27/12/2020

Variações da cinerária

Pericallis webbii (Sch. Bip.) Bolle


Lá para Maio ou Junho, chegará a vez de as cinerárias-das-floristas efeitarem garridamente os poucos canteiros sazonais que sobram na cidade do Porto. Ainda há espaço para elas no jardim do Carregal, mas não será por muito mais tempo. Dezasseis anos depois de ter sido amputado para a construção de um túnel rodoviário, um novo túnel, desta vez para uma linha de metro, há-de ser pretexto para lhe cortar mais uma fatia. Entretanto, confiando que em 2021 ainda haverá flores, aprendamos algo mais sobre as impropriamente chamadas cinerárias.

O nome científico correcto desse popular malmequer ornamental, criado no século XVIII, em Inglaterra, por cruzamento de duas espécies originárias das Canárias, é Pericallis × hybrida. Antes de serem arrumadas num género próprio, endémico da Macaronésia (Canárias, Madeira e Açores), estas plantas insulares integravam o género Cineraria, hoje em dia restrito à África do Sul. Essa mudança não é recente. O nome Cineraria, que significa acinzentada e decerto se refere à cor da folhagem de algumas espécies, foi cunhado por Lineu em 1766 num dos tomos do seu Species Plantarum. Nenhuma das endémicas das ilhas foi baptizada por Lineu, mas logo em 1788 o francês Charles Louis l'Héritier (1746-1800) deu nome a várias delas — incluindo a Cineraria lanata e a Cineraria cruenta, progenitoras da cinerária-das-floristas — num opúsculo intitulado Sertum Anglicum, dedicado a novas plantas cultivadas no Horto Real de Kew, em Londres. O nome genérico Pericallis, que em grego significa muito bonita (e assenta melhor a estas plantas do que o cinzento evocado pelo nome Cineraria), foi publicado em 1836 pelo escocês David Don (1799–1841), bibliotecário da Linnean Society e professor de botânica no King's College em Londres. O nome teve aceitação geral, e ainda durante o século XIX quase todas as espécies insulares então conhecidas deste grupo de asteráceas foram transferidas para o novo género. Mas dois séculos não bastam para mudar hábitos arreigados, e a cinerária-das-floristas continuará a ser assim chamada ad eternum.

Desde há muito que preferimos plantas silvestres aos híbridos domesticados de comércio hortícola, mas a conversa que com elas mantemos no campo (ou, neste caso, nas ilhas) são mais proveitosas se lhes conhecermos a biografia. Assim, quando demos de caras com a Pericallis lanata (ex-Cineraria lanata) em Tenerife, pudemos falar-lhe dos jardins citadinos onde a sua descendente todos os anos vem passar uma temporada, e perguntar-lhe por que razão, morando ela e a P. cruenta na mesma ilha, não tinham optado por consumar o enlace amoroso em plena natureza, sem a alcovitice dos jardineiros.

Ou somos ainda incapazes de interpretar a linguagem das plantas, ou a P. lanata recusou-se a falar connosco. Apesar da desfeita, não deixamos de reconhecer que ela (fotos em baixo) é a mais mimosa e singular de todas as do seu género: é uma planta miniatural, rasteira, de base lenhosa, com folhagem miúda semelhante à da hera, e que adopta um hábito pendente quando cresce em taludes; os seus capítulos florais são solitários, em vez de agrupados em cachos como nas Pericallis mais convencionais (de que é exemplo a P. webbi, acima ilustrada, endémica da Grã-Canária). Endémica de Tenerife, a P. lanata é frequente na metade sul da ilha, quente e ensolarada, mas prefere escarpas sombrias ou o abrigo de arbustos mais xerófilos. A sua floração decorre de Março a Maio.

Pericallis lanata (L`Her.) B. Nord.

22/12/2020

Uvas com espinhos

Berberis vulgaris L.
  
As árvores, por exemplo, toleram bem o tédio:
praticamente nada acontece no reino vegetal de uma floresta,
e não é por essa razão que as exaltações guerreiras
se multiplicam. O homem
— disse o velho — deveria aprender a imitar
o ímpeto lento das árvores
que sem serem vistas e jamais parando, sobem sempre.
Gonçalo M. Tavares, Uma viagem à Índia — Canto VI (Editorial Caminho, 2010)

