07/08/2019

Palmeiras de Famara


Phoenix canariensis Chabaud
Uma vivenda à beira-mar com relvado e palmeira, mais o BMW estacionado na garagem: era esse o sonho possível de prosperidade nos anos pobretes mas alegretes das últimas décadas do século XX. Que se mantém hoje desse sonho? O BMW e a beira-mar, com certeza, mas as vivendas (ou moradias) foram substituídas por prédios de apartamentos, as palmeiras morreram todas, e os jardins (ou espaços verdes) são agora simples rectângulos de terra ressequida ao serviço dos cães e dos seus donos. Talvez não haja muito a lamentar nessa mudança. As defuntas palmeiras eram um símbolo do estatuto conquistado, e a sua presença em relvados nus e rigorosamente aparados sublinhava um enfático desinteresse por plantas e pela jardinagem em geral. Mas a nostalgia está para além da racionalidade: Miramar e Francelos sem palmeiras representam uma amputação da memória.

Por palmeira entendemos, claro está, a palmeira-das-Canárias: embora haja centenas de espécies de palmeira, várias delas cultivadas entre nós, a preponderância da Phoenix canariensis é (ou era) avassaladora. Com a chegada, na última década, do escaravelho-da-palmeira (Rhynchophorus ferrugineus), houve uma mortandade quase total nos jardins privados, esforçando-se algumas câmaras municipais por salvar os exemplares mais emblemáticos em espaços públicos.

Daqui a uns anos, com o gradual desaparecimento das palmeiras citadinas, talvez só as possamos ver se viajarmos para fora do país. E o lugar de eleição para esse reencontro é, obviamente, o arquipélago das Canárias. Afinal a palmeira é endémica dessas ilhas — e, além de a vermos plantada por todo o lado, também a encontramos em estado silvestre, formando pequenos bosques em encostas e ravinas. O temível escaravelho também chegou às Canárias, sem ter porém causado estragos muito visíveis, talvez por o combate ter sido eficaz, ou por o clima seco das ilhas não ser favorável à propagação do bicharoco.

Uma característica simpática das palmeiras-das-Canárias é que sempre acolheram de palmas abertas as pequenas herbáceas que sobre elas se quiseram instalar: fetos, dentes-de-leão, malmequeres, gramíneas... Todo um jardim clandestino em miniatura que era muitas vezes o único rasgo de cor nos manicurados jardins suburbanos. E essa índole hospitaleira da Phoenix canariensis já lhe vem de origem: nas Canárias não há palmeira, mesmo cultivada, que não tenha inquilinos. Um exemplo entre muitos é dado pelas palmeiras que ladeiam a Ermida de Las Nieves, no maciço de Famara, em Lanzarote (foto acima). Entre as plantas nelas empoleiradas detectámos quatro endémicas das Canárias, três delas exclusivas de Lanzarote e Fuerteventura.



Reichardia famarae Bramwell & G. Kunkel ex Gallego & Talavera


Os dois dentes-de-leão que se hospedaram nas palmeiras de Famara são endémicos das duas ilhas mais orientais do arquipélago, e ambos aparecem com abundância na crista rochosa de Famara, não raro em paredes perfeitamente verticais. A verticalidade do habitat disponível no espique de uma palmeira não é pois coisa que lhes cause vertigens. Talvez a maior visiblidade das plantas nas palmeiras as obrigue ao esforço suplementar de uma floração precoce, já que quando as vimos, no final de Dezembro, eram elas as únicas entre as suas iguais que estavam em flor.

A Reichardia famarae (em cima) é uma planta rasteira, glabra, com hastes florais de não mais que 15 cm de altura, quase sempre rematadas por um único capítulo, e com folhas glaucas, algo carnudas, de margens dentadas, dispostas em rosetas basais densas.

A Crepis canariensis (em baixo) tem folhas maiores, verdes, formando uma roseta mais difusa, e as suas hastes, além de pubescentes, são mais empertigadas (até 50 cm de altura) e várias vezes ramificadas.

No canto inferior esquerdo de duas das fotos espreita uma terceira endémica destas mesmas ilhas: trata-se de uma planta suculenta, o Aichryson tortuosum, que foi avaro em mostrar-nos as flores (fora de época, é verdade) e por isso apresentamos só de raspão. Bonito como todos os seus congéneres, singulariza-se por ser uma planta perene e formar tapetes rastejantes (os Aichryson mais costumeiros são plantas anuais, com hastes erectas bem individualizadas).


Crepis canariensis (Sch. Bip.) Babc.

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