31/12/2010

Passagem


Amieiros e freixos — rio Ferreira, Valongo

Atravessavam uma floresta. Sem feras, que ali não as havia, um ou outro lobo, talvez, javalis. Nenhum tigre lhes saltaria às costas. E no entanto, avançando na penumbra lançada pelas copas fechadas, entre as colunatas dos troncos, todos aqueles homens valentes sentiam-se perpassar por uma ponta de estremecimento, cada qual levando seu próprio tigre no peito.

Marina Colasanti, Um homem, frente e verso ( 23 histórias de um viajante, Global Ed., 2005)

30/12/2010

Alface enganadora



Rhagadiolus edulis Gaertn.

Convém recapitular o bê-á-bá com alguma regularidade, não vá ele apagar-se-nos por falta de uso. As asteráceas, que incluem os malmequeres, os cardos e os girassóis, são a mais numerosa família de plantas à face da Terra, totalizando cerca de 23.000 espécies. Apesar de serem tantas e tão variadas, muita gente nunca lhes viu as flores — pois tal proeza, em geral, requer a ajuda de uma pinça e de uma lupa. Aquilo que um leigo toma por flor é na verdade um agregado de minúsculas flores, carinhosamente chamadas florículos. O arranjo mais popular e mais característico é o das margaridas, com os florículos tubulares a formarem o disco central da inflorescência, e os florículos externos dotados de línguas a fazerem as vezes das pétalas. Dentro deste modelo básico há depois as variações, com algumas plantas a optarem por ter mais florículos de um tipo ou de outro. Os cardos, por exemplo (ver aqui e aqui), têm só florículos tubulares e dispensam as "pétalas". No outro extremo estão aquelas plantas, como a chicória e a Scorzonera, que apenas dispõem de florículos ligulados. Constituem elas a tribo Cichorieae da subfamília Cichorioideae, e é nesta divisão das asteráceas que se integram as alfaces, tanto as verdadeiras como as de enganar.

Engano que, na verdade, não seria trágico. As alfaces querem-se para comer; e se, confundindo o Rhagadiolus edulis com uma alface silvestre (género Lactuca), o juntássemos a uma salada, pouco ou nada perderíamos com a troca. O epíteto edulis é garantia de palatibilidade, e só é pena que as plantas espontâneas não tragam placa identificativa para tirarmos mais proveito de tal informação. Na falta de placas, ainda se pouparia um bom dinheiro em hortaliças se ao latinório juntássemos um conhecimento mínimo de morfologia vegetal. Em vez de limparmos os jardins de "ervas daninhas", arrancaríamos as mesmas plantas para nos servirem de refeição. A tribo Cichorieae é aliás altamente comestível: além da alface, tanto a chicória como o banalíssimo dente-de-leão (género Taraxacum) têm grande vocação saladeira.

Sobre o Rhagadiolus edulis, discreto como é, pouco há a dizer. É uma herbácea anual com uns 50 cm de altura que ocorre de norte a sul do país em terrenos cultivados ou incultos e em bermas de caminhos. Globalmente, é espontânea em todos os países da bacia mediterrânica, da Península Ibérica à Turquia e de Israel a Marrocos.

29/12/2010

Raiz com dedos


Dactylorhiza caramulensis (Vermeulen) Tyteca [sinónimo: Dactylorhiza maculata subsp. caramulensis Verm.]

     Nomes vulgares: heath spotted orchid, orchis tacheté 
     Distribuição global: Portugal, Espanha e França - em orlas de bosques, margens de regatos e prados húmidos
     Distribuição em Portugal: metade norte do território (Beiras, Douro Litoral, Minho e Trás-os-Montes) 
     Época de floração: Maio a Julho 
     Data e local das fotos: Serra da Lousã, Junho de 2010

28/12/2010

Amarelo na pedra



Ranunculus bupleuroides Brot.

As plantas não aquáticas do género Ranunculus são fáceis de identificar pelo amarelo por vezes envernizado das pétalas que rodeiam um festivo centro de estames. Tanto assim que, sem querer, as relegamos em benefício de espécies que nos propõem desafios mais intrincados. Contudo, por nos depararmos frequentemente com as de porte rasteiro e folhas finamente divididas, este exemplar de talos que chegam aos 60 cm de altura e folhas elípticas recebeu atenção adicional. Ainda bem, como lerão.

