25/09/2019

Selvagem procura-se


Misopates salvagense D. A. Sutton
O Misopates salvagense não é candidato a nenhuma medalha de mérito da Royal Horticultural Society. As suas minúsculas e escassas flores brancas, timidamente raiadas de rosa, são de pobre efeito ornamental, embora denunciem o parentesco com as populares bocas-de-lobo (Antirrhinum majus). O que há de mais notável nesta planta é que ela não esteja extinta e seja possível observá-la com alguma facilidade. Pela nossa parte, encontrámo-la em Dezembro de 2018 na costa sudoeste de Lanzarote, nos arredores de El Golfo, em clareiras de matos dominados por tabaibas (Euphorbia balsamifera).

A primeira descrição da planta surgiu apenas em 1988, incluída em A revision of the tribe Antirrhineae, monografia de 575 páginas sobre bocas-de-lobo e plantas afins da autoria de David A. Sutton. Para descrever a nova espécie, o autor baseou-se num único exemplar de herbário, sem flores nem folhas, que havia sido colhido na Selvagem Grande 120 anos antes, algures entre 1860 e 1867. A planta não mais voltou a ser vista nas Selvagens e não foram localizados outros exemplares em herbários. Os frutos e sementes desse exemplar único distinguiam-no claramente dos Misopates conhecidos, mas a descrição da nova espécie foi necessariamente lacunar, e era grande a probabilidade de ela já se encontrar extinta.

Até que, já neste século, a planta foi reencontrada não já nas Selvagens mas nas Canárias, nas ilhas de El Hierro, Fuerteventura e Lanzarote. No artigo onde se dá a notícia [Apuntes florísticos y taxonómicos para la flora de las Islas Canarias, Acta Botánica Malacitana 34 (2009): 242-251 — PDF], os autores reportam que o Misopates salvagense é frequente em zonas costeiras áridas de Lanzarote e Fuerteventura, e que antes ele terá sido confundido, nessas ilhas, com o Misopates orontium. Este último está presente em todas as ilhas do arquipelago canário, mas tem flores maiores, em geral cor-de-rosa, e é densamente glanduloso na inflorescência.

De endemismo nado-morto das ilhas Selvagens, o Misopates salvagense passou assim a ser um elemento relativamente banal da flora nativa canária. Talvez o exemplar colhido no século XIX nas Selvagens represente um episódio fortuito: sementes arrastadas pelo vento desde as Canárias que germinaram mas não lograram estabelecer uma população permanente. Ou talvez a Selvagem Grande seja mesmo o berço da espécie, e ela tenha tido a sorte de colonizar as Canárias antes de se extinguir na sua ilha de origem por acção dos herbívoros (cabras, coelhos e murganhos) lá introduzidos. É muito improvável que o mistério alguma vez seja deslindado.

17/09/2019

Amarelo revisitado

Acreditando que a natureza não é uma entidade caprichosa, nem age com um propósito, notamos, porém, que por vezes parece que faz rascunhos como nós, que edita linhas e corrige gralhas. Os taxonomistas afadigam-se então para entenderem as diferenças entre as várias plantas, nem sempre com sucesso, como quem examina com raios x os rabiscos preliminares de um pintor escondidos sob uma obra de arte famosa. Senão vejamos.

Nos sapais da ria Formosa e nas dunas adjacentes viceja entre marés uma planta notável, que aprecia o habitat misto de água doce e salgada, e parasita várias espécies da família Chenopodiaceae. Trata-se da Cistanche phelypaea, que floresce no fim da Primavera e se alimenta através das garras com que se crava nas raízes lenhosas das plantas vizinhas. Quando em flor, não há dúvidas de que espécie se trata. Não? E então a Cistanche lutea?



Cistanche lutea (Desf.) Hoffmanns. & Link


A controvérsia em torno da variabilidade da C. phelypaea e o seu vínculo com a C. lutea é assunto de vários artigos científicos, que ora discutem a pertinência da descrição de duas espécies face às diferenças morfológicas e de ecologia, ora se esmeram a justificar o simples desdobramento em subespécies porque a diferenciação genética não é conclusiva. Uma é rascunho da outra, digamos. Para quem as distingue, a C. phelypaea é endémica da costa atlântica da Península Ibérica, enquanto a C. lutea ocorre no sudeste da Península Ibérica e no noroeste de África. As fotos são de Lanzarote, e há também registo da C. lutea em Fuerteventura e nas Selvagens. Por falar no norte de África, em podendo, não deixe de ver este outro rascunho do género Cistanche, igualmente inspirado.

11/09/2019

Histórias da Lista Vermelha: Isatis platyloba



Vistos do alto de São João das Arribas, em Miranda do Douro, os barcos de cruzeiro deslizando no rio parecem brinquedos de criança, e as grandes aves de rapina que os sobrevoam reduzem-se ao tamanho de passarinhos. Nestas escarpas onde cair parece tão fácil e apetecível (não está o rio lá em baixo para nos abraçar?) vive uma planta crucífera de flores amarelas, capaz de atingir um metro de altura, que durante mais de um século se julgou exclusiva deste lugar. Trata-se da Isatis platyloba, assim baptizada em 1821 pelo alemão Ernst Gottlieb von Steudel mas já mencionada por Brotero na sua Flora Lusitanica em 1804 sob o nome de Isatis lusitanica. Sabe-se hoje que a planta existe nas duas margens do Douro pelo menos entre São João das Arribas e a barragem de Picote, e que também ocorre nos rios Duratón e Riaza, afluentes espanhóis do Douro. Talvez a preferência por estes precipícios rochosos escavados pelas águas limite a expansão da planta, afastando-a daqueles troços fluviais onde as margens são menos vertiginosas.

