25/03/2019

Globos azuis


Globularia salicina Lam.


Há quem se interrogue sobre a existência da Macaronésia, que seria a região biogeográfica formada pelos arquipélagos dos Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde. Não se trata de dúvidas solipsistas sobre a realidade dessas ilhas, mas sim de saber se, além da circunstância de todos esses arquipélagos se localizarem no Atlântico norte, há ou não afinidades marcantes entre, por exemplo, a vegetação natural dos Açores e a das Canárias. É tentador responder de imediato que não: como poderá uma ilha hiper-húmida e verdejante como as Flores ter algo em comum como uma ilha semi-desértica como Lanzarote? Acontece que mesmo dentro de cada arquipélago o panorama não é uniforme, e a Graciosa, nos Açores, é mais seca e menos arborizada do que as ilhas de La Gomera e La Palma, nas Canárias. Assim, em vez de nos determos em impressões gerais, podemos responder a perguntas concretas como esta: há plantas endémicas comuns aos quatro arquipélagos da Macaronésia? Sim, uma única, o nosso bem conhecido dragoeiro (Dracaena draco). Lista tão curta deveria invalidar sem apelo nem agravo o conceito já de si dúbio de Macaronésia. Contudo, seduz-nos a ideia de que em cada arquipélago a vegetação guarda memória, ainda que ténue, da do arquipélago vizinho. Os fetos da laurissilva madeirense são, em grande parte, os mesmos que encontramos nas florestas açorianas, e há pelo menos quatro fetos quase-endémicos que estão presentes nos Açores, Madeira e Canárias: Woodwardia radicans, Diplazium caudatum, Pteris incompleta e Culcita macrocarpa. O loureiro dominante na Madeira (Laurus novocanariensis) reaparece nas Canárias; e, tendo sido até há poucos anos considerado da mesma espécie, não será muito diferente do loureiro açoriano (Laurus azorica). Nas plantas de floração vistosa as coincidências são em muito menor número: a somar ao dragoeiro temos apenas o Ranunculus cortusifolius, que é conhecido nos Açores como bafo-de-boi e na Madeira como douradinha, e que, sendo endémico dos três arquipélagos, apresenta importantes variações inter-insulares.

A Globularia salicina, cujo nome se pode traduzir por globulária-de-folhas-de-salgueiro, é um dos endemismos partilhados entre a Madeira e as Canárias. Já a tínhamos visto em Maio de 2016 no Porto Santo, refugiada no topo do Pico Branco, e reencontrámo-la em Dezembro do mesmo ano na Madeira, mas em nenhuma dessas ocasiões lhe vimos as flores. O enguiço foi quebrado em Dezembro de 2017, em Tenerife, ilha onde as plantas desobedecem sistematicamente às épocas de floração que alguns autores lhes prescrevem.

As flores deste arbusto, reunidas em capítulos axilares de cerca de 1 cm de diâmetro, são típicas do género Globularia, como o leitor pode confirmar nesta página. Contudo, a globulária-de-folhas-de-salgueiro, além de ser uma planta lenhosa, destaca-se pelo porte erecto e pela envergadura, e é capaz de alcançar 2 metros de altura. As folhas estreitas, de formato elíptico, são glabras e têm de 4 a 8 cm de comprimento. Tanto na Madeira como em Tenerife, é uma planta frequente e às vezes abundante em lugares soalheiros a média altitude, sobretudo nas vertentes viradas a sul.

Camarinhas no Buçaquinho

20/03/2019

Não são cactos

La Graciosa, a norte das Canárias, a menor ilha habitada do arquipélago, é um pequeno deserto com muito vento, assolada por frequentes tempestades de areia e sem fontes de água potável. O acesso a partir de Orzola, em Lanzarote, faz-se em barcos que mal fintam as vagas agitadas do oceano que separa as duas ilhas. São vinte minutos de travessia até à povoação Caleta del Sebo, na costa sudeste da ilha, com casinhas brancas embelezadas com motivos azuis, e cerca de setecentos habitantes que têm acesso a água do mar dessalinizada e sabiamente dispensam as estradas pavimentadas.



Esperavam-nos uma frota de veículos todo-o-terreno e muitas bicicletas, que a maioria dos turistas aluga para percorrer os cerca de 5 km até à bela Playa de las Conchas. Recusámos, para seguir a pé pelo estradão de terra batida, feita de cinzas vulcânicas e areia, ladeado por vegetação de duna secundária à beira-mar. O ambiente era árido mas a temperatura sentia-se cálida, como é usual em Dezembro por estas paragens. Dirigimo-nos à Montanha Bermeja, um dos cinco grandes vulcões da ilha La Graciosa, que a erosão tem vindo a reduzir a um monte de altura modesta (cerca de 150 m). Procurávamos uma planta suculenta, endemismo raro de Lanzarote e Fuerteventura.