Trata-se de um quase-endemismo português, do norte e centro do país, ocorrendo ainda esparsamente na Galiza perto da fronteira. E só abunda em ambientes secos de montanha com solo rico em sílica. É erva tenra mas vivaz, com folhas basais longas (~ 8 cm) e largas (~ 2 cm), de nervuras paralelas e margens inteiras, e com pecíolo fino que pode atingir três vezes o comprimento da lâmina; as folhas caulinares são sésseis. Floresce entre Março e Junho, e as cinco ou mais pétalas são de um matiz de amarelo invulgarmente claro. Como é usual no género, os frutos são aglomerados globosos de aquénios, cada um com um bico.

Ranunculus significa, em latim, rã pequena, que associamos a lugares alagados, o habitat preferido por muitas espécies deste género. Já aqui explicámos a origem do epíteto bupleurum; o sufixo oides alude à semelhança das folhas com as deste género.

27/12/2010

Feto-azevinho



Cyrtomium falcatum (L. fil.) C. Presl

Os americanos chamam Japanese holly fern a este feto. É bom prevenir os falantes de inglês técnico que aquele holly não significa sagrado, não vão eles deduzir que o feto seria usado no Japão em cerimónias budistas. Acontece que a consoante dobrada faz alguma diferença: holly (azevinho) não é o mesmo que holy (sagrado). Quando houver na língua inglesa um acordo ortográfico para abolir consoantes mudas deixaremos de distinguir a árvore do conceito espiritual. Confusão essa que talvez agrade a lexicólogos visionários (da estirpe daqueles que em português uniformizaram a escrita de palavras homófonas como pêlo e pelo) e aos adeptos da New Age.

São os folíolos do Cyrtomium falcatum, coriáceos, pontiagudos e de margens onduladas, que fazem lembrar o azevinho. E os esporângios agrupados em formações orbiculares, cor-de-tijolo, salpicando o verso das frondes num arranjo semi-natalício, são talvez mais um sinal da vocação do feto-azevinho para herdar as funções festivas tradicionalmente atribuídas à árvore das bagas vermelhas.

E onde poderá o leitor colher um punhado destes fetos para enfeitar a sua sala de estar? Afinal a planta é originária do extremo Oriente, que não fica logo aí ao virar da esquina. Mas o comércio hortícola encarregou-se de a espalhar pelo mundo, e em muitos países da América e da Europa ela não se deixou confinar aos jardins. Vi-a em Angra, no Jardim Duque da Terceira, não apenas em canteiros bem arranjados mas noutros lugares onde os jardineiros certamente não a quiseram plantar. E, no passeio a pé pelo Monte Brasil, reencontrei-a à sombra das densas matas de Pittosporum undulatum. Sendo a árvore-do-incenso uma das mais problemáticas espécies infestantes nos Açores, não é motivo para alarme que o feto-azevinho lhe faça companhia: o que havia para estragar há muito que está estragado. E o feto, capaz como é de atingir um metro de envergadura, é vistoso e faz boa figura entre o monótono arvoredo.

24/12/2010

Meninos ao léu


Orchis italica Poiret (forma albina)

O Natal é tempo de paz, tempo de amor, tempo de lamentar a existência de pessoas como eu. Não admira que seja uma época que toda a gente aprecia. No dia que assinala o nascimento do salvador, o cardeal-patriarca não resistiu a lembrar que há quem não tenha salvação possível. Acaba por ser uma observação animadora. Se alguma coisa pode transtornar quem mereceu um lugar no paraíso é o facto de haver fila para entrar. Pois bem, eu serei menos um a obstruir os portões do céu: na homilia da missa de 25 de Dezembro, D. José Policarpo saudou os judeus e todos os que acreditam num Deus único - mas, ostensivamente, não me saudou a mim, que sou ateu. Os judeus acreditam tanto como eu que o menino cujo aniversário se celebrava é o filho de Deus. No entanto, receberam uma saudação. Para mim, nem um caridoso aceno de cabeça.

O ateísmo tem sido, para mim e para tantos outros incréus, a luz que me tem conduzido na vida. Às vezes fraquejo, em momentos de obscuridade e de dúvida, mas, mesmo sendo incapaz de provar a inexistência de Deus, tenho conseguido manter a fé - uma fé íntima fundada numa peregrinação que tem a grandeza e a humildade da longa caminhada da vida - em que Ele não exista. Todos os dias busco a não-existência do Senhor com renovada crença, ciente de que a Sua inexistência é misteriosa demais para que eu a tenha inventado.

