27/06/2020

Muros de Villaescusa



Villaescusa de las Torres é uma aldeia de 22 habitantes, uma igreja e uma trintena de casas, situada na província de Palência, em Espanha, a três quilómetros da vila de Aguilar de Campoo. O rio Pisuerga, apesar do compasso de espera a que o obriga a albufeira de Aguilar, tem um caudal generoso à passagem pela vila e pela aldeia, criando uma serpenteante fita azul e verde que une a paisagem edificada às amplas extensões de campos cultivados. A uma altitude rondando os 900 metros, onde a neve cai quase todos os anos, não é lugar para refúgio do hipotético crocodilo que terá sido avistado, no início de Junho, uns 150 km a sul, na foz do Pisuerga em Valladolid. Por altura da nossa visita, há dois anos, ninguém suporia que este rio de margens tranquilas pudesse abrigar tão agressiva fauna exótica.

O planalto palentino, que faz a transição entre a monótona planura de Castela e a acidentada cordilheira cantábrica, é rasgado aqui e ali por afloramentos calcários de grandes dimensões. O próprio Pisuerga corre, em certos troços, apertado entre escarpadas paredes de rocha branca. Muros e casas de Villaescusa são feitos da mesma pedra, deixada ao natural ou caiada de branco ou bege. O calcário é a escolha de eleição para muitas plantas, garantindo uma diversidade florística muito superior à que é de regra noutros substratos. E, apesar de não faltarem em redor da aldeia habitats naturais em quantidade e qualidade, não são poucas as plantas que colonizam muros e telhados. Para aquelas que vivem nas bolsas de solo que se acumulam em fissuras de rochas, os muros tradicionais de pedra solta são até um habitat preferencial, por reproduzirem em versão concentrada as condições do habitat natural.



Saxifraga cuneata Willd.


Mais do que a Arenaria e o Alyssum, que só timidamente se aventuram em muros, é a Saxifraga cuneata que entre Maio e Junho enfeita com empenho as três ou quatro ruas de Villaescusa. Como o nome indica (Saxifraga significa partir pedra), estas plantas, de que há umas sessenta espécies só na Península Ibérica, sentem-se em casa em habitats pedregosos, algumas preferindo o calcário e outras o granito ou o xisto. Esta S. cuneata é irrepreensivelmente decorativa tanto nas folhas como na floração exuberante, mas talvez ao vê-la nos acometa uma impressão de déjà-vu. De facto, ela é quase igual à Saxifraga trifurcata, endémica das montanhas do norte de Espanha e também de peferências calcícolas. Não que seja problemático distingui-las: as folhas são claramente diferentes, mais recortadas as da S. trifurcata, que além do mais, ao contrário da S. cuneata, costuma apresentar hastes avermelhadas. Mas há um ar de família indisfarçável, e as duas saxífragas, juntamente com a S. portosanctana, formam uma tríade muito homogénea.

A Saxifraga cuneata vive na metade norte da Península Ibérica, com uma localização adicional em França perto da fronteira com Espanha. É especialmente frequente em Palência nos afloramentos calcários ao longo do curso superior do rio Pisuerga. Este ano o desconfinamento já vem tarde para quem queira admirar-lhe a floração.

20/06/2020

Ensaiões


Aeonium aureum (Hornem.) T. H. M. Mes [= Greenovia aurea (Hornem.) Webb & Berthel.]


It is a law of nature we overlook, that intellectual versatility is the compensation for change, danger and trouble. An animal perfectly in harmony with its environment is a perfect mechanism. Nature never appeals to intelligence until habit and instinct are useless. There is no intelligence where there is no change and no need of change.

H. G. Wells, The Time Machine, 1895


Aeonium spathulatum (Hornem.) Praeger

14/06/2020

Trevo do inferno



Lotus eriophthalmus Webb [= Dorycnium eriophthalmum (Webb) Webb & Berthel.]


Esbarrar na parede é muitas vezes a sina de quem procura explicação para os nomes das plantas. Vejamos o Dorycnium: ensina a Flora Iberica que o nome vem, por via latina, do grego Dorýknion, e terá sido dado na antiguidade a um pequeno arbusto de folhas prateadas a que hoje chamamos Convolvulus cneorum, e também, sem qualquer semelhança ou relação com este, à peçonhenta figueira-do-inferno (Datura stramonium). Estes dois exemplos bastam para comprovar que o termo em si é desprovido de significado, podendo ajustar-se, como um pronto-a-vestir versátil, a qualquer planta que careça de nome. O francês Tournefort (1656–1708), antecessor de Lineu, chamou Dorycnium a um género de plantas leguminosas, e o inglês Philip Miller (1691-1771), outro dos pioneiros da moderna taxonomia, acolheu a sugestão, umas décadas mais tarde, no seu The Gardeners Dictionary. Curiosamente, o nome foi também usado por Lineu, mas como epíteto específico: Lotus dorycnium foi como ele chamou ao Dorycnium pentaphyllum. De facto, muitas das espécies posteriormente conhecidas como Dorycnium (incluindo as três que são espontâneas em Portugal) foram por Lineu incluídas no género Lotus.

