21/08/2019

Feto dos lapiás


Gymnocarpium robertianum (Hoffm.) Newman


Talvez os lapiás tenham inspirado a criação da calçada à portuguesa, embora o risco de queda por se meter o pé num buraco seja muito maior no segundo tipo de revestimento. É que nas cidades os olhos esvoaçam pelas fachadas ou pelos outros transeuntes enquanto os pés cumprem distraidamente a sua função locomotora; não esperamos que uma cratera se abra para nos engolir, embora não seja preciso tanto para darmos um trambolhão. Num campo de lapiás, por contraste, os buracos na pedra branca são muitos e estão bem à vista: cada passo tem que ser cuidadosamente planeado e os olhos nunca se podem descolar do chão.

Nos maciços calcários do centro-oeste, entre Condeixa e Torres Novas, são muitos e variados os campos de lapiás. Entre a vegetação fissurícola que coloniza esses espaços contam-se vários fetos: o polipódio (Polypodium cambricum) e a douradinha (Ceterach officinarum), que são abundantes; o avencão (Asplenium trichomanes) e a arruda-dos-muros (Asplenium ruta-muraria), que aparecem com regularidade; o Cheilanthes acrosticha, que é raro; e o avencão-peludo (Asplenium petrarchae), que é raríssimo (embora seja frequente nos calcários do Algarve). Não nos podemos queixar de falta de variedade, ainda que certos fetos calcícolas estejam ausentes do nosso país. Afinal, as grandes cadeias montanhosas peninsulares (cordilheira cantábrica, Pirenéus) são predominantemente calcárias, enquanto que as maiores elevações de Portugal continental são xistosas ou graníticas. Não existindo em Portugal montanhas calcárias, são muitas as espécies peninsulares sem habitat propício no nosso país.

Um dos fetos calcícolas que cá não existe é o Gymnocarpium robertianum, que tem decidida preferência por climas frescos e apresenta uma distribuição circum-boreal, estendendo-se por partes da Ásia, Europa e América do Norte. Na Península Ibérica está quase restrito ao extremo norte (cordilheira cantábrica e Pirenéus), ainda que reapareça, muito escassamente, a sul, na serra de Almijara. Trata-se de uma planta de rizoma rastejante, em que as folhas, de formato triangular e com 15 a 30 cm de altura, brotam espaçadamente em vez de formarem tufos. O nome Gymnocarpium, que se pode traduzir por "frutos despidos", refere-se ao facto de os esporângios não estarem protegidos por indúsios; e o epíteto robertianum deve-se à (pouco óbvia) semelhança das suas folhas com as da erva-de-São-Roberto (Geranium robertianum).

Uma segunda espécie do género, Gymnocarpium dryopteris, está presente na Península Ibérica, também com distribuição sobretudo cantábrica e pirenaica. Os dois fetos são semelhantes no aspecto geral, mas as preferências ecológicas divergentes raras oportunidade lhes dão de se encontrarem na natureza. O G. dryopteris vive em bosques (o epíteto específico pode aliás traduzir-se por "feto dos carvalhais"), ou mais ocasionalmente em rochas sombrias e húmidas, e quase sempre em substrato silicioso. Mesmo que o habitat não deixe dúvidas sobre qual dos dois fetos temos perante nós, há um detalhe morfológico que permite distingui-los sem dificuldade: o G. robertianum, ao contrário do seu congénere, tem o pecíolo e a ráquis das folhas densamente cobertos por pêlos glandulosos (veja-se a 2.ª foto acima).

Obrigados a conviver com a neve, os dois Gymnocarpium abdicam de ter folhas durante mais de metade do ano. Elas só começam a surgir a meio da Primavera, e é no Verão, com a maturação dos esporos, que atingem o seu pleno desenvolvimento, para logo depois secarem e desaparecerem.

14/08/2019

Feto lunar


Botrychium lunaria (L.) Sw.


Atingindo uns 10 a 15 cm de altura máxima, e surgindo de modo efémero entre Junho e Agosto, a parte aérea do feto-lunar (Botrychium lunaria) é formada por duas partes: uma folha (ou fronde) dividida em segmentos com o feitio de lua crescente ou minguante; e uma haste fértil em que os esporângios, pela forma e disposição, lembram um cacho de uvas (é esse precisamente o significado de botrys, palavra grega de que deriva o nome Botrychium). A mesma arquitectura básica, mas com um desenho muito diferente, é partilhada pelas línguas-de-cobra — os fetos do género Ophioglossum, de que são três as espécies espontâneas em Portugal. À afinidade morfológica junta-se a semelhança dos estilos de vida: tanto os Ophioglossum como os Botrychium são plantas vivazes que passam a maior parte da sua vida reduzidas a rizomas subterrâneos; se as condições forem desfavoráveis, podem mesmo em certos anos não emitir folhas, sobrevivendo com a ajuda dos fungos simbióticos que se lhes agarram às raízes. Os dois géneros são os únicos representantes na Europa da família Ophioglassaceae, que representa uma etapa primitiva na evolução dos pteridófitos.

