29/11/2020

Perpétuas de outras praias

Schizogyne sericea (L. f.) DC.


Em Tenerife, ao longo de toda a linha costeira, em zonas de mato baixo ou em substratos arenosos, este pequeno arbusto prateado, profusamente florido nos meses da Primavera, cumpre o papel que nas praias do continente europeu está reservado à perpétua-das-areias (Helichrysum italicum). É a mesma folhagem linear, a mesma ramificação desordenada, os mesmos capítulos desprovidos de «pétalas» — e é, sobretudo, o mesmo amarelo dourado alegrando habitats semi-desérticos. De facto, os dois arbustos pertencem à mesma divisão (ou tribo) da família das asteráceas, tribo essa que, grosso modo, se caracteriza pelos capítulos só com flores tubulares formando corimbos mais ou menos densos. Fazem também parte da tribo arbustos como o alecrim-dos-paredes (Phagnalon saxatile) e ervas ruderais como o Pseudognaphalium luteo-album. São plantas generosas em néctar que devem o seu sucesso na natureza às honestas relações de proveito mútuo que estabelecem com os polinizadores.

O francês Alexandre Henri Gabriel de Cassini (1781-1832), que em 1823 cunhou o nome Schizogyne (que significa fêmea fendida, numa alusão à morfologia das flores femininas), admitiu que o novo género era muito próximo de Phagnalum; mas, quebrando a tradição, preferiu não usar um anagrama dessa palavra para o baptizar. Já então um quase anagrama, Gnaphalium, era o nome válido de um género botânico, e dentro da mesma tribo são vários os anagramas de Filago (por exemplo, Logfia e Ifloga) que também designam géneros botânicos.

A Schizogyne sericea, espontânea em todas as ilhas das Canárias à excepção de Fuerteventura, e conhecida no arquipélago como «salado blanco», só não é um endemismo canarino por ter sido assinalada nas Selvagens. Se não fosse esse percalço geo-político, o próprio género Schizogyne seria exclusivo das Canárias, já que a única outra espécie conhecida é endémica da Grã-Canária. Trata-se da Schizogyne glaberrima (fotos em baixo), que pelo tom verde da folhagem se distingue facilmente da sua congénere, e que no vernáculo local é apropriadamente chamada «salado verde». 

Misteriosamente, Cassini, no mesmo artigo em que inagura o nome Schizogyne, descreve uma espécie, S. obtusifolia, que seria hoje a terceira do género se a sua existência fosse reconhecida. Cassini baseia a descrição em material guardado no herbário de um Sr. Mérat, e a incerteza quanto ao local de colheita chega a ser cómica: pode ter sido nas ilhas Maurícias ou em Tenerife, ou ainda no Cabo da Boa Esperança. Contudo, a planta que Cassini descreve corresponde, com quase perfeita exactidão, àquela que hoje conhecemos como Schizogyne sericea, nome que lhe foi atribuído apenas em 1836 por Augustin de Candolle (1778–1841). Não sabemos por que razão Candolle, que obviamente conhecia o trabalho de Cassini, achou necessário o novo nome, mas é improvável que Cassini tenha descrito uma planta cujo paradeiro actual seja desconhecido. Certos portais de referência insistem porém que Schizogyne obtusifolia é um nome válido, e sustentam mesmo que a planta em questão é endémica de Tenerife (exemplos: 1, 2). Contudo, esse nome não é incluído em nenhuma listagem actual da flora do arquipélago (exemplos: 3, 4).

Schizogyne glaberrima DC.

23/11/2020

Medronheiro canarino

A maioria das plantas da nossa flora inicia agora um merecido descanso, no que são acompanhadas por várias espécies da fauna. Muitas árvores ficam carecas de folhas, com o tronco envelhecido de musgos e um ar desolado, mas sabemos que adormecem para rejuvenescer. Há, porém, excepções. A floração do medronheiro (Arbutus unedo), arbusto de folhagem perene, está agora a começar: as flores branco-rosadas e perfumadas, agrupadas em cachos, dividem o espaço na copa com frutos da época anterior, corados de frio mas ajudando a atrair os poucos polinizadores que ainda por aí andam nesta época do ano. Os medronhos, com textura e cor de morangos maduros mas quase sem sabor, ficam bem em compotas, bolos, rebuçados e aguardente. E esse uso tem beneficiado a planta, por interessar a fruticultores e destilarias a expansão da sua área de distribuição, que outrora se restringiu à região mediterrânica e Europa ocidental.

