18/09/2023

Alfazema do mar

Lavandula dentata L.


É com o perfume de alfazema à beira-mar que largamos Maiorca e nos aprestamos a embarcar para nova ilha, igualmente espanhola e já aqui anunciada duas vezes. Maiorca é uma ilha grande, a dois passos da Espanha continental, e a condição insular não determina de modo decisivo — como sucede nos Açores ou na Madeira — as opções de vida dos seus habitantes. Para quem não dependa do turismo ou não viva na costa, é fácil esquecer-se de que está numa ilha: são várias as povoações maiorquinas de onde não se avista o mar; a oferta de tranportes públicos inclui uma linha de comboio (ligando Palma de Maiorca a Sollér) e uma rede de metro; e existem na ilha fábricas dos mais diversos artigos (por exemplo, o nosso calçado de montanha é lá produzido). Mesmo os turistas não obcecados pelos banhos de sol podem em Maiorca passar dias sem ver o mar, escalando a serra de Tramuntana ou deambulando nos extensos azinhais. Contudo, seria estúpido, para qualquer turista na ilha, obrigado que foi a abrir largamente os cordões à bolsa, não se demorar em passeios pelo litoral. Maiorca é uma ilha calcária, e uma das características dessa rocha é que se deixa moldar pelas forças erosivas de muito mais bom grado do que o granito ou o xisto. Um litoral de rochas calcárias há-de sempre exibir um recorte mais caprichoso e dramático do que um litoral granítico. Maiorca soube aproveitar-se bem dessa sua condição — e, apesar do volume exagerado de construções, não receia disputar um concurso de beleza com qualquer zona costeira deste nosso planeta, seja ela de que hemisfério for.

Não desvalorizando a beleza das rochas, é nossa crença que só com uma guarnição vegetal apropriada podem as formações rochosas atingir o ápice da beleza. Por isso esta alfazema a que Lineu chamou Lavandula dentata era necessária no sítio exacto onde a encontrámos. Há ainda a feliz circunstância de ela, dando flor quase o ano inteiro, raramente descurar as suas obrigações ornamentais: em Dezembro lá estava no seu posto, florindo incansavelmente.

Em português temos uma profusão de nomes para as plantas do género Lavandula: lavanda, rosmaninho, alfazema. Apesar de serem plantas comuns de norte a sul do país, por cá a variedade não é grande: há duas espécies quase iguais, L. stoechas e L. pedunculata, que entre si fazem quase o pleno do território continental, a elas se juntando, no extremo sul do país, a L. viridis. As duas restantes espécies por cá reportadas, L. multifida e L. latifolia, têm distribuições muito restritas. A Lavandula dentata, que não ocorre em Portugal e que se distingue, como sugere o epíteto específico, pelas folhas dentadas, apresenta algumas semelhanças com as espécies portuguesas mais vulgares: as inflorescências são todas terminais e compactas, em hastes não ramificadas, e são rematadas por um penacho de brácteas. Essa brácteas têm, presume-se, a função de atrair insectos, já que as flores propriamente ditas são pequenas e pouco chamativas — retintamente negras na L. stoechas e na L. pedunculata, rosadas e algo maiores na L. dentata.

O que as lavandas têm todas em comum é o agradável perfume (mais intenso na L. angustifolia, amplamente cultivada em França para perfumaria) e a generosa produção de néctar para recompensar polinizadores. É sempre para nós um bom encontro conhecer uma nova lavanda. E, não saindo da Europa, só em Espanha (Península Ibérica e Baleares) poderíamos ter encontrado a L. dentata no estado natural. Fora da Europa, a planta também ocorre no norte de África (Marrocos e Argélia), no médio Oriente (Israel e Palestina), na Península Arábica e na Etiópia; e em todos estes lugares mostra acentuadas preferências calcícolas, procurando invariavelmente substratos secos e pedregosos.

11/09/2023

Grão-de-bico canarino



Um dos endemismos mais raros das ilhas Canárias é um bizarro grão-de-bico. Os poucos núcleos conhecidos moram em recantos frescos de barrancos em áreas montanhosas elevadas das ilhas de La Palma e Tenerife. A população mais abundante que encontrámos em La Palma, com cerca de 20 plantas, estava num local dominado por Pinus canariensis; em Tenerife, também num pinhal, o único exemplar à vista estava protegido por uma cerca metálica, numa tentativa até ali bem sucedida de evitar que as cabras a comessem.

Cicer canariense A. Santos & G. P. Lewis


É credível, pelas flores e frutos, que o grão-de-bico das Canárias, Cicer canariense, tenha um antepassado próximo comum com a espécie Cicer arietinum, de cujos cultivares se extrai o grão-de-bico usado em culinária. Mas as folhas do Cicer canariense são muito diferentes. Pinadas, compostas por cerca de 50 folíolos lineares finos, como agulhas dispostas em duas fiadas, rematadas por uma gavinha, lembram as do género Vicia — e, entre 1960 e 1983, quando a planta foi descoberta e foram colhidos os primeiros exemplares para herbário, ela chegou provisoriamente a ser etiquetada como Vicia glandulosa.