É certo que o mesmo D. José Policarpo já havia dito que o ateísmo era o maior drama da humanidade - acima da fome, da guerra e do próprio time-sharing. Fê-lo, porém, em data menos misericordiosa. Sonegar saudações no Natal é particularmente cruel. O anátema mais duro é o que é lançado no tempo do perdão. Estou habituado a receber anátemas e garanto aos menos experientes que os anátemas natalícios são os que aleijam mais. Em todo o caso, no fundo eu sei bem que não sou digno de ser saudado. Acreditar que Deus existe é uma convicção profunda, mas acreditar que não existe, curiosamente, não o é. Alguém, munido de um aparelho próprio, mediu a profundidade das convicções e deliberou que as do crente são mais fundas que as do ateu. Quando alguém diz acreditar em Deus, está a exprimir legitimamente a sua fé; quando um ateu ousa afirmar que não acredita, está a agredir as convicções dos crentes. Ser crente é merecedor de respeito, ser ateu é um crime contra a humanidade. Ainda assim, esperava ter sido saudado. Eu não acredito em Cristo, mas sempre acreditei nos cristãos. É a primeira vez que vejo um deles recusar ao menos uma saudação a um pecador.

Ricardo Araújo Pereira, Paz e amor para todos menos para mim (Visão, 30/XII/2009)

23/12/2010

Não-me-esqueças-das-orelhas



Myosotis welwitschii Boiss. & Reuter

Os miosótis são uma pedra no sapato do botânico amador, e mesmo um embaraço para profissionais. Há muitas espécies que ocupam habitats semelhantes e que, a olho nu, mal se distinguem. Quando os encontramos à beira de um rio ou de um regato, talvez fosse mais sensato ficarmo-nos pela contemplação, em vez de os fotografarmos para posterior identificação. É que a beleza não deveria ser sinónimo de impaciência e de frustração, e os miosótis não são responsáveis pela nossa mania de dar nome a tudo.

O problema é que, se não os pomos aqui no escaparate, parece que lhes ignoramos a existência. Mais vale arriscarmos um erro de etiquetagem do que sermos acusados de um tal desdém. Assim, baseando-nos nas descrições da Flora Ibérica, e atendendendo ao carácter moderadamente hirsuto da planta e às flores azul-pálido com centro amarelo, julgamos estar na presença do Myosotis welwitschii; se não fossem os pêlos, também poderia tratar-se do Myosotis laxa subsp. caespitosa, pois ambos frequentam lugares húmidos ou encharcados. Contudo, a nossa planta exibia um porte semi-prostrado, quando, de acordo com as descrições dessas espécies, deveria apresentar-se erecta. Com a incerteza por companhia, avancemos ainda assim.

O epíteto welwitschii é-nos especialmente grato, pois o botânico que por ele é homenageado, Friedrich Martin Josef Welwitsch (1806-1872), manteve particular ligação a Portugal e a Angola, como já aqui se mencionou a propósito de uma arméria que também leva o seu nome. Foi Welwitsch quem descobriu, no deserto de Namibe, a extraordinária planta que hoje se chama Welwitschia mirabilis.

Com um ciclo de vida anual ou bienal, o M. welwitschii tem hastes ramificadas de uns 60 cm de comprimento. Planta acidófila, encontra-se por quase todo o país em pastagens húmidas e margens de regatos, ou junto a fontes e a escorrências.

22/12/2010

Folhas-de-azeda


Polygonum lapathifolium L.

     Nomes vulgares: erva-pessegueira, mal-casada
     Distribuição global: subcosmopolita
     Distribuição em Portugal: quase todo o território continental, em relvados húmidos e leitos de rios
     Época de floração: Junho a Novembro 
     Data e local das fotos: rio Ferreira, Valongo, Setembro de 2010

21/12/2010

Goivo duriense



Erysimum linifolium (Pourr. ex Pers.) J. Gay

As obras de remodelação urbana que viraram o Porto do avesso em 2001 também devastaram sombras e jardins. Na avenida de Montevideu, à beira-mar, substituíram os goivos perfumados (Erysimum cheiri (L.) Crantz) por conchas, um adorno deplorável e monocromático de duvidoso benefício para os metrosíderos. Das valvas, cujo calcário os goiveiros teriam agradecido, não resta sequer o pó escuro em que se transformaram nos primeiros anos de exposição. E as flores não regressaram, nem há, como antes, aroma para temperar a maresia. Foi por isso duplamente agradável verificar que a classificação do Douro como património mundial ainda não varreu dos taludes os goivos silvestres.

O E. linifolium é um endemismo ibérico, retringindo-se ao norte de Portugal e ao centro de Espanha (em Portugal apenas ocorrem três goivos espontâneos, e só este no Douro). É uma planta perene de base lenhosa, caules altos e folhas lineares (3-12 cm), de margens inteiras e cor verde-cinza; contudo, as populações de areais costeiros exibem adaptações naturais a este habitat, como caules curtos, flores maiores e frutos mais pequenos. As flores de quatro pétalas lilases em cruz (2 cm), num conjunto saciforme com anteras verdes, dispõem-se em racimos corimbosos, exibindo-se entre Março e Julho, com um pico em Abril. A polinização está entregue a abelhas e o fruto é uma vagem estreita com muitas sementes.

