Variações da cinerária
Lá para Maio ou Junho, chegará a vez de as cinerárias-das-floristas efeitarem garridamente os poucos canteiros sazonais que sobram na cidade do Porto. Ainda há espaço para elas no jardim do Carregal, mas não será por muito mais tempo. Dezasseis anos depois de ter sido amputado para a construção de um túnel rodoviário, um novo túnel, desta vez para uma linha de metro, há-de ser pretexto para lhe cortar mais uma fatia. Entretanto, confiando que em 2021 ainda haverá flores, aprendamos algo mais sobre as impropriamente chamadas cinerárias.
O nome científico correcto desse popular malmequer ornamental, criado no século XVIII, em Inglaterra, por cruzamento de duas espécies originárias das Canárias, é Pericallis × hybrida. Antes de serem arrumadas num género próprio, endémico da Macaronésia (Canárias, Madeira e Açores), estas plantas insulares integravam o género Cineraria, hoje em dia restrito à África do Sul. Essa mudança não é recente. O nome Cineraria, que significa acinzentada e decerto se refere à cor da folhagem de algumas espécies, foi cunhado por Lineu em 1766 num dos tomos do seu Species Plantarum. Nenhuma das endémicas das ilhas foi baptizada por Lineu, mas logo em 1788 o francês Charles Louis l'Héritier (1746-1800) deu nome a várias delas — incluindo a Cineraria lanata e a Cineraria cruenta, progenitoras da cinerária-das-floristas — num opúsculo intitulado Sertum Anglicum, dedicado a novas plantas cultivadas no Horto Real de Kew, em Londres. O nome genérico Pericallis, que em grego significa muito bonita (e assenta melhor a estas plantas do que o cinzento evocado pelo nome Cineraria), foi publicado em 1836 pelo escocês David Don (1799–1841), bibliotecário da Linnean Society e professor de botânica no King's College em Londres. O nome teve aceitação geral, e ainda durante o século XIX quase todas as espécies insulares então conhecidas deste grupo de asteráceas foram transferidas para o novo género. Mas dois séculos não bastam para mudar hábitos arreigados, e a cinerária-das-floristas continuará a ser assim chamada ad eternum.
Desde há muito que preferimos plantas silvestres aos híbridos domesticados de comércio hortícola, mas a conversa que com elas mantemos no campo (ou, neste caso, nas ilhas) são mais proveitosas se lhes conhecermos a biografia. Assim, quando demos de caras com a Pericallis lanata (ex-Cineraria lanata) em Tenerife, pudemos falar-lhe dos jardins citadinos onde a sua descendente todos os anos vem passar uma temporada, e perguntar-lhe por que razão, morando ela e a P. cruenta na mesma ilha, não tinham optado por consumar o enlace amoroso em plena natureza, sem a alcovitice dos jardineiros.
Ou somos ainda incapazes de interpretar a linguagem das plantas, ou a P. lanata recusou-se a falar connosco. Apesar da desfeita, não deixamos de reconhecer que ela (fotos em baixo) é a mais mimosa e singular de todas as do seu género: é uma planta miniatural, rasteira, de base lenhosa, com folhagem miúda semelhante à da hera, e que adopta um hábito pendente quando cresce em taludes; os seus capítulos florais são solitários, em vez de agrupados em cachos como nas Pericallis mais convencionais (de que é exemplo a P. webbi, acima ilustrada, endémica da Grã-Canária). Endémica de Tenerife, a P. lanata é frequente na metade sul da ilha, quente e ensolarada, mas prefere escarpas sombrias ou o abrigo de arbustos mais xerófilos. A sua floração decorre de Março a Maio.