30/09/2024

Marroios & balotas



No sul de Espanha, entre Granada e Almeria, a serra Nevada é uma muralha rochosa de cem quilómetros de comprimento que corre paralelamente à costa; a sua altitude é quase sempre superior aos 2000 metros, e em certos trechos supera largamente os 3000. Seja pelo norte ou pelo sul, as estradas são forçadas a contornar o obstáculo formidável, e há apenas uma que faz a ligação entre as duas vertentes da serra. A 2040 de altitude, o Puerto de La Ragua, onde outrora funcionou uma estação de esqui tornada inviável pela escassez da neve, é o ponto mais elevado dessa travessia rodoviária. Os pinheiros em plantação cerrada dos dois lados da estrada não prometem descobertas botânicas entusiasmantes, mas há também, pelas encostas acima, vastos descampados por onde meandram riachos que, mais abaixo, engrossam até se converterem em ribeiras. Entre o degelo e a estiagem, são três ou quatro meses para as herbáceas cumprirem o seu ciclo anual. Chegámos tarde, num mês de Julho de calor sufocante, e pouco vimos que valha a pena ser contado. Havia roseiras silvestres que formavam maciços vistosos, com um profusão de flores variando entre o branco e o rosa carregado; e, junto a uma das linhas de água, vegetava uma lamiácea de folhas lanudas e arredondadas que exibia ainda algumas flores frescas.

Marrubium supinum L.


Ainda que a floração fosse arroxeada em vez de branca, o formato das folhas e a disposição das flores em verticilos largamente espaçados lembravam irresistivelmente o marroio-branco (Marrubium vulgare), planta todo-o-terreno presente de norte a sul do nosso país mas mais frequente no interior. A planta da serra Nevada pertence ao mesmo género botânico e é por isso apropriado que também lhe chamemos marroio. O seu nome científico, Marrubium supinum, sugere um hábito rasteiro, o que é em parte desmentido pelas hastes florais erectas. Tal como a sua congénere, tem apetências ruderais e não exige habitats de primeira qualidade, podendo medrar em terrenos baldios e bermas de caminhos. Essa adaptabilidade não lhe garante, contudo, uma distribuição vasta: no nosso continente, fica-se pela metade oriental da Península Ibérica, e a sua presença em Marrocos, Algéria e Tunísia, únicos países africanos onde está assinalada, é bastante residual.



Não foi esse o único marroio que vimos nessa semana em que excursionámos por terras andaluzas. Num dos dias deslocámo-nos à costa e, já em Málaga, visitámos a praia de las Alberquillas — que só vimos ao longe, antes de o calor nos fazer demandar paragens mais frescas. A canícula parecia incompatível com qualquer forma de vida, e todas as plantas estavam reduzidas a palha seca. Todas? Não exactamente. Havia, sob o sol assassino, um marroio (ou o que nos pareceu ser tal coisa) com folhas verdes e viçosas que floria despreocupadamente. A inflorescência mais compacta já levantava suspeitas, e verificámos depois que não se tratava de um Marrubium, mas sim de uma Ballota. O seu nome completo, Ballota hirsuta, permite-nos deduzir ser ela parente próxima do marroio-negro, que é como se chama em Portugal a Ballota nigra.

Ballota hirsuta Benth.


Como todos os marroios, a Ballota hirsuta é uma planta ruderal que prefere lugares nitrificados, e as perturbações ocasionadas pela presença humana só a favorecem. A sua área de distribuição também se restringe à Península Ibérica e ao norte de Áfrcia — mas, ao contrário do Marrubium supinum, a Ballota hirsuta ocorre no nosso país, sobretudo no sul, e não é rara nos países magrebinos.

23/09/2024

Genciana fina



Hoje mostramo-vos uma herbácea anual, com não mais do que um palmo de altura, que é quase só flor. Frequente nas regiões mais frias do hemisfério norte, ocorre na serra Nevada em prados de montanha ou rochedos húmidos acima dos 2000 metros de altityde. Da roseta de folhas basais, diminutas mas pecioladas, nascem talos erectos no topo de cada um dos quais surge, entre Julho e Agosto, uma só flor. E o que se nota desde logo é quão longe ficam as flores da base de folhas, como se quisessem evitar a humidade do solo depois do degelo, e esticassem o pescoço para não passarem despercebidas.

Comastoma tenellum (Rottb.) Toyok.


E, abrindo bem os olhos porque há que focar algo muito pequenino rodeado por vegetação rasteira densa, o que vemos? Flores de construção simples, tubulares e muito bem agasalhadas por um casaco de sépalas longas e resistentes. O cálice da flor está recortado no topo em 4 lóbulos azulados, quase roxos, que fazem lembrar as gencianas mas são desiguais (2 deles ligeiramente maiores). E, na base dos lóbulos, a tapar a garganta do cálice, uma cúpula de fímbrias brancas, abaixo da qual se situam protegidos os estames e o estigma da flor. É como um tapete à porta de casa, onde os polinizadores têm de limpar bem as patinhas antes de entrar para aceder aos 8 nectários disponíveis. É a essa crina que o nome do género alude, e que revemos em espécies alpinas ou pirenaicas que habitam habitats turfosos. O epíteto tenella indica que as plantas desta espécie são de pequeno porte.

