Terófito escandente
Diz Luis Fernando Verissimo, numa das suas crónicas, que certas palavras são bem mais sugestivas quando não lhes sabemos o significado. Defenestrar, por exemplo, tem misteriosas ressonâncias eróticas antes de aprendermos que significa «atirar alguém pela janela». Nesse caso, embora o erotismo se perca, o mistério só se complica. Mesmo em épocas bárbaras, é de admitir que o acto pacífico de «estar encostado à ombreira da porta» fosse mais comum do que o gesto homicida de «arremessar gente pela janela»; no entanto, só para o segundo é que foi criado um verbo específico.
É de prever que o leitor menos versado no jargão botânico tenha dificuldades em decifrar o título aí em cima. Por uma vez, em lugar de prestar doutos esclarecimentos, colocamo-nos na mesma posição de inocente ignorância. Só pela combinação de sílabas, com aquele escandente a lembrar incêndio ou coisa pior, e o terófito, por via da tarifa, a sugerir taxas e impostos, dá ideia que «terófito escandente» é uma descrição justa do momento actual e, mais ainda, de tudo quanto nos espera em 2013. Nos balanços que daqui a um ano se fizerem, haverá talvez quem escreva, para nosso pesar, que «em 2013 atravessámos o terófito mais escandente de sempre».
Mas, apesar dos percalços da economia, as plantas silvestres irão em 2013 crescer e reproduzir-se com a mesma imperturbável confiança no futuro, e nós continuaremos de olho nelas. Se o orçamento minguado nos restringir o âmbito das viagens, então que o Havaí seja aqui. Qualquer silvado, ribeira poluída ou monte de entulho pode dar que fazer ao botânico amador consciencioso.
Foi num desses lugares desqualificados, em Alfena, que nos surgiu a Vicia dasycarpa, numa exuberância de floração digna dos melhores jardins. Já nos parecera tê-la encontrado no nordeste transmontano, nos prados felizes de Macedo de Cavaleiros, com os seus ramos floridos a disputar às orquídeas a primazia da cor. Dizemos «parecera» porque nisto de ervilhacas (nome habitual para as leguminosas do género Vicia) as certezas são fugidias. A Vicia dasycarpa integra, com a V. villosa, a V. eriocarpa e a V. pseudocracca, um quarteto de espécies de distinção problemática, todas elas trepadeiras anuais de vocação forrageira com hastes de 60 a 70 cm de comprimento e folhas pinadas rematadas por gavinhas. A planta das fotos não exibe a pilosidade característica da V. villosa, e tem demasiadas flores (cerca de 20 por inflorescência) para ser a V. eriocarpa ou a V. pseudocracca. A tabuleta que lhe pusemos, de Vicia dasycarpa, é pois a única que parece assentar-lhe. A Flora Ibérica, além de fornecer os detalhes morfológicos que permitem a identificação, ainda mais nos tranquiliza informando que nem a V. eriocarpa nem a V. pseudocracca ocorrem no Douro Litoral.
À abundância de flores da V. dasycarpa não corresponde igual safra de frutos. Não foi por termos chegado cedo, pois muitas flores tinham já murchado, mas vagens não vimos nenhuma. Segundo a Flora Ibérica, essa avareza é uma das peculiaridades da espécie, o que suscita a dúvida de como ela consegue sobreviver e propagar-se.