Pela sua pequenez, coloração inconspícua e carácter fugidio, o feto-lunar, tal como as línguas-de-cobra, é de difícil detecção. Está contudo muito disseminado pelas zonas frias ou temperadas dos dois hemisférios, estendendo-se por toda a Europa e Ásia, pelos extremos norte e sul das Américas, pelo norte de África (montanha do Atlas), e pela Austrália e Nova Zelândia. Portugal é o único país do continente europeu onde ele nunca foi visto; em jeito de compensação, sabe-se que ocorre no Pico (no topo da montanha) e na Madeira (Encumeada). Na Península Ibérica, a julgar pelo mapa de distribuição no portal Anthos, é frequente nos Pirenéus e esporádico ao longo da cordilheira cantábrica.

Foi para remediar essa lacuna no nosso currículo de avistamentos botânicos que em Julho de 2015 rumámos à Cantábria e ao Pico Três Mares. Embora o intento saísse frustrado, a viagem foi inesquecível por muitos motivos, tanto que a repetimos em 2017 e 2018. O feto-lunar nada quis connosco, talvez porque, a 2100 metros de altitude, só em Agosto ele se dê a ver. A terceira visita, no final de Maio de 2018, tinha tudo para correr pior do que as anteriores: uma Primavera invulgarmente fria atrasara o degelo e os cumes cobertos de neve permaneciam inacessíveis. Nesse dia, acossados por chuva persistente, a nossa exploração botânica resumiu-se a umas curtas paragens em bermas de estrada. Quando revisitávamos o local onde no ano anterior víramos duas espécies de Gentiana, eis que nos surge o feto-lunar num tapete de musgos e entre tufos de Potentilla montana (espécie abundante na Cantábria). Um encontro inteiramente inesperado, a 15 km de distância e 1000 metros abaixo do local onde anteriormente o procuráramos, e para mais em zona calcária, sabendo nós que o Pico Três Mares é formado por quartzitos.

De modo que aqui está ele exibido como troféu: um único exemplar em condições de ser fotografado entre muitos outros que apenas despontavam. Gostaríamos de o ter encontrado na Madeira ou no Pico, mas quem não tem cão caça com gato e as grandes escaladas de montanha já não são para nós.

07/08/2019

Palmeiras de Famara


Phoenix canariensis Chabaud
Uma vivenda à beira-mar com relvado e palmeira, mais o BMW estacionado na garagem: era esse o sonho possível de prosperidade nos anos pobretes mas alegretes das últimas décadas do século XX. Que se mantém hoje desse sonho? O BMW e a beira-mar, com certeza, mas as vivendas (ou moradias) foram substituídas por prédios de apartamentos, as palmeiras morreram todas, e os jardins (ou espaços verdes) são agora simples rectângulos de terra ressequida ao serviço dos cães e dos seus donos. Talvez não haja muito a lamentar nessa mudança. As defuntas palmeiras eram um símbolo do estatuto conquistado, e a sua presença em relvados nus e rigorosamente aparados sublinhava um enfático desinteresse por plantas e pela jardinagem em geral. Mas a nostalgia está para além da racionalidade: Miramar e Francelos sem palmeiras representam uma amputação da memória.

Por palmeira entendemos, claro está, a palmeira-das-Canárias: embora haja centenas de espécies de palmeira, várias delas cultivadas entre nós, a preponderância da Phoenix canariensis é (ou era) avassaladora. Com a chegada, na última década, do escaravelho-da-palmeira (Rhynchophorus ferrugineus), houve uma mortandade quase total nos jardins privados, esforçando-se algumas câmaras municipais por salvar os exemplares mais emblemáticos em espaços públicos.

Daqui a uns anos, com o gradual desaparecimento das palmeiras citadinas, talvez só as possamos ver se viajarmos para fora do país. E o lugar de eleição para esse reencontro é, obviamente, o arquipélago das Canárias. Afinal a palmeira é endémica dessas ilhas — e, além de a vermos plantada por todo o lado, também a encontramos em estado silvestre, formando pequenos bosques em encostas e ravinas. O temível escaravelho também chegou às Canárias, sem ter porém causado estragos muito visíveis, talvez por o combate ter sido eficaz, ou por o clima seco das ilhas não ser favorável à propagação do bicharoco.