Esta herbácea é perene, de base lenhosa, e toda ela muito peludinha. Os talos podem chegar aos 2 metros de comprimento e adoptar modos de trepadeira. As flores têm pé curto, nascem em cachos ralos e são rosadas, a tender para o violeta. Aspectos que as fotos não mostram porque os exemplares que encontrámos em Maio num pinhal do Barranco de Briestas, na vertente noroeste do vulcão de Taburiente (La Palma), mantiveram as flores fechadas durante toda a nossa visita; e o único exemplar que vimos em Tenerife, numa encosta do Teide, ainda não tinha florido. Mas o leitor pode conferir esta descrição aqui. As vagens dos frutos parecem inchadas, mas é para conterem com folga 6 a 8 grãos-de-bico, que nascem esverdeados e escurecem ao amadurecer.

04/09/2023

Urze de Inverno



Longe de serem despreocupadas, as férias de Verão são a época do ano em que, suspensos os afazeres profissionais, nos deixamos absorver pelo desconcerto do mundo. É o calor sufocante que nem à sombra nos dá tréguas, são os incêndios descontrolados dentro ou fora de portas (estes últimos com ampla cobertura mediática caso os incêndios domésticos não preencham adequadamente a quota de pânico reservada ao tema), são a inflação e os vários oportunismos à conta dela que tornam proibitivo frequentar hotéis e restaurantes, são as greves que se preparam para a rentrée e as que já vão fazendo mossa nos serviços públicos a meio-gás. Sobressaltados por um fluxo noticioso apocalíptico, com os níveis de ansiedade a subir perigosamente, é com alívio que regressamos à rotina do emprego e às comezinhas tarefas do dia-a-dia.

É inevitável que a dúvida se insinue: será Agosto um mês adequado para férias? Devemos todos fazer férias na mesma altura do ano? Quem goste do calor e dos escaldões que continue a reservar Agosto para a sua pausa laboral, mas cada um deveria poder gozar as férias prolongadas a que tem direito na estação do ano que mais lhe agradasse. Assim, sem nada (para lá do calor) que distinguisse Agosto dos demais meses, a comunicação social não teria pretexto para entrar no registo silly season — ou panic season, como deveríamos chamar-lhe.

Para quem tem a botânica como passatempo, é sabido que, no hemisfério norte e no clima mediterrânico que em grande parte é o nosso, Agosto é pouco compensador para passeios de campo. Vivemos num período de suspensão: depois da explosão primaveril, as plantas retraem-se com o calor e as de floração outonal aguardam as chuvas de Setembro. Nas terras frescas a maior altitude, em que a humidade no solo persiste todo o ano, é altura de observar gencianas, serrátulas e poucas coisas mais. De resto, vale a pena, em alguns rios ou lagos, espreitar as plantas que aproveitam a descida das águas para florir. Tudo somado, não é coisa que nos ocupe um mês inteiro de férias — daí a nossa pulsão de fugir para os Açores, onde o clima húmido esbate diferenças entre estações do ano e Agosto é dos meses mais primaveris.

Erica multiflora L.


E que tal férias de Inverno para observações botânicas? A lista de plantas que florescem em Dezembro no nosso território não é vazia (ver aqui), e — como mostram os casos do medronheiro e da urze-lusitana — não se retringe à metade sul do país, embora as plantas com essa distribuição estejam em maioria. Também de floração hibernal e também presente no nosso país é a urze-dos-brejos. Para completar um trio de urzes que gostam de florir no Inverno, só temos que ir a Espanha e travar conhecimento com a Erica multiflora (ilustrada acima). É um arbusto que atinge mais de 2 metros de altura e vive na bacia mediterrânica, em clareiras de bosques ou matos secos, sobre substratos calcários. Em Maiorca, onde o fotografámos, é frequente em pinhais de Pinus halepensis a baixa altitude; na Península Ibérica, aparece sobretudo na faixa mais oriental, entre Alicante e a fronteira com França. As flores com estames proeminentes, rematados por anteras escuras, acentuam a semelhança desta urze com a urze-dos-brejos (Erica erigena). No entanto, e como o próprio nome comum denuncia, esta última tem uma ecologia muito diferente, habitando lugares húmidos ou encharcados próximos do litoral. E entre as duas espécies há ainda visíveis diferenças no formato das flores e no comprimento dos pedúnculos: a E. multiflora tem-nos muito mais compridos.

Assim, e ainda que com algum enviesamento sulista, o Inverno acaba por ser botanicamente tão compensador como o Verão. E, sem o calor nem as correlativas ameaças de fim do mundo, umas férias em Dezembro são muito mais tranquilas do que em Agosto.