Arbutus canariensis Veill. ex Duhamel


Uma vez que uma parte significativa da flora das Canárias descende da flora mediterrânica, não foi surpresa descobrir que há uma espécie de medronheiro endémica das ilhas dos grupos central e oriental deste arquipélago (Tenerife, La Gomera, Grã-Canária, El Hierro e La Palma). Tal como o parente continental, o Arbutus canariensis tem um tronco avermelhado, que pode atingir os 7 metros de altura e se descasca com a idade. As folhas são maiores e mais escuras do que as do medronheiro continental, mas têm também aspecto coriáceo e margens serradas. As flores exibem um leve tom cor-de-rosa e pedicelos com inúmeros pêlos glândulares, detalhe que ajuda a distinguir a espécie canariense do A. unedo.

O A. canariensis está ameaçado pela perda de habitat, sobretudo nas ilhas em que as reservas de água estão mais perto do fim e os fogos de Verão se têm intensificado — regimes extremos de seca e calor a que o medronheiro canariense não parece adaptar-se. Esta espécie aprecia taludes da floresta laurissilva com bastante humidade mas solo enxuto, e onde a concorrência com outros arbustos e árvores é menor. Os registos mais recentes indicam que as populações silvestres em La Palma e La Gomera estão perto da extinção. As fotos são de exemplares do barranco de Valsendero na Grã-Canaria.

15/11/2020

Bunho triangular



Em 2020, nos meses agora longínquos em que gozámos de uma breve liberdade condicional, visitámos duas vezes o rio Minho. Da primeira vez, ainda em Maio, não vimos caiaques a deslizar nas águas e só nos cruzámos com duas pessoas. Do lado de lá havia quem nos acenasse numa espécie de desespero por não poder chegar mais perto. Quando voltámos, em meados de Julho, já portugueses e galegos se misturavam na ânsia de esquecer os meses em que foram impedidos de atravessar o rio. Caminhar junto ao rio, ou testar a medo a temperatura da água com os pés descalços, dificilmente poderiam ser, dessa vez, experiências solitárias. Ainda assim, são muitos os quilómetros de rio entre Valença, Monção e Melgaço, e pouca gente se dá ao incómodo de fazer centenas de metros a pé para chegar aos pontos mais esconsos. E é nesses lugares de relativo sossego que se refugiam as raridades botânicas.

Schoenoplectus triqueter (L.) Palla


A raridade que hoje mostramos dá pelo nome de Schoenoplectus triqueter; chamamos-lhe bunho-triangular por causa do caule esquinado com três faces bem marcadas. Trata-se de uma ciperácea robusta, com hastes de mais de um metro de altura, que aprecia substratos lodosos em remansos de rios ou estuários, e que, em Portugal, tendo desaparecido do litoral centro, apenas se encontra algures no Guadiana e, em muito maior número, no troço do rio Minho entre Caminha e Monção. Só há poucos anos se soube da sua presença no extremo noroeste de Portugal; mas, tirando essa boa novidade, a perda ou degradação do habitat da planta têm sido generalizados, tanto assim que ela foi incluída na Lista Vermelha da Flora de Portugal com o estatuto de vulnerável. Da mesma lista constam três outras plantas ameaçadas que também têm no rio Minho as suas principais (ou únicas) populações nacionais: a cravina-das-pesqueiras. o golfão-pequeno e a espiga-de-água.

A vida em Portugal não está fácil para os bunhos: duas outras espécies de Schoenoplectus, S. erectus e S. litoralis, figuram em destaque na Lista Vermelha. Ambas estão em perigo crítico de extinção, e é provável que a primeira, com última morada conhecida no baixo Mondego, já não exista em território nacional. Dentro do género, o S. lacustris, que se distingue por ter caules mais altos e de secção perfeitamente circular, é o único que tem dado mostras de pujança, com muitos núcleos populacionais tanto no litoral como no interior do país.

08/11/2020

Árvore dos fusos

Quando falamos de bosques, imaginamo-los umbrosos e acolhedores no Verão, abertos e húmidos no Inverno, abrigando carvalhos, azinheiras, sobreiros, padreiros, zelhas, pilriteiros, medronheiros, cerejeiras e uma profusão de arbustos que se regalam com os solos frescos e férteis destes locais. Com sorte, há ainda regatos ou penas de água que alimentam avelaneiras, amieiros, salgueiros, freixos e herbáceas excepcionais, além de taludes de rochas raras e fetos ainda mais invulgares. São habitats fáceis de destruir, porém, e restam poucos no nosso país. No nordeste transmontano sobram alguns dos melhores carvalhais do país, e é lá que mora a única população portuguesa conhecida de Euonymus europaeus.

Parque Natural Collados del Asón, Cantábria
Euonymus europaeus L.


