29/11/2016

Cerefolho bêbado



Chaerophyllum temulum L.


Para quem gosta de arriscar a vida consumindo cogumelos silvestres, as umbelíferas ofecerem mais uma apelativa variante da roleta russa. Há umbelíferas de fama e proveito reconhecidos nas artes culinárias (como a cenoura, a salsa e o funcho, só para mencionar as mais triviais), mas há outras, com o mesmo aspecto geral, que são mortalmente venenosas (como a cicuta e a rabaça). À cautela, mais vale não as levar à boca, pois mesmo quem raramente tem dúvidas se pode enganar, e um engano destes é irremediável.

O cerefolho-bravo (ou cerefólio-bravo) acima ilustrado exemplifica bem os riscos que corre um respigador de plantas silvestres. O cerefólio cultivado (Anthriscus cerefolium) não é, de facto, muito diferente, sobretudo no formato das folhas e dos frutos, mas, enquanto que o segundo é usado como erva aromática, o primeiro é tóxico. Não consta porém que seja mortal em pequenas doses, e a possível confusão entre as duas plantas não resiste ao teste do paladar. É por isso muito improvável a ingestão por humanos do cerefolho-bravo como condimento alimentar. Contudo, ele foi em tempos usado como erva medicinal, e entre os efeitos secundários reportados contam-se um andar cambaleante, apatia, cólicas e (nos casos mais graves) cegueira temporária. A dificuldade em manter a postura vertical assemelha-se à embriaguez, razão para o maroto do Lineu baptizar a planta com o epíteto temulum (ou temulentum), que significa bêbado em latim. Reforçando essa conexão, as manchas cor-de-vinho no caule (fotos aqui) lembram a tez dos alcoólicos inveterados. Iguais manchas decoram as hastes da cicuta (Conium maculatum — ver foto), que, entre outros caracteres, se diferencia do cerefolho-bravo por ser inteiramente glabra.

Abandonada a perigosa ideia de o comer, permanece o desafio de distinguir o cerefolho-bravo de outras umbelíferas aparentadas. Aquelas que lhe é mais próxima, pela folhagem e porte geral, é a salsa-das-vacas (Anthriscus sylvestris). São ambas hirsutas, os frutos são quase indistinguíveis, as hastes podem nos dois casos atingir ou ultrapassar um metro de altura, e as umbélulas são decoradas com as mesmas bractéolas pendentes (compare a 3.ª e 4.ª fotos acima com esta). O modo mais expedito de distinguir as duas é notar que o cerefolho-bravo tem pétalas fendidas (4.ª foto) e que salsa-das-vacas as tem inteiras (foto aqui).

O motivo da nossa simpatia pelo Chaerophyllum temulum, que não sobressai nem pela beleza nem pela utilidade, é que um congénere seu, o Chaerophyllum azoricum, é um raro endemismo açoriano, merecedor do nosso maior apreço. Ensina a etimologia que a palavra graga Chaerophyllum significa "folhas que agradam". Sem que Lineu (que, com esse "agrado", quis referir-se a impressões olfactivas e não tanto visuais) alguma vez o tenha conhecido, a formosura do Chaerophyllum azoricum justifica inteiramente tal descrição.