A enciclopédia da Royal Horticultural Society dá conta de cultivares do E. linifolium, alguns de flores duplas, bicolores ou da cor da lua, todos eles desconhecidos nos jardins da sua pátria de origem. Não são flores-de-parede, como lhes chamam os ingleses, mas herbáceas de canteiro - rodriguinho que foi por aqui esconjurado.

20/12/2010

Ao mar pleno


Asplenium marinum L.

Há vários bons livros que tratam da aventura das plantas; ou, se quisermos ser precisos, da aventura do homem em busca das plantas e também das plantas que viajaram pela mão do homem. Ainda nenhum, que eu saiba, falou da vida aventurosa das plantas sem nela imiscuir o «factor antrópico». Enfim, terá havido tratados científicos ou livros de divulgação, mas o que falta é um romance da vida vegetal em que os heróis sejam plantas e não pessoas.

Porque, muito antes de a espécie humana existir à face da Terra, já as plantas eram grandes viajantes. Continuaram a sê-lo na infância da humanidade, quando nós estávamos limitados a curtas e laboriosas deslocações. Hoje elas viajam sobretudo à nossa custa, e com isso o equilíbrio dos ecossistemas ficou em risco. Mas as plantas que são nativas de locais muito distantes uns dos outros nunca precisaram de boleia nossa. Uma delas é este feto, que ocorre em rochas do litoral oeste europeu e que, muitos milhares de anos antes dos navegadores portugueses, descobriu por si próprio o caminho (marítimo ou aéreo) para os Açores. Fui-lhe levar notícias dos primos continentais que conheci em visitas às falésias da nossa costa. O habitat açoriano é o mesmo, só a rocha mudou de cinzento para negro. Mas consta que nas ilhas o feto pode subir as encostas expostas ao mar até uma altitude de 500 metros.

Para além da vocação marinheira, o que melhor distingue o Asplenium marinum de outros congéneres seus é a textura coriácea das frondes, que atingem uns 30 cm de comprimento e surgem agrupadas em tufos. As minhocas na face inferior das pínulas (foto acima) são os esporângios, num arranjo linear típico do género Asplenium. Mais minhoca menos minhoca, o feto pode ser admirado o ano inteiro por quem o souber procurar - seja no Continente ou nos Açores.

17/12/2010

Vale do rio Beredo


Betula alba L.

No alto ermo dos montes naturais temos, quando chegamos, a sensação do privilégio. Somos mais altos, de toda a nossa estatura, do que o alto dos montes. O máximo da Natureza, pelo menos naquele lugar, fica-nos sob as solas dos pés. Somos, por posição, reis do mundo visível. Em torno de nós tudo é mais baixo: a vida é encosta que desce, planície que jaz, ante o erguimento e o píncaro que somos.

Tudo em nós é acidente e malícia, e esta altura que temos, não a temos; não somos mais altos no alto do que a nossa altura. Aquilo mesmo que calcamos, nos alça; e, se somos altos, é por aquilo mesmo de que somos mais altos.

Respira-se melhor quando se é rico; é-se mais livre quando se é célebre; o próprio ter de um título de nobreza é um pequeno monte. Tudo é artifício, mas o artifício nem sequer é nosso. Subimos a ele, ou levaram-nos até ele, ou nascemos na casa do monte.

Grande, porém, é o que considera que do vale ao céu, ou do monte ao céu, a distância que o diferença não faz diferença. Quando o dilúvio crescesse, estaríamos melhor nos montes. Mas quando a maldição de Deus fosse raios, como a de Júpiter, de ventos, como a de Éolo, o abrigo seria o não termos subido, e a defesa o rastejarmos.

Sábio deveras é o que tem a possibilidade da altura nos músculos e a negação de subir no conhecimento. Ele tem, por visão, todos os montes; e tem, por posição, todos os vales. O sol que doura os píncaros dourá-los-á para ele mais
[que] para quem ali o sofre; e o palácio alto entre florestas será mais belo ao que o contempla do vale que ao que o esquece nas salas que o constituem de prisão.

Com estas reflexões me consolo, pois que me não posso consolar com a vida. E o símbolo funde-se-me com a realidade quando, transeunte de corpo e alma por estas ruas baixas que vão dar ao Tejo, vejo os altos claros da cidade esplender, como a glória alheia, das luzes várias de um sol que já nem está no poente.