Esta é uma planta de ampla distribuição na Europa e na Ásia, frequente nas montanhas do norte da Península Ibérica. É resistente ao frio e ao calor intensos, mas não parece apreciar o clima mais ameno do oeste da Península. Foi na Cantábria que vimos inúmeros exemplares desta árvore de copa magnífica, a bordejar margens de rios caudalosos, em solo calcário e bem drenado. As flores têm pedicelo longo, mas são minúsculas e branco-esverdeadas; o seu fraco efeito decorativo é compensado pelos frutos muito vistosos, da cor do coral, de fazer inveja a qualquer cerejeira.

Os vários nomes por que é conhecida, aludindo precisamente aos frutos (barrete-de-padre, bonetero), indicam que já foi mais abundante. Muitos recordam que a madeira, densa, homogénea, perfumada e de cor amarelo-claro, foi outrora a das rocas e fusos (até das histórias de fadas), e dos arcos de violino. Mas em Portugal a fuseira está ameaçada, sobretudo porque os poucos indivíduos remanescentes podem ser vítimas do corte indiscriminado de carvalhais ou do desbaste da vegetação de sebes. Consta da Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental com o estatuto de vulnerável, o que não é boa notícia.

01/11/2020

Caldeira da Lomba

Lagoa da Lomba, ilha das Flores, com Potamogeton polygonifolius Pourr.
Na ilha das Flores há uma correspondência quase perfeita entre caldeiras vulcânicas e lagoas: cada caldeira tem a sua lagoa, e cada lagoa está na sua caldeira. A regra só é quebrada pela teimosia da caldeira Seca, que para fazer jus ao nome decidiu prescindir da lagoa a que tinha direito. Nos outros pares caldeira/lagoa, os dois substantivos funcionam como sinónimos: caldeira Comprida e lagoa Comprida são dois nomes do mesmíssimo lugar, ainda que um picuinhas da gramática detecte aqui uma metonímia ao tomar-se o conteúdo pelo continente (ou vice-versa).

A lagoa/caldeira da Lomba é talvez a que menos entusiasma os turistas: de baixa profundidade e situada num planalto, falta-lhe em volta o dramatismo das ladeiras a pique e do recorte acidentado dos montes. A lagoa Rasa, embora igualmente... enfim... rasa, não é diminuída pelo cenário, já que a sua função é fazer contraste com a lagoa Funda, que lhe fica mesmo ao lado mas 170 metros abaixo. O arvoredo em volta da lagoa da Lomba, quase todo exótico, também não a favorece, pois até um visitante distraído percebe que uma plantação de criptomérias é muito menos bonita do que a floresta nativa que reveste as encostas das melhores caldeiras.

Dito isto, a lagoa da Lomba tem particularidades que justificam uma visita: de todas as lagoas da ilha, é a que está a maior altitude (650 m), ficando a lagoa Branca num segundo lugar muito distanciado (570 m); e as suas águas baixas e margens lodosas favorecem uma flora especializada que, com excepção da lagoa Rasa, está ausente das outras lagoas. Exemplos são a Littorella uniflora, de ampla distribuíção europeia, e a rara endémica Isoetes azorica: nas Flores, ambas ocorrem apenas na lagoa da Lomba e na lagoa Rasa. E a diminuta Elatine hexandra, abaixo retratada, só mora mesmo na lagoa da Lomba.

Elatine hexandra (Lapierre) DC.


A Elatine hexandra, como quase todas as suas congéneres, integra aquele grupo de plantas anuais que, vivendo em margens de lagos ou charcos, preferem esperar que a água baixe ou se evapore deixando a descoberto o solo lamacento, tratando depois de cumprir o seu ciclo vital antes que a lama fique ressequida. O seu calendário fenológico, embora sobretudo estival, é pois oscilante e depende das condições locais, podendo em anos propícios sucederem-se várias gerações da planta na mesma temporada. Espécie prolífera, a E. hexandra produz em média umas 40 sementes por cápsula. O farto banco de sementes que deposita no solo está pronto a germinar logo que haja condições favoráveis.

Única espécie do seu género nos Açores, a Elatine hexandra está distribuída por grande parte da Europa, presumindo-se que seja rara em Portugal continental. Contudo, a pequenez da planta (caules prostrados de 2 a 8 cm de comprimento, flores e frutos de 1 mm de diâmetro, folhas de 2 a 3 mm de comprimento), o seu surgimento efémero, e o carácter pouco aprazível dos habitats que ocupa — tudo isso pode contribuir para que ela seja pouco vista. Uma espécie afim, Elatine brochonii, só em 2011 foi detectada em território nacional, mas depois concluiu-se que não era assim tão rara (ver mapa de distribuição no Flora-On). Tanto em Portugal continental como nos Açores, é de crer que a E. hexandra seja mais frequente do que aquilo que sugerem os poucos registos existentes. Mesmo que no continente alguns habitats naturais se tenham perdido, ela não se faz rogada em ocupar habitats artificiais como margens de represas ou lagos de recreio.