28/11/2021

Hibisco dos arrozais

O rio Pranto mostra, perto da foz, a placidez de um resignado. É um dos últimos afluentes do Mondego e, em Alqueidão, junto à Figueira da Foz, entrega a água com vagar, recriando um pântano gigantesco que por vezes engorda até verter. É um pasto de mosquitos multi-variantes, mas também um refúgio de garças, corvos e flamingos. Desse pachorrento caudal aproveitam os extensos arrozais do Baixo Mondego, num amanhar intensivo da terra que lamentavelmente não dispensa o uso de químicos nem o de máquinas ruidosas para guiar a água. Mas é precisamente na proximidade destes arrozais, em bermas de caminhos margosos ou nas margens de canaviais que juraríamos impróprios para quem aprecia estar vivo, que está a única população portuguesa conhecida deste fantástico arbusto.

Hibiscus-palustris L.


Quando vimos estas plantas no início de Junho, não estavam ainda em flor e a folhagem tinha um aspecto desolador. As folhas, esbranquiçadas na face inferior e com um hábito pendente, pareciam prontas a desabar. Mas um mês depois, como se salvas, exibiam lindas flores solitárias, de enormes pétalas rosadas com uma mancha branca (ou púrpura) na base e um duplo cálice a protegê-las.

Criticamente em perigo, diz o Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal. Não nos surpreende: apesar de ser uma espécie perene, o núcleo conhecido tem cerca de 150 indivíduos e está em declínio, ameaçado pela expansão do regadio, pela limpeza descuidada da vegetação e pela degradação do habitat.

Na Península Ibérica, o Hibiscus palustris tem uma distribuição restrita à Cantábria e à população portuguesa na Beira Litoral. Talvez esta se extinga se avançar o projeto de regadio no vale do Pranto. Que os decisores, frequentemente sem memória útil, não digam mais tarde que não foram avisados deste risco.

22/11/2021

O outro gerânio da Madeira

Geranium palmatum Cav.


O gerânio-da-Madeira (Geranium maderense), talvez o mais famoso embaixador da flora madeirense, conquistou lugar de honra em jardins de clima temperado por todo o mundo com a sua impressionante floração rosada em forma de cogumelo gigante. Contudo, mesmo na Madeira é muito mais fácil encontrá-lo em jardins do que em habitat natural. Se ainda existirem na Madeira populações espontâneas deste gerânio, elas estão bem escondidas, e os exemplares que ocasionalmente se vêem em levadas ou junto a casas florestais são em geral cultivados. Assim, e porque o nosso código de conduta nos impõe cingirmo-nos àquilo que a natureza de sua livre vontade nos dá a contemplar, viramo-nos para outro gerânio de porte respeitável, também ele endémico da Madeira.

Não podemos dizer, sem arriscar a credibilidade, que o Geranium palmatum é tão vistoso e atraente como o G. maderense, mas a verdade é que no mundo inteiro não há outro gerânio que não saísse desfavorecido da comparação. E o G. palmatum, além de ser digno representante do seu género, ainda nos oferece pistas sobre a linhagem de gerânios que colonizou a Madeira e as Canárias. Os gerânios endémicos dessas ilhas (três espécies na Madeira e uma nas Canárias) têm entre si óbvios laços de parentesco, parecendo descender, todos eles, do Geranium robertianum (erva-de-São-Roberto) ou do G. purpureum, duas herbáces anuais comuns na Europa (e em Portugal) que se julga serem também nativas das ilhas atlânticas. Assim, tendo aportado às ilhas por sementes vindas do continente, as plantas colonizadoras terão aí evoluído para novas espécies, mas sem deixarem de manter redutos populacionais com características morfológicas e genéticas idênticas às das plantas pioneiras. Uma hipótese que mais facilmente explica este comportamento dúplice é que tenha havido hibridação entre o G. robertianum (ou o G. purpureum) e outras espécies entretanto já desaparecidas das ilhas.