Fernando Pessoa, Livro do Desassossego (Assírio & Alvim, 2001)

16/12/2010

No meio é que está


Spergularia media (L.) K. Presl

É estranho que desta planta, talvez a maior do seu género na Península Ibérica, se diga que tem tamanho médio. Ou pelo menos assim se deve ler o epíteto científico media. Tratando-se de uma planta perene, entouceirada, de base lenhosa, capaz de ultrapassar os 60 cm de altura, faz figura de gigante face às herbáceas rasteiras suas congéneres (como a Spergularia rubra). Incongruências destas explicam-se geralmente pela migração entre géneros, e neste caso é isso mesmo que sucede. No seu Species Plantarum, em 1762, Lineu baptizou a planta como Arenaria media - e, no contexto do género Arenaria, o epíteto media não era inapropriado. Como é regra nestas coisas, o epíteto teve de manter-se quando, por mão do botânico checo Carl Presl (1794–1852), a planta se mudou para o género Spergularia.

A história, na verdade, é um pouco mais complicada. Há quem conteste que a planta descrita por Lineu seja aquela que hoje conhecemos como Spergularia media. Se assim for, a prioridade na descrição da planta não caberá a Lineu, mas sim ao italiano Carlo Allioni (1728-1804), que lhe chamou Arenaria maritima. O nome válido hoje em dia seria então Spergularia maritima (All.) Chiov.

Deixemos esta confusão para os entendidos e debrucemo-nos sobre a planta em si. Foi algo difícil fotografar-lhe as flores, não pela sua pequenez (uns 1,3 cm de diâmetro), mas pelo horário preguiçoso do expediente: antes do almoço, só uma se apresentara ao serviço. Depois da refeição havia mais flores abertas, mas o fotógrafo já não trazia equipamento. A flor solitária é porém suficiente para lhe vermos as pétalas brancas debruadas de rosa. Também podemos ver, ao lado dela, o fruto já aberto com as sementes castanhas a espreitar. As folhas são carnudas e lineares, de ponta aguçada, e têm 4 a 5 cm de comprimento.

A Spergularia media é uma planta subcosmopolita que gosta de sapais costeiros mas também frequenta algumas zonas no interior. É possível encontrá-la à beira-mar na companhia de uma congénere sua, a S. marina (L.) Griseb., que tem um porte mais compacto e folhas cilíndricas mais gordas e mais curtas.

15/12/2010

Das ervas e dos passarinhos


Polygonum aviculare L.

     Nomes vulgares: erva-dos-passarinhos, sempre-noiva
     Distribuição global: cosmopolita; em prados, bermas de caminhos e terrenos perturbados
     Distribuição em Portugal: continente e ilhas - quase todo o território 
     Época de floração: Abril a Setembro 
     Data e local das fotos: Ponte de Lima, Agosto de 2010

14/12/2010

Bastarda & falsa



Melittis melissophyllum L.

Saturno, deus do tempo e das eras, governou o cosmos sob o terror de uma profecia: a de que um dos seus filhos o haveria de destronar. Convencido de que seria capaz de a impedir, planeou devorá-los ainda crianças, menosprezando a fúria materna. Por isso, não se apercebeu de que, ao engolir o mais novinho, comeu um disfarce. E Júpiter cresceu escondido numa gruta, cuidado por ninfas dedicadas e festivas, até estar pronto para a vingança - que cumpriu enquanto venceu uma guerra contra os titãs comandados por Atlas (este, por castigo, carrega até hoje o céu aos ombros). Foi Melissa, a ninfa do mel e das abelhas, que alimentou Júpiter na infância; quando ele se tornou Senhor do Universo, presenteou a sua protectora com uma cornucópia.

Pelo nome, esta herbácea é duplamente melada: melittis é uma variante de melissa, palavra que deriva do grego meli, mel. Muito aromática, não tem contudo as virtudes, quanto à fragância a limão e ao uso terapêutico, da erva-cidreira (Melissa officinalis L.), o que os ingleses sublinham com um descortês bastard balm. Ainda bem, porque a falsa-erva-cidreira é perigosa. Quando seca, rescende a cumarina (um misto de canela e erva fresca, o odor das flores e frutos do castanheiro-da-Índia, Aesculus hippocastanum L.), uma substância tóxica que ajuda a planta a defender-se dos predadores e que, apesar de proibida como aromatizante de alimentos, ainda é usada em cosméticos.

O género Melittis é mono-específico. Vimos este espécime à beira da estrada, junto a um dos muitos regatos que serpenteiam pelo Gerês. E são os prados húmidos e os bosques de sombra da Europa e da Ásia, exceptuando os das regiões frias, que esta planta aprecia; na Península Ibérica, segundo os entendidos, só ocorre no terço norte.