Uma característica simpática das palmeiras-das-Canárias é que sempre acolheram de palmas abertas as pequenas herbáceas que sobre elas se quiseram instalar: fetos, dentes-de-leão, malmequeres, gramíneas... Todo um jardim clandestino em miniatura que era muitas vezes o único rasgo de cor nos manicurados jardins suburbanos. E essa índole hospitaleira da Phoenix canariensis já lhe vem de origem: nas Canárias não há palmeira, mesmo cultivada, que não tenha inquilinos. Um exemplo entre muitos é dado pelas palmeiras que ladeiam a Ermida de Las Nieves, no maciço de Famara, em Lanzarote (foto acima). Entre as plantas nelas empoleiradas detectámos quatro endémicas das Canárias, três delas exclusivas de Lanzarote e Fuerteventura.



Reichardia famarae Bramwell & G. Kunkel ex Gallego & Talavera


Os dois dentes-de-leão que se hospedaram nas palmeiras de Famara são endémicos das duas ilhas mais orientais do arquipélago, e ambos aparecem com abundância na crista rochosa de Famara, não raro em paredes perfeitamente verticais. A verticalidade do habitat disponível no espique de uma palmeira não é pois coisa que lhes cause vertigens. Talvez a maior visiblidade das plantas nas palmeiras as obrigue ao esforço suplementar de uma floração precoce, já que quando as vimos, no final de Dezembro, eram elas as únicas entre as suas iguais que estavam em flor.

A Reichardia famarae (em cima) é uma planta rasteira, glabra, com hastes florais de não mais que 15 cm de altura, quase sempre rematadas por um único capítulo, e com folhas glaucas, algo carnudas, de margens dentadas, dispostas em rosetas basais densas.

A Crepis canariensis (em baixo) tem folhas maiores, verdes, formando uma roseta mais difusa, e as suas hastes, além de pubescentes, são mais empertigadas (até 50 cm de altura) e várias vezes ramificadas.

No canto inferior esquerdo de duas das fotos espreita uma terceira endémica destas mesmas ilhas: trata-se de uma planta suculenta, o Aichryson tortuosum, que foi avaro em mostrar-nos as flores (fora de época, é verdade) e por isso apresentamos só de raspão. Bonito como todos os seus congéneres, singulariza-se por ser uma planta perene e formar tapetes rastejantes (os Aichryson mais costumeiros são plantas anuais, com hastes erectas bem individualizadas).


Crepis canariensis (Sch. Bip.) Babc.

01/08/2019

Taginaste vermelho

O género Echium, de flores geralmente arroxeadas, parece ter uma relação muito proveitosa com os polinizadores, a quem decerto recompensa generosamente. Com a sua ajuda, é garantidamente um género cosmopolita. A segunda virtude que lhe notamos é uma tendência para se tornar mais bonito nos casos em que se apostaria que a colonização do novo habitat estaria condenada ao fracasso. São exemplo disso as espécies de Echium endémicas do arquipélago da Madeira; e a que lhe mostramos hoje, endemismo da ilha de Tenerife, fácil de avistar florido nas ravinas das Cañadas do Teide durante os meses de Maio e Junho.



Echium wildpretii Pearson ex Hook. f.


Há registo de uma segunda subespécie (E. wildpretii subsp. trichosiphon) na ilha de La Palma, mas aí destaca-se outro Echium gigante, o E. pininana, que ainda não conhecemos — ignorância que abrange mais uma dezena de endemismos canarienses só neste género.

O E. wildpretii é um arbusto mas não se ramifica. Habita lugares muito quentes no Verão, com solo árido de origem vulcânica, mas tolera as temperaturas de Inverno, às vezes negativas. A sua resistência, porém, termina aí: é uma planta bienal, produzindo uma roseta basal densa de folhas longas e penugentas no primeiro ano de vida, seguindo-se-lhe as flores no início de Maio do segundo ano, e morrendo no final desse período de floração. Em Dezembro, estas hastes com cerca de 3 metros de altura já terão disseminado as sementes e, secas, parecerão caudas de raposa gigante a ondular. O epíteto específico homenageia o botânico suíço Hermann Josef Wildpret (1834-1908).

Havia bastantes abelhas a bebericar néctar nestes exemplares das fotos, só ultrapassadas em número pelos visitantes ansiosos por se fotografarem com o telemóvel ao lado destas torres magníficas de flores cor-de-salmão e estames salientes, entremeadas por inusitadas brácteas em forma de língua.