Talvez noutras eras, quando a serra da Estrela tinha neve todo o ano e em abundância, esta planta também ocorresse por cá. Agora, a sua distribuição ibérica reduz-se aos Pirenéus e à serra Nevada. Ocorre noutras paragens frias da Europa, América do Norte, Ásia e Marrocos.

12/09/2024

O veneno não mora aqui



As umbelíferas são plantas fáceis de reconhecer pelas umbelas floridas, que lembram guarda-chuvas, e pelas folhas miudamente recortadas, de formato mais ou menos triangular. Represen­tantes típicos da família, muitos usados em culinária, são a salsa, a cenoura e o funcho. Para que não se pense que todas estas plantas existem para nos gratificar o apetite, cumpre deixar o aviso de que muitas delas (e até algumas que se parecem superficialmente com a cenoura, como o embude e a cicuta) são mortalmente venenosas, pelo que a colheita de umbelíferas silvestres para fins culinários é totalmente desaconselhada.

Hoje falamos de duas umbelíferas que destoam vincadamente da família a que pertencem. Uma delas, Bupleurum fruticosum, recebeu em castelhano o nome de matabueyes, sugerindo que a sua ingestão é perigosa para o gado bovino. Ora essa acusação é de todo infundada, pois as plantas do género Bupleurum nada têm de tóxico e de algumas delas até se confeccionam medicamentos — que, como sucede com todos os fármacos, devem ser usados na dose indicada e tomando nota das contra-indicações. Contudo, não são conhecidos casos em que o consumo directo da planta (não das essências dela extraídas) provoque efeitos graves.

Bupleurum fruticosum L.


Não é na forma e disposição das flores, geralmente amarelas, que os bupleuros divergem das restantes umbelíferas. As folhas é que são novidade: em vez de divididas, são simples, lanceoladas e de margens inteiras; quase sempre apresentam uma venação longitudinal bem visível, mas por vezes, como no caso do B. fruticosum, a venação é reticulada. O porte destas plantas é muito variável: tanto o B. fruticosum (em cima) como o B. spinosum (em baixo) são arbustos, o primeiro de altura respeitável (pode superar os dois metros) e o segundo rasteiro (não excede os 40 cm), mas a maioria das espécies do populoso género Bupleurum — que abrange umas 150 espécies, todas menos uma no hemisfério norte — são herbáceas anuais ou perenes.

Bupleurum spinosum Gouan
[= Bupleurum fruticescens subsp. spinosum (Gouan) O. Bolòs & Vigo]


Entre os bupleuros há endemismos de distribuição restrita, como este português que há mais de vinte anos aguarda reconhecimento taxonómico. Em contraste, o Bupleurum fruticosum tem uma distribuição ampla dos dois lados da bacia mediterrânica, de Portugal até à Grécia, e de Marrocos até à Tunísia. Apesar de por duas ocasiões o termos visto no Algarve, onde é bastante comum, só em Granada o pudemos observar em flor. Menos viajado do que o seu congénere, o B. spinosum, que também fotografámos em Granada, consegue ainda assim fazer a ponte entre dois continentes, ocorrendo no sul de Espanha e no norte de África. É uma planta arbustiva que com a idade ganha o aspecto de uma almofada espinhosa, perfeitamente adaptada às condições áridas do seu habitat. Os espinhos, por sinal bem rígidos e aguçados, são na verdade as hastes secas das umbelas após a frutificação.

05/09/2024

Sem medo das alturas



No instante em que se inventou a fotografia, não foram só a ciência, a tecnologia, a arte e a nossa memória que se agigantaram. O mundo deixou de ser sempre a cores. E decerto muitos começaram a sonhar a preto e branco. Durante cerca de quatro décadas, a fotografia guardou apenas contrastes em imagens sem profundidade, incapaz de memorizar a realidade na íntegra. Nas fotos mais antigas, as famílias amontoadas como migalhas de pão parecem-nos irreais de tão imóveis e tão sem volume. Apesar do entusiasmo da novidade, continuava a ser mais fácil descrever um rouxinol por palavras, ou fantasiado numa tela de pintura, do que registá-lo em voo com uma máquina fotográfica. Tudo mudou anos depois, e o cinema deu a estocada final no descrédito. E, no entanto, a tendência de hoje é outra. A realidade tem agora pouco interesse, e o acto outrora breve de fotografar ganhou uma nova função: aprimorar o mundo, mentindo se necessário, evitando-se a mera cópia do que existe ou acontece. A edição da fotografia, por vezes eliminando as cores, com fins artísticos ou para aperfeiçoar a verdade, tem criado um mundo alternativo que, no entender de muitos, substitui com vantagem o real. E ainda há quem estranhe que o universo esteja em expansão.

Viola crassiuscula Bory


Se às fotos destas violetas endémicas da serra Nevada fossem retiradas as cores, não saberíamos de que espécie se tratava. Poderiam ser exemplares de Viola langeana, que ocorre nas serras da Estrela, Malcata e Homem de Pedra, e cujas flores são integralmente amarelas; ou da Viola diversifolia, dos Pirenéus, com flores inteiramente roxas. As flores da V. crassiuscula, em numerosos talos, combinam o violeta, o rosa e o branco, e cada planta não excede os 15 cm de altura. Vive adaptada a solos soltos acima dos 2000 metros de altitude, em fissuras de rochas e cascalheiras, com a raiz bem enterrada para que um deslize de pedras ou uma ventania forte não a condenem. É uma espécie rara, listada no livro vermelho da flora da Andaluzia.