Ainda que exiba folhagem com recorte semelhante à do G. robertianum, o G. palmatum é uma planta de muito maior envergadura que chega a formar um curto caule lenhoso, e tanto as suas folhas como as suas flores são consideravelmente maiores do que as do seu congénere. A coloração das flores é também distinta: as do G. palmatum são uniformemente rosadas (ou púrpuras), enquanto que no G. robertianum a base das pétalas é esbranquiçada (foto aqui). A mesma diferença pode ser apontada entre o G. palmatum e o G. reuteri, endémico das canárias, distinguindo-se ainda este último pelos estames muito mais compridos e salientes. De resto, os dois gerânios insulares assemelham-se a tal ponto, tanto no aspecto geral como nas preferências ecológicas (ambos buscam lugares umbrosos e frescos), que fazem figura de um par de gémeos. O que, atendendo à provável progenitura de ambos, não anda longe da verdade.

16/11/2021

Uma planta modelo

As plantas anuais germinam, crescem e florescem num período curto, que pode ser mais breve do que um ano (em alguns casos não excede um mês). Quase toda a energia da planta é dirigida para a floração e a frutificação; uma vez atingido o objectivo de produzir sementes, a planta morre. Esta estratégia de sobrevivência depende demasiado da sorte mas, dada a enorme quantidade de sementes produzidas anualmente, há realmente chance de algumas gerarem novas plantas.

As plantas perenes levam uma vida mais calma, e apostam numa estratégia distinta. Nos primeiros anos, muitas delas apenas produzem folhagem e raízes, investindo todo o esforço numa estrutura robusta, lenhosa ou muito ramificada. Se conseguirem sobreviver aos primeiros invernos e estiagens, então aprenderam o essencial para arriscarem florir e frutificar. E, depois de uma juventude completamente improdutiva, podem durar nesta rotina centenas de anos.

Em 2008, descobriu-se que a activação de apenas dois genes na espécie Arabidospis thaliana pode convertê-la a um regime perene, e vice-versa. Mas que vantagens há numa vida breve? Por que razão nem sempre é melhor ser-se árvore?

Arabis alpina subsp. caucasica (Willd.) Briq.


A resposta parece estar na maior ou menor capacidade de uma espécie se adaptar a um habitat. A vida num clima mais quente e seco, num solo mais pobre, ou num ambiente tropical tempestuoso, pode beneficiar as espécies que florescem mais cedo, antes das demais espécies, reduzindo a competição por nutrientes ou luz -- ainda que, com esse estilo apressado, a sua esperança de vida se reduza drasticamente. E há sempre trunfos na manga: algumas plantas anuais mantêm activa a auto-fertilização, como um último recurso, outras escondem no solo um banco de sementes com várias idades, com que mitigam o impacto de flutuações no clima ou de mudanças aleatórias no habitat.



Vem isto a propósito da espécie perene Arabis alpina, que há uns milhões de anos colonizou as montanhas mais elevadas da Madeira. É comum vê-la nas paredes das levadas, em ravinas e nos picos mais altos. Dela descendem inúmeras outras espécies europeias de Arabis, com uma distribuição muito ampla, várias delas anuais. São espécies vencedoras, com tempos de germinação curtos, ciclos de vida muito flexíveis, respostas bem sucedidas à selecção natural e uma diversidade genética invulgar. Mas cuja existência dependeu do potencial de sobrevivência da espécie ancestral perene. Por este andar, é bastante provável que a evolução das plantas as leve a um controlo perfeito da longevidade.

08/11/2021

Cárice na sombra

Carex lowei Bech.


Descrita originalmente em 1939 sob o nome de Carex lowei, e dedicada ao reverendo Richard Thomas Lowe, que viveu de 1802 a 1874 e foi autor de A Manual Flora of Madeira, esta cárice endémica é moradora dos vales húmidos e sombrios do norte da ilha da Madeira. É uma planta rizomatosa de porte considerável, com hastes que podem atingir metro e meio de altura, e que exibe folhas longas, finas e planas, com margens ásperas. No aspecto geral, e mesmo na ecologia, faz lembrar a endémica açoriana Carex hochstetterana: são os mesmos tufos de folhagem fina e lustrosa, as mesmas hastes arqueadas enfeitadas por espigas mais ou menos pendentes. Além disso, em ambas as espécies, os frutos (ou, mais propriamente, as utrículas) são protegidos por brácteas (ou glumas) rematadas por longas aristas (veja a 4.º foto acima e também esta), o que permite distingui-las da C. pendula ou de espécies aparentadas como a recém-descrita C. leviosa.