15/12/2020

Sítios de Interesse Botânico de Portugal Continental

Coordenação: Sociedade Portuguesa de Botânica
Edição: Imprensa Nacional Casa da Moeda
Patrocínio: Câmara Municipal de Lisboa
Data: Novembro de 2020
Este livro (à venda nas lojas da INCM) é o melhor presente de Natal para quem queira conhecer ao vivo, e nos habitats que lhes são próprios, os nossos tesouros botânicos desde o Minho até ao Algarve. Numa edição de grande formato, ilustrada com centenas de fotos, cada um dos 23 capítulos é escrito por quem conhece a fundo os valores naturais dos lugares descritos e tem gosto em partilhar esse conhecimento com o leitor. Como se diz no texto de contracapa, “é a primeira vez, na história da Botânica e da edição em Portugal, que se dá a conhecer uma colectânea de áreas geográficas com valores florísticos excepcionais”.
Eis a lista dos capítulos da obra e respectivos autores:
  1. Afloramentos de carbonatos do Norte de Portugal — Carlos Aguiar & Paulo Alves
  2. Afloramentos ultramáficos do Nordeste de Portugal — Carlos Aguiar & Tiago Monteiro-Henriques
  3. Areias envolventes do estuário do Sado — Carlos Neto, João Paulo Fonseca & José Carlos Costa
  4. Batólito de Arga — Paulo Alves
  5. Bemposta do Douro — Paulo Pereira
  6. Brejos da Marateca — João Farminhão
  7. Cabo Espichel — Paulo Pereira
  8. Encostas de Arruda dos Pisões — Miguel Porto
  9. Eolianitos da costa sudoeste — Manuel João Pinto, Mário Cachão & Helena C. Cotrim
  10. Litoral de Viana, de Areosa a Montedor — Paulo Ventura Araújo
  11. Mata da Margaraça — Jorge Paiva
  12. Morro do Jaspe — José Luís Vitorino
  13. Nordeste leonês: a serra de Montesinho — Carlos Aguiar
  14. Península do Ancão e pinhais do Garrão — André Carapeto
  15. Pesqueiras do rio Minho — Paulo Ventura Araújo
  16. Planalto vicentino — Manuel João Pinto & Helena C. Cotrim
  17. Serra do Cercal — Jorge Capelo
  18. Serra do Gerês e o vale superior do rio Homem — Paulo Ventura Araújo
  19. Serras de Monchique — Jorge Capelo
  20. Serra de Nogueira — Carlos Aguiar
  21. Serras do Porto — Paulo Alves & Estêvão Portela-Pereira
  22. Vale encaixado do Castelo de Paderne — André Carapeto
  23. Zonas húmidas de Covões, Cantanhede — Paulo Ventura Araújo

12/12/2020

Ervilhaca viciosa



Quando queremos fingir que Portugal é como a América, com estradas infinitas que levam a lugares insuspeitados, a solução é abandonar as modernas auto-estradas e enfiar por uma daquelas estradas nacionais que, acumulando curvas sobre curvas, se esforçam sempre por encontrar o caminho mais demorado entre dois pontos. É um truque modesto que substitui a dimensão espacial, em que a exiguidade do país nos obriga a ser pobres, pela dimensão temporal, em que estamos tão bem servidos como o resto da humanidade. Os 226 quilómetros da EN 222 entre a avenida da República, em Vila Nova de Gaia, e os amendoais de Almendra (passe o pleonasmo), em Vila Nova de Foz Côa, convertem-se assim numa rota de evasão para preencher os dias (muitos dias) com o vagar que lhes é devido. É verdade que o troço mais celebrado da estrada, entre a Régua e o Pinhão, não é especialmente curvilíneo, e até encoraja os condutores a lançarem-se em correrias imprudentes. Mas antes e depois, e exceptuando os pontos onde o traçado foi barbaramente "corrigido", a estrada recusa teimosamente alongar-se em rectas.

Nenhuma curva da EN 222 é escusada, nenhum quilómetro é redundante. Talvez por isso nunca lhe tenham suprimido os quatro mil metros a mais que impedem a quilometragem de coincidir com o nome. Entre São João da Pesqueira e Foz Côa, a estrada afasta-se do Douro e desenrola-se num quase planalto entre os 600 e os 700 metros de altitude. A canícula que aflige o vale do Douro nos meses de Verão chega ali atenuada, e os vinhedos que preenchem os socalcos dão lugar a pomares e a manchas esparsas de pinheiros, sobreiros, azinheiras e zimbros. É um bom lugar para orquídeas nos meses de Primavera: a Orchis mascula e a Neotinea maculata chegam a ser abundantes, e com sorte avistamos também a Dactylorhiza sulphurea. Depois de Foz Côa a estrada desce e, ultrapassada a ponte sobre o Côa, reaproxima-se do Douro durante uns breves quilómetros. É não muito longe da ponte, num talude seco rigorosamente virado para sul, que mora, na prestigiosa companhia do feto-de-veludo, a ervilhaca que hoje ocupa o escaparate.

Vicia vicioides (Desf.) Cout.


Vicia, que nada tem a ver com "vício", era já o nome latino destas leguminosas de hábito trepador, em especial da ervilhaca-comum (Vicia sativa). O que há de estranho na Vicia vicioides é o nome informar-nos que se trata de uma Vicia parecida com uma Vicia — caso semelhante é o do Halimium halimifolium, em que ficamos a saber que uma certa planta tem folhas dela própria. Tais disparates não pretendem exprimir a verdade filosófica de que cada coisa é idêntica a si mesma, e de facto ninguém tem culpa deles. Resultam apenas de ajustes taxonómicos e da aplicação das regras da nomenclatura botânica: as plantas em causa começaram por chamar-se Ervum vicioides e Cistus halimifolius; e, quando foram transferidas para géneros mais apropriados, essas regras impuseram que se mantivessem os epítetos específicos.