22/11/2016

O futuro é amarelo

Face à tragédia de migrantes e refugiados a que, lamentavelmente, o mundo todo-poderoso não consegue pôr termo, quem deprecia uma espécie exótica, quando ela se revela uma ameaça para a flora endémica de uma região, pode ser apontado como defendendo abusivamente a reserva de um território para os seus habitantes autóctones. Eliminemos, porém, desde já este mal-entendido. Sabemos que não há fronteiras para a fauna ou para a flora, e que declarar uma espécie nativa de um local é uma decisão datada, ainda que tenha fundamento científico. Decerto há plantas em Portugal cujos progenitores terão aqui aportado, vencido a competição com outras espécies e visto alterar-se a sua herança genética pela adaptação a novos polinizadores ou pela colonização de um substrato diferente, tornando-se a pouco e pouco, num processo evolutivo admirável, parte do que hoje, milhões de anos depois, consideramos flora endémica lusitana. O impacto desses imigrantes nos ecossistemas de então seria, por algumas normas actualmente em vigor, comparável à de uma invasão por extraterrestres perigosos. Que razões há então, afora o apelo estético e o interesse botânico, para a erradicação de espécies invasoras, para a listagem cuidadosa das espécies nativas em situação vulnerável e para os programas de conservação, se afinal o futuro pode, sem a nossa (por vezes danosa) intervenção, destinar ao planeta não um deserto mas um coberto vegetal homogéneo, formado por um limitadíssimo número de espécies muito resistentes e bem adaptadas?

Há pelo menos um motivo a que é prudente prestarmos toda a atenção: a sobrevivência da humanidade pode depender, mais do que supõe ou consegue aferir, dos benefícios da biodiversidade. É que tem sido essa variedade biológica e a cooperação entre espécies, num plano de subsistência mútuo, que nos tem garantido alimento, saúde, energia, recursos para a pesquisa tecnológica e a descoberta de novos remédios; e o que poderá assegurar uma resposta eficiente às mudanças no clima. A sustentabilidade da vida na Terra só será possível se os ecossistemas tiverem múltiplos meios de preservar impolutas as fontes de água, de manter a fertilidade do solo arável, de produzir ingredientes variados para a nossa dieta equilibrada, de reciclar os nutrientes do planeta, de travar o declínio dos polinizadores, salvaguardando o seu pacto com as plantas, de renovar as virtudes da nossa atmosfera e, não menos importante, de usufruir da diversidade genética em redutos silvestres.



Vem este arrazoado a propósito de mais uma espécie exótica, originária da América Central e do Sul, que vimos na lagoa de Vixán, na costa da Galiza. Pela sua grande capacidade invasora, a Ludwigia grandiflora é uma forte ameaça a este formoso espaço natural. Herbácea perene, alta, de flores solitárias mas vistosas no Verão e absoluta dependência de solos encharcados, consegue reproduzir-se vegetativamente e aprecia sobremaneira ribeiros de fraca corrente, remansos, arrozais e represas. Os frutos são cápsulas longas com uma coroa de sépalas e sementes firmemente incrustadas, que, mal se libertam, flutuam na água ou se disseminam arrastadas pelo vento. Para travar a propagação da planta, em alguns países da Europa são proibidos tanto a sua comercialização como o seu transporte.



Ludwigia grandiflora (Michx.) Greuter & Burdet

Cremos, porém, que ela não tardará a chegar ao Minho. Das três espécies do género Ludwigia que ocorrem na Península Ibérica, só a L. palustris, de flores muito discretas, é autóctone e tem populações conhecidas em Portugal.

15/11/2016

Sapinhos no sapal




Spergularia marina (L.) Besser

Os sapinhos do reino vegetal não coaxam nem têm patas, mas pelo menos são verdes. Os nomes comuns das plantas, quando os há genuínos, conseguem ser tão misteriosos como certos nomes científicos. Com um pouco de imaginação, lá se consegue engendrar uma explicação mais ou menos plausível mas sem qualquer base segura. Assim, algumas plantas do género Spergularia dão-se bem em habitats salobros de estuários ou de rias — ou seja, naqueles lugares atraentes para anfíbios a que costumamos chamar sapais. E que haja sapinhos num sapal parece quase uma necessidade. O maior óbice a esta pseudo-explicação é que as espécies mais comuns do género (como a Spergularia purpurea) preferem lugares secos, às vezes pisoteados, e não têm especial apetência pelo sal.