É rizomatosa, logo perene, mas de folhagem caduca. O caule pode chegar aos 90 cm, é penugento e de secção quadrada. As folhas são ovadas mas com um ápice acentuado. As flores são axilares, poucas por cada verticilo, em regra viradas todas para um mesmo lado. O cálice é verde e dentado; a corola com cerca de 4 mm é um tubo largo de cor creme e manchas púrpura no lóbulo inferior e na garganta; o lóbulo superior forma um capuz curto que não esconde os estames.

13/12/2010

Avenkga


Adiantum capillus-veneris L.

Aprendi o que é a sucessão ecológica muito antes de saber o nome do fenómeno. Na varanda da nossa casa, fechada com uma marquise de alumínio na boa tradição suburbana, a minha mãe mantinha uma colecção de plantas envasadas que eu me incumbia de regar com uma assiduidade letal. A falar verdade, a dita colecção, mesmo no seu apogeu, nunca foi muito variada: lembro-me dos cactos, das begónias e da avenca. E lembro-me, também, como definhavam os cactos e as begónias - sei hoje que por culpa minha - e como os luxuriantes pés de avenca acabavam por invadir todos os vasos. No habitat húmido hiper-saturado que eu criava só uma planta especialmente adaptada poderia sobreviver. Às outras plantas cumpria apenas preparar o terreno (sem elas não se teriam comprado os vasos) para o triunfo final da avenca.

Não sei se essa avenca ornamental era a mesma que por aí cresce espontânea. Talvez não fosse, pois as floristas tinham o seu brio e, tal como hoje ainda acontece, preferiam vender produtos importados. Mas as avencas são todas bonitas, seja num muro ou num vaso, e a avenca europeia até pediu o nome emprestado à deusa do amor: capillus-veneris significa exactamente cabelos-de-Vénus. Os cabelos são as hastes finas e negras, longamente pendentes, de onde saem os folíolos (ou pínulas) de um verde brilhante. Tudo isto em miniatura para treinar e gratificar a observação paciente.

Os aficionadas dos fetos têm o costume desagradável de lhes levantar as frondes para os espreitar do avesso, como se fossem médicos a sondar as intimidades de um paciente. Acontece que os esporângios costumam estar na face inferior das folhas, e o modo como se dispõem é importante para a identificação correcta da espécie. Uma característica do Adiantum capillus-veneris, que ajuda a diferenciá-lo das avencas exóticas, é que os esporângios estão protegidos por uma dobra na margem das pínulas, visível na terceira foto lá em cima. Ressalve-se, contudo, que só algumas pínulas, e só em certos períodos do ano, é que exibem tais dobras e produzem tais esporângios.

Assim como outros fetos, a avenca é ideal para um botânico sedentário que, no Inverno, não queira chafurdar por caminhos enlameados. Qualquer muro de pedra antiga num recanto esquecido da cidade é um possível habitat.


Adiantum capillus-veneris L. / Ginkgo biloba L.

Apesar do amarelo outonal e da desproporção dos tamanhos, as fotos explicam cabalmente por que razão os anglo-saxónicos tratam o ginkgo e a avenca pelo mesmo nome: o feto é o maidenhair fern, a árvore a maidenhair tree. (Por que se terá Vénus convertido em donzela (maiden) na passagem do latim para o vernáculo? Parece obra de vitorianos receosos de explicar coisas inconvenientes às criancinhas.) As folhas, de facto, parecem ter sido desenhadas pelo mesmo artista gráfico; ou então Deus, por cansaço criativo, repetiu formas na esperança de que ninguém notasse o auto-plágio.

A semelhança foliar entre a avenca e o ginkgo aparece num episódio que mereceria figurar no Livro Verde do Imperialismo e do Preconceito, se a obra existisse. O nome científico Ginkgo, que adopta a designação japonesa da árvore, foi oficializado por Lineu em 1771. Mais tarde, em 1797, o botânico inglês James Edward Smith, fundador da Linnean Society londrina, considerou que o nome oriental era bárbaro e inapropriado - apesar de a árvore ser ela própria oriental -, e propôs que em vez dele se usasse Salisburia adiantifolia. O epíteto significava, está bom de ver, com folhas de adiantum, mas o Salisburia era uma homenagem de J. E. Smith ao seu amigo Richard Salisbury. Contra todas as regras da precedência taxonómica, o nome espúrio teve uma voga de pelo menos um século, e não apenas em Inglaterra. Em Portugal, mesmo depois do ultimato britânico de 1890, o Jornal de Horticultura Prática continuava, obsequiosamente, a falar da Salisburia adiantifolia.

