinha visto tal planta e já conhecia muitas.
Depois de algum estudo cheguei à conclusão de que se deveria tratar de uma das 2 espécies de Colchicum existentes em Portugal, com mais probabilidade de se tratar do multiflorum, porque a existência do lusitanicum nas terras transmontanas é muito mais rara. Nunca a vi, aliás, nem lá nem noutro lugar qualquer.
Quando no outono o vi em flor fiquei extasiado. A elegância do porte e sobretudo a tonalidade rosa das pétalas, ao mesmo tempo calmante e doce, proporcionaram-me uma experiência inesquecível.
Não fora a asfixiante austeridade que nos tortura e já teria visitado mais vezes auquele magnífico sítio, de uma biodiversidade fora do comum.
É nos arredores de Chassim.

João Lourenço

Paulo Araújo disse...

Obigado pelo comentário, João. De facto, ver estas plantas em flor é uma experiência marcante - mais ainda quando, como no teu caso, se teve a argúcia de as reconhecer quando ela estavam incógnitas. Dá para suspeitar que em Trás-os-Montes o Colchicum multiflorum seja mais frequente do que se imagina, só que aparece numa época em que pouca gente está atenta. (O C. lusitanum só vimos em Sicó, em populações muito pequenas.)

Algo misteriosa é a ausência quase completa no Flora-On de registos do Crocus serotinus em Trás-os-Montes. Será assim tão raro por lá?

Anónimo disse...

Julgo que não, Paulo. Já vi várias vezes o Crocus serotinus em Trás-os-montes, embora muito antes de ser colaborador do Flora-on. O que se passa é que não se anda por lá muito na época da sua floração.

Julgo que é só isso.

João Lourenço