As ervilhacas, que despontam cedo na Primavera e que, em Portugal continental, são comuns em quase todo o tipo de habitats, não nascem todas iguais. Há algumas que são usadas para forragem, outras que nascem onde nenhum gado lhes põe o dente, umas que são muito vulgares, outras que são absolutas raridades. Na Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental, há quatro espécies de Vicia com estatuto de vulnerável (V. bithynica, V. onobrychioides, V. orobus e V. peregrina), uma regionalmente extinta (V. tetrasperma), uma quase ameaçada (V. narbonensis) e, finalmente, uma com dados insuficientes, precisamente a nossa V. viciodes. Talvez ela seja ainda mais rara do que aquelas que mereceram algum estatuto de protecção, mas pode ser apenas mais esquiva. Certo é que há registos antigos da sua presença em Santiago do Cacém e em Elvas, mas há muito que não é vista nessas paragens e agora só sabemos dela bem mais a norte, em Foz Côa. As bermas de estrada, mais ainda com as limpezas tornadas obrigatórias, não são refúgio seguro para plantas raras, mas felizmente a V. viciodes fez seguro de vida e está presente pelo menos num outro local do vale do Côa, esse muito mais recatado.

A V. viciodes, que se diferencia bem das suas congéneres pela forma e cor das flores (que são minúsculas, com menos de 1 cm de diâmetro) e pelos cálices densamente vilosos, tem uma distribuição global restrita, ainda que repartida por dois continentes: fora da Península Ibérica, onde é mais frequente entre Málaga e Cádiz, só aparece em Marrocos e na Argélia. A sua precária presença no noroeste de Portugal marca, e por grande distância, o limite setentrional da sua distribuição.

06/12/2020

Bálsamo das ilhas

Decerto o leitor já terá notado que algumas plantas surgem aqui com galardões de qualidade que outras não exibem. A etiqueta «espécie endémica» é um deles, como a que identifica queijos e presuntos de regiões demarcadas. Serve essencialmente como um alerta para a originalidade dessa espécie, ou para o carácter localizado das suas populações nativas. Ser endémico de regiões muito restritas é frequentemente sinónimo de raro, ou a precisar de medidas de conservação, mas é também um bom pretexto para comparações com espécies semelhantes de outros lugares, e para o estudo dos eventuais processos evolutivos que geraram as diferenças. Há, porém, uma questão prévia que ainda não resolvemos: como é que se decide que uma espécie é endémica de um dado local?



Claro que se a espécie tiver uma distribuição muito pontual, o mais provável é que tenha o seu berço nesse habitat. Mas se for cosmopolita, ou ocorrer em várias regiões distantes umas das outras, como se sabe em que locais foi cultivada, de que jardins escapou, ou de onde provém? A vasta literatura indica que podemos estar descansados quanto a esse trabalho de arqueologia botânica: há estudos genéticos fiáveis para responder a estas perguntas, muito mais fáceis afinal do que saber de onde surgiu um vírus.

Cedronella canariensis (L.) Webb & Berthel.


No caso do arbusto que vos mostramos hoje, com cerca de um metro e meio de altura, as conclusões sobre a sua origem ainda deixam dúvidas. O género Cedronella é monoespecífico, com uma espécie endémica das Canárias e da Madeira, descrita em 1845 por P. B. Webb e S. Berthelot na revista Histoire Naturelle des Îles Canaries. Não surpreendentemente, Lineu já sabia da sua existência em 1753, mas designou-a então Dracocephalum canariense e este nome foi abandonado a favor do actual. Em 1844, H. C. Watson recebe notícia do botânico amador (e cônsul britânico nos Açores) Thomas Hunt sobre a presença da C. canariensis na ilha de S. Miguel, e divulga a novidade em 1847 no London Journal of Botany. Hunt suspeita que os exemplares de S. Miguel possam ter origem no cultivo, pois das folhas aromáticas da planta prepara-se um chá saboroso, muito apreciado nas Canárias. Há agora também registos da espécie nas ilhas do Faial e de Santa Maria, aparentemente bem adaptada às florestas de Myrica faia e Pittosporum undulatum, e em algumas obras a C. canariensis surge listada como sendo também nativa dos Açores.

Enquanto aguardamos por uma decisão final, notemos que, ao contrário do que é usual na família Lamiaceae, esta «hortelã» tem folhas compostas, com três folíolos de margens serradas num pé longo. No cimo dos talos surgem, no Verão, cachos de flores tubulares rosadas com cerca de 2cm de comprimento. Os exemplares das fotos são de um recanto de floresta laurissilva em Anaga, Tenerife.