11/09/2019

Histórias da Lista Vermelha: Isatis platyloba



Vistos do alto de São João das Arribas, em Miranda do Douro, os barcos de cruzeiro deslizando no rio parecem brinquedos de criança, e as grandes aves de rapina que os sobrevoam reduzem-se ao tamanho de passarinhos. Nestas escarpas onde cair parece tão fácil e apetecível (não está o rio lá em baixo para nos abraçar?) vive uma planta crucífera de flores amarelas, capaz de atingir um metro de altura, que durante mais de um século se julgou exclusiva deste lugar. Trata-se da Isatis platyloba, assim baptizada em 1821 pelo alemão Ernst Gottlieb von Steudel mas já mencionada por Brotero na sua Flora Lusitanica em 1804 sob o nome de Isatis lusitanica. Sabe-se hoje que a planta existe nas duas margens do Douro pelo menos entre São João das Arribas e a barragem de Picote, e que também ocorre nos rios Duratón e Riaza, afluentes espanhóis do Douro. Talvez a preferência por estes precipícios rochosos escavados pelas águas limite a expansão da planta, afastando-a daqueles troços fluviais onde as margens são menos vertiginosas.

Sem nome vernáculo conhecido, não será inapropriado chamar-lhe pastel-português — não pastel de comer, mas de colorir. A Isatis platyloba, de distribuição tão restrita, é à primeira vista quase indistinguível do verdadeiro pastel, Isatis tinctoria, que se distribui por vastas zonas da Ásia, Europa e norte de África, e foi, até ao primeiro quartel do século XX, um dos mais importantes fornecedores de matéria-prima para a indústria tintureira. Curiosamente, o pigmento que se extrai das folhas verdes e ainda tenras do pastel é azul. Quando o caule se desenvolve e a planta floresce já as folhas pouca cor têm para dar. A afinidade entre as duas espécies de Isatis leva a suspeitar que o pastel-português também tenha vocação tintureira, e há notícias desse antigo uso nas aldeias de Miranda do Douro. Não é contudo improvável que os aldeões usassem o genuíno pastel, pois é sabido (como aqui documentou Francisco Clamote) que as duas plantas coexistem no planalto mirandês, e que a Isatis tinctoria, ao contrário da I. platyloba, tende a ocupar sítios acessíveis como bermas de estrada e terrenos baldios.



Isatis platyloba Link ex Steud.



Além de terem ecologias distintas, as duas Isatis divergem nos seus ciclos de vida: a Isatis platyloba é anual, enquanto que a I. tinctoria é bienal, formando uma roseta de folhas no primeiro ano e florescendo no seu segundo e último ano. Morfologicamente, há pequenas diferenças nas folhas, mas são pouco fiáveis. É quando produzem frutos que a distinção entre as duas espécies se torna óbvia: os da I. platyloba são orbiculares (foto aqui), contrastando com os frutos oblongos da I. tinctoria (foto aqui).

Na Lista Vermelha da Flora de Portugal, a Isatis platyloba está classificada como vulnerável. O contingente da espécie em Portugal, que talvez fique aquém dos mil indivíduos (número sujeito às oscilações próprias de uma planta anual), tem-se mantido aparentemente estável, sem que grandes estragos ou alterações afectassem o habitat em anos recentes. Tê-los-á havido, e sérios, com a construção das grandes barragens do Douro internacional na segunda metade do século passado. Contudo, a limpeza obsessiva da vegetação espontânea tem vindo a debilitar a população da planta em São João das Arribas, que é a mais numerosa que se conhece. Se essa tendência não for refreada, ou se não tiver em conta o ciclo de vida da planta, ela corre o risco de desaparecer do local.

1 comentário :

Francisco Clamote disse...

Obrigado, Paulo, pela referêcnia ao meu "post". Abraço.