Sem nome vernáculo conhecido, não será inapropriado chamar-lhe pastel-português — não pastel de comer, mas de colorir. A Isatis platyloba, de distribuição tão restrita, é à primeira vista quase indistinguível do verdadeiro pastel, Isatis tinctoria, que se distribui por vastas zonas da Ásia, Europa e norte de África, e foi, até ao primeiro quartel do século XX, um dos mais importantes fornecedores de matéria-prima para a indústria tintureira. Curiosamente, o pigmento que se extrai das folhas verdes e ainda tenras do pastel é azul. Quando o caule se desenvolve e a planta floresce já as folhas pouca cor têm para dar. A afinidade entre as duas espécies de Isatis leva a suspeitar que o pastel-português também tenha vocação tintureira, e há notícias desse antigo uso nas aldeias de Miranda do Douro. Não é contudo improvável que os aldeões usassem o genuíno pastel, pois é sabido (como aqui documentou Francisco Clamote) que as duas plantas coexistem no planalto mirandês, e que a Isatis tinctoria, ao contrário da I. platyloba, tende a ocupar sítios acessíveis como bermas de estrada e terrenos baldios.



Isatis platyloba Link ex Steud.



Além de terem ecologias distintas, as duas Isatis divergem nos seus ciclos de vida: a Isatis platyloba é anual, enquanto que a I. tinctoria é bienal, formando uma roseta de folhas no primeiro ano e florescendo no seu segundo e último ano. Morfologicamente, há pequenas diferenças nas folhas, mas são pouco fiáveis. É quando produzem frutos que a distinção entre as duas espécies se torna óbvia: os da I. platyloba são orbiculares (foto aqui), contrastando com os frutos oblongos da I. tinctoria (foto aqui).

Na Lista Vermelha da Flora de Portugal, a Isatis platyloba está classificada como vulnerável. O contingente da espécie em Portugal, que talvez fique aquém dos mil indivíduos (número sujeito às oscilações próprias de uma planta anual), tem-se mantido aparentemente estável, sem que grandes estragos ou alterações afectassem o habitat em anos recentes. Tê-los-á havido, e sérios, com a construção das grandes barragens do Douro internacional na segunda metade do século passado. Contudo, a limpeza obsessiva da vegetação espontânea tem vindo a debilitar a população da planta em São João das Arribas, que é a mais numerosa que se conhece. Se essa tendência não for refreada, ou se não tiver em conta o ciclo de vida da planta, ela corre o risco de desaparecer do local.

04/09/2019

Lavanda-do-mar

Quando numa loja de flores se compra um ramo delas, é em geral ao talento de quem nos atende que confiamos a elaboração do adorno. Cabe-lhe, como artista embriagado pelo ar perfumado que rescende dos inúmeros molhos de flores à venda, escolher as flores, as cores e o arranjo que melhor se lhes adequa, enquanto o cliente lhe controla a euforia artística, não vá o ramo custar uma fortuna. No fim, acede a que o cliente escolha o papel que cobre os talos e o laço que os prende. Duas perguntas costumam, porém, anteceder este ritual: É para uma senhora? O que celebram? Deste modo, descarta a possibilidade de um evento fúnebre, o que exigiria contenção na conversa e no colorido da grinalda, e habilita-se a usar um código de etiqueta florística que atenta ao género e à idade do destinatário das flores. O que decretam tais normas? É difícil saber exactamente, mas parece que cada flor tem um significado preciso, e que os erros nesta matéria são imperdoáveis. Não se trata de evitar flores cor-de-rosa para os cavalheiros, dálias de cor púrpura para senhoras de meia idade ou violetas para crianças. A sociedade, fonte perene de embaraços, melindres e preconceitos, parece ter-nos imposto um padrão que nos permite atestar se um ramo é ou não ajustado a quem o recebe. Tudo se resolveria se se acabasse com essa venda de flores, presente perfeitamente substituível por um passeio num jardim.



Limonium puberulum (Webb) Kuntze




Neste âmbito, as flores do género Limonium não comportam riscos. São comuns em floristas porque, mesmo depois de secas, mantêm a rigidez do arco da inflorescência e a cor das sépalas; e ainda porque as flores são invulgares: parecem duas flores empilhadas, uma branca (de pétalas) e outra roxa (de sépalas) com textura de papel. Mas, na verdade, são flores acompanhantes: nos bouquets criam uma moldura, ou um ponto de apoio, para outras flores mais nobres (leia-se mais caras), sejam elas orquídeas, tulipas, íris ou narcisos. A arte, se questionada, decerto aduzirá boas razões para esta diferenciação entre as flores-operárias e as flores-fidalgas.

As lavandas-do-mar apreciam falésias e a beira-mar, e há mais de uma centena de espécies, muitas das quais são endémicas das ilhas Canárias. (A das fotos é um endemismo das ilhas de Lanzarote e Fuerteventura, fotografada na Playa de la Cantería, em Órzola.) Pouco diferem pelas flores, ou sequer nas folhas basais com formato de colher e frequentemente salpicadas de pintas brancas, restos de sal que ali se acumulam. Contudo, muitas delas são apomíticas, e o que nos parecem ser diferenças irrelevantes são de facto mudanças genéticas que estabilizaram, criando micro-espécies que só os especialistas conseguem destrinçar. A manterem-se as condições ideais que temos vindo a assegurar ao planeta para as alterações drásticas no clima, muitas desaparecerão das zonas costeiras; nas floristas não haverá substituto para elas.