O que singulariza a C. lowei face a quase todas as suas congéneres, e torna a sua identificação inequívoca no período em que está em flor (de Maio a Junho), é que as espigas femininas parecem muitas vezes agrupar-se aos molhos, dando à planta um aspecto desgrenhado. Avisam os sempre picuinhas botânicos que não se trata de espigas agrupadas, mas sim de uma só espiga várias vezes ramificada. Mas, indepentemente de dominarmos ou não os detalhes, ou de usarmos ou não a terminologia correcta, é sempre bom travarmos conhecimento com uma planta de um género taxonomicamente problemático que se deixa reconhecer à primeira vista.

Quem se inicia na observação de plantas tem tendência a ignorar gramíneas, ciperáceas, juncos, fetos — todas aquelas herbáceas que, não se destacando pela floração vistosa (ou, no caso dos fetos, nem sequer tendo flores), se perdem num verde anonimato. Mas são essas plantas que ainda não aprendemos a nomear que dão vida e encanto a muitos bosques.

02/11/2021

Mocano à janela

O envelhecimento das árvores também se nota, através de rugas e sinais deselegantes na casca do tronco, que se torna mais áspero com o acumular de anos. Mas, ao contrário das pessoas, as plantas mantêm a funcionar até à morte, aparentemente sem defeito, os mecanismos que geram folhas e ramos novos, flores e frutos. Decerto precisam dessa tarefa toda a vida pois, sem mudarem nunca de endereço ou de paisagem, como iriam gastar o tempo e combater o tédio? Em algumas espécies as diferenças de idade são mais notórias, e é fácil saber se estamos perante um exemplar jovem ou um idoso, ainda que ambos tenham 8 metros de altura. É o caso da árvore madeirense que vos mostramos hoje.

Visnea mocanera L. f.


A Visnea mocanera é um endemismo da ilha da Madeira e do arquipélago das Canárias (com excepção de Lanzarote) e a única espécie conhecida do género Visnea. O epíteto específico alude ao nome vernáculo, mocan, dado a estas plantas de folhagem perene pelos aborígenes das Canárias. As árvores desta espécie podem chegar aos 10 metros de altura, mas os ramos são curtos e as folhas pequeninas, por isso a copa é densa. Nela se escondem, entre Dezembro e Março, grupos de flores muito perfumadas, de cinco pétalas brancas a formar uma delicada campanula com inúmeros estames ao centro.



Na nossa visita à levada da Ribeira da Janela, na ilha da Madeira, em Maio de 2020, os mocanos que vimos estavam para lá da floração, mas ainda sem o ciclo anual terminado. Resultado: conseguimos ver frutos, carnudos e verdes, do tamanho de avelãs, mas poucos da cor púrpura que os torna apetecíveis quando amadurecem. Outrora foram usados para fazer compotas e licores, mas a espécie tem vindo a rarear. Faltam-lhe talvez locais soalheiros e quentes, de solos férteis, entre os 300 e os 600 metros de altitude. Ou então já sobra pouco espaço para ela na laurissilva do barbusano, o habitat que ela prefere. Ou isso, ou a culpa é do uso desenfreado da madeira desta árvore, firme e avermelhada.

Diz-se que, nas Canárias, é a ilha de El Hierro (que ainda não conhecemos) a que contém exemplares de V. mocanera mais desenvolvidos e em populações mais estáveis. Para estimarmos a antiguidade dos exemplares, bastará notar que o ritidoma é verde e liso quando jovem, tornando-se progressivamente cinzento, castanho e bastante rugoso. Em Tenerife, deveríamos ter estado atentos a estas plantas nas caminhadas no centro da ilha, em Güimar, ou no norte, em Anaga. Teremos de lá voltar, olha que bom, para corrigirmos esta desatenção.