(Imperialistas são os que podem ditar regras; os outros, quando muito, são aprendizes.)

10/12/2010

Leituga pernalta


Tolpis azorica (Nutt.) P. Silva

A inexistência de genuínos nomes populares para boa parte da nossa flora espontânea, até da mais vulgar, atesta que o nosso povo nunca quis saber muito de plantas. Os Açores, como pedaço de Portugal ancorado no Atlântico, não poderiam ser excepção a essa característica indiferença dos portugueses pelo mundo natural. Só assim se entende que uma planta tão vistosa e encorpada como a Tolpis azorica, que além do mais é um endemismo açoriano, não tenha recebido qualquer nome vernáculo. Para remediar a omissão, propomos o nome leituga-peralta: é que a planta tem base lenhosa e pode atingir um metro de altura, ao passo que a leituga comum (Tolpis barbata) é uma herbácea rasteira. A leituga-pernalta também se singulariza pelas grandes folhas de margens dentadas e pelo tamanho das inflorescências, que têm cerca de 5 cm de diâmetro.

Que a planta continental tenha dimensões liliputianas face à sua congénere insular dever-se-á a um clima de humidade intensa, quase de estufa, que favorece crescimentos anormais. O fenómeno é visível mesmo em árvores ornamentais como as araucárias, que nos Açores crescem mais e mais depressa do que as que moram nos jardins do continente. Lugares há, como as Furnas de São Miguel, em que a vida vegetal parece acelerada por motores em permanente combustão.

Regressemos à Tolpis azorica para acrescentar uns breves dados biográficos. Tendo ela embora reputação de rara, no trilho Serreta-Lagoinha é fácil encontrá-la, em núcleos dispersos, a altitudes relativamente baixas - ainda que os manuais asseverem que ela só aparece acima dos 600 metros. Outra discrepância entre as nossas observações e o que os livros ensinam é a época de floração, que não se restringe ao período prescrito (Maio-Julho), mas se prolonga, pelo menos, até ao início de Outubro.

09/12/2010

Águas perdidas



Polygonum amphibium L.

     Nomes vulgares: polígono-anfíbio, water knotweed
     Distribuição global: Eurásia e América do Norte; naturalizado noutros continentes
     Distribuição em Portugal: embora raro, parece ocorrer em quase todas as províncias
     Época de floração: Junho a Setembro 
     Data e local das fotos: lagoa A Bodeira, O Grove (Pontevedra, Galiza), Agosto de 2010

08/12/2010

Dia-com-santos


Ophiopogon jaburan Lodd.

Some time ago I wrote a little book of this type and shape on St. Francis of Assisi; and some time after (I know not when or how, as the song says, and certainly not why) I promised to write a book of the same size, or the same smallness on St. Thomas Aquinas. The promise was Franciscan only in its rashness; and the parallel was very far from being Thomistic in its logic. You can make a sketch of St. Francis: you could only make a plan of St. Thomas, like the plan of a labyrinthine city.


(...) St. Francis was a lean and lively little man; thin as a thread and vibrant as a bowstring; and in his motions like an arrow from the bow. All his life was a series of plunges and scampers: darting after the beggar, dashing naked into the woods, tossing himself into the strange ship, hurling himself into the Sultan tent and offering to hurl himself into the fire. In appearance he must have been like a thin brown skeleton autumn leaf dancing eternally before the wind; but in truth it was he that was the wind.


St. Thomas was a huge heavy bull of a man, fat and slow and quiet; very mild and magnanimous but not very sociable; shy, even apart from the humility of holiness; and abstracted, even apart from his occasional and carefully concealed experiences of trance or ecstasy. St. Francis was so fiery and even fidgety that the ecclesiastics, before whom he appeared quite suddenly, thought he was a madman. St. Thomas was so stolid that the scholars, in the schools which he attended regularly, thought he was a dunce. Indeed, he was the sort of schoolboy, not unknown, who would much rather be thought a dunce than have his own dreams invaded, by more active or animated dunces.


This external contrast extends to almost every point in the two personalities. It was the paradox of St. Francis that while he was passionately fond of poems, he was rather distrustful of books. It was the outstanding fact about St. Thomas that he loved books and lived on books. (...) When asked for what he thanked God most, he answered simply, "I have understood every page I ever read." St. Francis was very vivid in his poems and rather vague in his documents; St. Thomas devoted his whole life to documenting whole systems of Pagan and Christian literature; and occasionally wrote a hymn like a man taking a holiday. They saw the same problem from different angles, of simplicity and subtlety; St. Francis thought it would be enough to pour out his heart to the Mohammedans, to persuade them not to worship Mahound. St. Thomas bothered his head with every hair-splitting distinction and deduction, about the Absolute or the Accident, merely to prevent them from misunderstanding Aristotle.


