04/09/2023

Urze de Inverno



Longe de serem despreocupadas, as férias de Verão são a época do ano em que, suspensos os afazeres profissionais, nos deixamos absorver pelo desconcerto do mundo. É o calor sufocante que nem à sombra nos dá tréguas, são os incêndios descontrolados dentro ou fora de portas (estes últimos com ampla cobertura mediática caso os incêndios domésticos não preencham adequadamente a quota de pânico reservada ao tema), são a inflação e os vários oportunismos à conta dela que tornam proibitivo frequentar hotéis e restaurantes, são as greves que se preparam para a rentrée e as que já vão fazendo mossa nos serviços públicos a meio-gás. Sobressaltados por um fluxo noticioso apocalíptico, com os níveis de ansiedade a subir perigosamente, é com alívio que regressamos à rotina do emprego e às comezinhas tarefas do dia-a-dia.

É inevitável que a dúvida se insinue: será Agosto um mês adequado para férias? Devemos todos fazer férias na mesma altura do ano? Quem goste do calor e dos escaldões que continue a reservar Agosto para a sua pausa laboral, mas cada um deveria poder gozar as férias prolongadas a que tem direito na estação do ano que mais lhe agradasse. Assim, sem nada (para lá do calor) que distinguisse Agosto dos demais meses, a comunicação social não teria pretexto para entrar no registo silly season — ou panic season, como deveríamos chamar-lhe.

Para quem tem a botânica como passatempo, é sabido que, no hemisfério norte e no clima mediterrânico que em grande parte é o nosso, Agosto é pouco compensador para passeios de campo. Vivemos num período de suspensão: depois da explosão primaveril, as plantas retraem-se com o calor e as de floração outonal aguardam as chuvas de Setembro. Nas terras frescas a maior altitude, em que a humidade no solo persiste todo o ano, é altura de observar gencianas, serrátulas e poucas coisas mais. De resto, vale a pena, em alguns rios ou lagos, espreitar as plantas que aproveitam a descida das águas para florir. Tudo somado, não é coisa que nos ocupe um mês inteiro de férias — daí a nossa pulsão de fugir para os Açores, onde o clima húmido esbate diferenças entre estações do ano e Agosto é dos meses mais primaveris.

Erica multiflora L.


E que tal férias de Inverno para observações botânicas? A lista de plantas que florescem em Dezembro no nosso território não é vazia (ver aqui), e — como mostram os casos do medronheiro e da urze-lusitana — não se retringe à metade sul do país, embora as plantas com essa distribuição estejam em maioria. Também de floração hibernal e também presente no nosso país é a urze-dos-brejos. Para completar um trio de urzes que gostam de florir no Inverno, só temos que ir a Espanha e travar conhecimento com a Erica multiflora (ilustrada acima). É um arbusto que atinge mais de 2 metros de altura e vive na bacia mediterrânica, em clareiras de bosques ou matos secos, sobre substratos calcários. Em Maiorca, onde o fotografámos, é frequente em pinhais de Pinus halepensis a baixa altitude; na Península Ibérica, aparece sobretudo na faixa mais oriental, entre Alicante e a fronteira com França. As flores com estames proeminentes, rematados por anteras escuras, acentuam a semelhança desta urze com a urze-dos-brejos (Erica erigena). No entanto, e como o próprio nome comum denuncia, esta última tem uma ecologia muito diferente, habitando lugares húmidos ou encharcados próximos do litoral. E entre as duas espécies há ainda visíveis diferenças no formato das flores e no comprimento dos pedúnculos: a E. multiflora tem-nos muito mais compridos.

Assim, e ainda que com algum enviesamento sulista, o Inverno acaba por ser botanicamente tão compensador como o Verão. E, sem o calor nem as correlativas ameaças de fim do mundo, umas férias em Dezembro são muito mais tranquilas do que em Agosto.

2 comentários :

ZG disse...

Bela urze!!

bettips disse...

Fugir da que passou a ser a "panic season"... realmente apetece voltar à rotina, comer "dentro" e esquecer no dia a dia comum as loucuras do mundo.
O que dizem e as fotografias da simplicidade, sempre Bom! São sempre sinais de esperança.
Abçs