Os Lotus costumam ser herbáceas mais ou menos rasteiras, enquanto que os Dorycnium atingem porte arbustivo e têm geralmente caules lenhosos. Mas a flora da Madeira e das Canárias ensina-nos que bastam uns poucos milénios de evolução para que se dê o salto entre o pequeno e o grande, e entre o herbáceo e o lenhoso. Se ignorarmos o tamanho e atendermos à morfologia das folhas e das flores, a diferença entre Dorycnium e Lotus não é muito convincente. Pior ainda: a variação dentro do género Dorycnium é de tal ordem que certas espécies assemelham-se mais a alguns Lotus do que às suas supostas congéneres.

Chegados ao século XXI, os estudos moleculares vieram dar razão a Lineu, com vários artigos a sustentar que o género Dorycnium deveria ser absorvido pelo género Lotus. A maioria das espécies transferidas foi integrar uma mesma secção do género Lotus, apropriadamente chamada Dorycnium, mas entre as que ficaram noutras secções estão as três que são endémicas das ilhas Canárias. Isso significa que essas espécies (incluindo a das fotos) estão evolutivamente mais próximas de alguns Lotus convencionais (como o L. creticus e o L. azoricus) do que das suas ex-congéneres europeias (como o D. pentaphyllum). Assim, mesmo que houvesse razões para manter Dorycnium como género indpendente, as espécies das Canárias teriam que ser arrumadas noutra gaveta.

Os três “Dorycnium” canários são arbustos que podem alcançar os dois metros de altura, todos muito semelhantes, distinguindo-se pela coloração das flores e pela pilosidade (ou ausência dela) nos cálices. O “Dorycniumeriophthalmum, que ocorre em cinco ilhas (El Hierro, La Palma, Grã-Canária, Tenerife e La Gomera), é, ainda que escasso, o mais comum dos três; fotografámo-lo no Barranco do Inferno, em Tenerife. Os outros são Dorycniumspectabile, de flores rosadas, endémico de Tenerife, e Dorycniumbroussonetii, com flores de cor creme como as do D. eriophthalmum mas de cálice hirsuto, que é endémico de Tenerife e da Grã-Canária; ambos estão em perigo de extinção.

07/06/2020

Abertura de fronteiras

Resguardado pelo confinamento, atento apenas às notícias sobre a evolução da pandemia e porventura zangado com a natureza, o leitor talvez não se tenha apercebido de que, no final de Abril, foi descoberta mais uma espécie para a flora portuguesa. A proeza é de António Flor, vigilante da natureza ao serviço do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), que a encontrou durante a prospecção de uma zona menos explorada do Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros (notícia aqui).



Arenaria grandiflora L.


A novidade é do género Arenaria, e esta nova espécie portuguesa é fácil de avistar em fendas de rochas calcárias no norte de Espanha, mas talvez o nosso clima mais cálido não lhe agrade tanto. Estando o país em estado de emergência durante o mês de Abril, obrigado ao teletrabalho e a restrições de circulação de vária ordem, saúda-se que os membros do ICNF não tenham adiado esta iniciativa, decerto sorrindo dos alertas pela presença da notável colónia de morcegos que mora no PNSAC. É que, se essa saída de campo tivesse sido feita apenas agora, com a Primavera a terminar, talvez já não houvesse flores nas plantas avistadas e seria mais problemático identificá-las.

As flores desta espécie, com sépalas glandulosas e pétalas recurvadas, são, como o epíteto indica, especialmente grandes para o género, e as cimeiras de flores podem chegar aos 20 cm de altura. A planta é perene, cespitosa e ocorre nas montanhas do norte de África e do Centro e Sul da Europa. As fotos são da Cantábria e dos muros de Vilaescusa de las Torres, já em Palência; as flores amarelas que surgem de permeio são do Alyssum montanum, outra espécie com preferências calcárias, de que (ainda) não há registo no maciço calcário estremenho. Aqui vai um retrato mais de perto para o caso de alguma vez ser vista deste lado da fronteira.


Alyssum montanum L.