Every saint is a man before he is a saint; and a saint may be made of every sort or kind of man; and most of us will choose between these different types according to our different tastes. But I will confess that, while the romantic glory of St. Francis has lost nothing of its glamour for me, I have in later years grown to feel almost as much affection, or in some aspects even more, for this man who unconsciously inhabited a large heart and a large head, like one inheriting a large house, and exercised there an equally generous if rather more absent-minded hospitality. There are moments when St. Francis, the most unworldly man who ever walked the world, is almost too efficient for me.


(...) The saint is a medicine because he is an antidote. Indeed that is why the saint is often a martyr; he is mistaken for a poison because he is an antidote. He will generally be found restoring the world to sanity by exaggerating whatever the world neglects, which is by no means always the same element in every age. Yet each generation seeks its saint by instinct; and he is not what the people want, but rather what the people need. This is surely the very much mistaken meaning of those words to the first saints, "Ye are the salt of the earth". (...) Christ did not tell his apostles that they were only the excellent people, or the only excellent people, but that they were the exceptional people; the permanently incongruous and incompatible people; and the text about the salt of the earth is really as sharp and shrewd and tart as the taste of salt. It is because they were the exceptional people, that they must not lose their exceptional quality. "If salt lose its savour, wherewith shall it be salted?"(...) If the world grows too worldly, it can be rebuked by the Church; but if the Church grows too worldly, it cannot be adequately rebuked for worldliness by the world.

G.K. Chesterton, St. Thomas Aquinas (1933)

07/12/2010

Erva-dos-elmos


Scutellaria minor Huds. - Alfena, Valongo

O género Scutellaria abriga mais de trezentas espécies de plantas perenes, abundantes em regiões com invernos suaves e humidade elevada. Por isso, é fácil encontrá-las em margens de ribeiros, bordos de turfeiras e prados húmidos. A S. baicalensis Georgi (do lago Baikal, na Sibéria) é a mais famosa pelo seu uso como ansiolítico em medicina tradicional chinesa. Em Portugal só há registo de duas espécies, as que mostraremos de seguida. A designação genérica não se refere às scut, agora ccut; deriva do latim scutella, que originou escudela, e assinala a presença de um apêndice no cálice de cada flor que tem a forma de uma pequena tigela (consegue localizá-lo no topo da foto à direita?). Para que servirá?

A S. minor, a mais pequena do género (não aspira, em geral, a subir além dos 15 cm), exige penumbra e solo ácido, pobre em azoto, sendo portanto companhia frequente de populações de Drosera, Pinguicula, Anagallis tenella e Wahlenbergia hederacea. É herbácea rizomatosa e rastejante, embora as hastes florais erectas pareçam desmentir esse hábito. O caule tem secção quadrada e as folhas, inteiras, opostas e lanceoladas, adoptam morfologia variada conforme a altura a que nascem: as basais são pecioladas, as superiores sésseis e menores, abraçando o caule. As flores cor-de-rosa, com cerca de 1 cm de comprimento, abotoam, todas viradas para o mesmo lado, entre Junho e Setembro. Têm um cálice protegido por pequenas brácteas - e a tal bossa é púrpura - que se fecha para formar o fruto. A corola é um tubo arqueado e bilabiado, sendo o lábio inferior mais largo, recurvo e pintalgado. Espontânea na Europa, restringe-se, na Península Ibérica, ao norte e oeste, ocorrendo em quase todas as províncias portuguesas.


Scutellaria galericulata L. - ria de Aveiro

A S. galericulata é nativa de charcos e juncais europeus e de zonas temperadas da América do Norte, convivendo, por exemplo, com o Equisetum arvense. Distingue-se da S. minor pelas folhas ovais de margens crenadas, pelas hastes - também esparsamente floridas - mais altas (atingem os 40cm) e pelos matizes rubros na ramagem; além disso, é mais penugenta, embora a quantidade de lanugem, como a dos nossos agasalhos, varie com o local e a estação do ano. Na Península ocorre a norte e oeste; em Portugal, só é frequente no norte e litoral centro. As flores azuis também nascem aos pares e nas axilas das folhas, mas são mais tardias que as da S. minor (vimo-las de Julho a Outubro), permitindo todavia a existência de um híbrido entre ambas. Não o conhecemos, havendo já apostas quanto à cor das flores desse cruzamento.