A cerca de meia altura da montanha de cor vermelha, exposto ao sol e à maresia, notámos um tapete de talos suculentos, erectos, com cerca de 20 cm, de secção quadrangular e cor esverdeada a tender para o cinzento. A floração estava em curso, e por sorte alguns exemplares já exibiam frutos. São ambos, flores e frutos, de aspecto magnífico a que vale a pena prestar atenção. A corola de tubo curto tem cinco lóbulos castanhos, quase púrpura, a lembrar os do Vincetoxicum nigrum e salpicados de penugem branca; abrigam uma estrutura amarela que parece uma flor dentro da flor maior. Os frutos, formando dois corninhos como é usual na família Apocynacea, confirmam que a Caralluma não é um cacto, apesar de a morfologia desta planta bizarra resultar, com toda a probabilidade, de uma adaptação à secura e ao calor, como acontece às suas congéneres no norte de África e aos cactos nos desertos das Américas.


Caralluma burchardii N. E. Br. var. burchardii


O epíteto específico é dedicado a Oscar Burchard (1863-1949), botânico alemão que viveu em Tenerife e a quem se deve a descrição de inúmeras espécies da flora das Canárias.

09/03/2019

Mostarda das mil folhas


Descurainia millefolia (Jacq.) Webb & Berthel.


Não consta que a planta acima exposta tenha vocação culinária, mas o nome com que a apresentamos desculpa-se porque ela, além de pertencer à mesma família botânica, dá flores amarelas como as verdadeiras mostardas (Sinapis alba ou Brassica nigra). As mil folhas mencionadas em título aparecem também no nome científico, e tanto podem dever-se ao óbvio carácter folharudo da planta como à semelhança dessas mesmas folhas com as da Achillea millefolium, conhecida em Portugal como milefólio ou milfolhada.

O polissilábico nome genérico Descurainia homenageia o francês François Descourain (1658-1740), médico, boticário e naturalista numa época em que essas ocupações se confundiam. Com essa informação percebemos que a pronúncia correcta de Descurainia até para os franceses há-de ser um mistério. Mais importante é saber que na flora europeia o género é representado por uma única espécie, Descurainia sophia, herbácea anual de porte elevado (até 1 m de altura) e distribuição cosmopolita que também ocorreria no nosso país mas não é aqui vista há décadas, e que na América do Norte há pelo menos treze espécies nativas. As Canárias contam com sete espécies de Descurainia, todas endémicas, já não herbáceas anuais mas sim plantas arbustivas de base lenhosa, três delas presentes em Tenerife.

A Descurainia millefolia é frequente em Tenerife em ladeiras secas a altitudes pouco elevadas, entre os 200 e os 1000 metros. Atinge não mais que um metro de altura e as suas folhas são tripinadas, surgindo em tufos nas extremidades dos ramos. As flores amarelas apresentam as quatro pétalas em cruz que são de lei na família das crucíferas. A foto acima mostra umas flores bastante estranhas, pois o normal é que fossem como o leitor pode ver nesta página. Talvez a floração fora de época (em Dezembro quando deveria ser de Março a Maio) tenha levado a planta a inovar no design das pétalas, mas o mais provável é tratar-se de uma anomalia sem cura possível. Nada de inédito: grande parte do comércio hortícola passa por domesticar e reproduzir as aberrações que, uma vez por outra, são produzidas espontaneamente em estirpes de plantas até então normais. Talvez tenhamos desperdiçado um grande negócio ao não colhermos sementes deste anómalo exemplar de Descurainia millefolia.

04/03/2019

Narcisos das Canárias

Os objectos — os belos — são flor sem raiz: caem facilmente. A obra de arte da barbárie tem no terramoto a sua ideologia pura: as tempestades são absolutamente ilegais, grita um juiz, e um vento estranhamente manso no meio da gritaria vira página a página o livro de leis, como se o consultasse.
Gonçalo M. Tavares, Uma viagem à Índia, Caminho, 2010



Pancratium canariense Ker-Gawl.


Da família dos narcisos, esta planta de flores brancas e perfumadas, a que alguns chamam açucenas, tem um parente próximo nas nossas areias à beira-mar. Porém, ao contrário do continental Pancratium maritimum, a espécie endémica das ilhas Canárias não gosta de sol forte, nem de terreno arenoso ou pouco fértil e, em vez de dunas, prefere empoleirar-se em taludes com algum resguardo mas sem humidade excessiva. Assim caprichoso e bem alimentado, não surpreende que apresente umbelas mais vistosas e seja em geral mais alto, chegando aos 80 cm de altura, o que é quase o dobro da altura do narciso-das-areias, que tende a rastejar nas dunas para evitar a agressão dos ventos marítimos. As hastes florais do P. canariense são erectas e num tom verde saudável (ou menos glauco), optando sensatamente por florir no Outono (Outubro-Novembro no hemisfério norte) e por hibernar nos meses mais quentes. Se só tivermos em conta a época de floração, então é plausível que a espécie canariense descenda de plantas do norte de África, pois aí as especies do género Pancratium têm frequentemente um curto período de crescimento e a floração decorre durante a época mais fresca do ano. Os frutos do P. canariense (e também do P. maritimum) são pequenos, ovóides e leves, de casca impermeável e polpa fibrosa; as sementes têm uma testa esponjosa, como cortiça, que as ajuda a flutuar no mar até encontrarem terra firme e promissora.