Um sapinho que gosta mesmo de água com sal é a Spergularia marina que ilustra este texto, fotografada no início de Junho na Barrinha de Esmoriz. O epíteto marina já denuncia, aliás, a sua preferência por habitats costeiros. Para dificultar a vida ao amador de botânica, não é esta a única Spergularia que surge em prados salinos e em juncais de beira-mar: uma outra não menos frequente nesses lugares é a S. media, sendo até habitual encontrá-las juntas. Uma olhada às fotos desta última convence-nos que distingui-las não é trivial, como aliás seria de esperar num género tão uniforme como este. Mas não é tarefa impossível: se atentarmos no aspecto geral da planta, a S. marina é mais grácil, com caules mais finos e flores mais pequenas do que a S. media. Não havendo oportunidade de as observar lado a lado, este critério comparativo de pouco nos serve. Aí socorremo-nos de um outro critério mais objectivo, mas que talvez exija o uso de lupa (ou de um par de olhos bem afinados): a Spergularia marina tem um número variável de estames por flor, em geral seis ou menos (confira nas duas últimas fotos), ao passo que na S. media as flores nunca têm menos que sete estames e quase sempre têm dez (veja esta foto).

Já que o método da contagem se revela, neste caso, tão bem sucedido, eis mais um exemplo da sua aplicação. O nome Spergularia provém de Spergula, e informa-nas que estes dois géneros são semelhantes. E são na verdade tão próximos que alguns autores até os consideram sinónimos. A Spergula arvensis, de flor branca, é presença habitual em pousios ou na orla de campos de cultivo. Não é porém a cor das flores que separa os dois géneros, pois também no género Spergularia há espécies de flor branca (lembremos a nossa bem conhecida Spergularia azorica). O segredo está no número de estigmas, que são aqueles apêndices terminais do carpelo (parte feminina da flor) que recebem os grãos de pólen. Na Spergularia são três os estigmas (última foto acima e também aqui), enquanto que na Spergula eles são cinco (veja aqui).

08/11/2016

Trifloricos

Depois de alguns anos de passeios botânicos, entendemos agora melhor as associações entre plantas a que se referem, em latim, os artigos científicos, e aprendemos a valorizar o tipo de solo que elas preferem, ou exigem, por ser esse um indicador fiável para as encontrarmos. Por isso, decidimos consultar uma lista de geossítios afamados do nordeste do país e visitar alguns dos afloramentos calcários que dela constam. Em Macedo de Cavaleiros, os que não são pedreiras desactivadas talvez tenham menos interesse para os geólogos, por esconderem pormenores da rocha, mas são os de maior potencial para quem quer ver plantas. Lembram os anfiteatros esbranquiçados das serras de Aire e Candeeiros, também eles quase sem flores em Novembro. E, como prevíramos, ali estavam muitos exemplares de Spiranthes spiralis. Ao lado, num talude de solo bem drenado, soalheiro e virado a sul, avistámos, já em fim de ciclo, exemplares deste raro Erigeron.

Erigeron acris L.

Neste género, conhecíamos os floricos rasteiros dos muros (o mexicano E. karvinskianus) e o fantástico E. alpinus que vimos em prados de montanha na Cantábria. O das fotos é anual, ocasionalmente bienal ou mesmo vivaz; em cada Outono, o talo rugoso e solitário, de uns 40 cm de altura, tinge-se com um atraente tom púrpura. Nas inflorescências, com cerca de 18 mm de diâmetro e de pés altos, notam-se as «pétalas» pequenas e de cor lilás dos numerosos florículos externos; os do disco central, em contrapartida, dão uma coloração amarela ao conjunto. Vista de longe, esta combinação de cores parece azul, daí a designação comum inglesa, blue fleabane. E se observarmos melhor os capítulos florais, notamos um terceiro tipo de florículos, com os papilhos que mais tarde serão os pára-quedas dos frutos. Formam um anel, que se nota bem entre o bordo e o centro da inflorescência na segunda foto. Por esta peculiaridade, estas plantas já estiveram no género Trimorpha.

A floração decorre de Junho a Setembro. A par das associações vegetais e do tipo de habitat, este é mais um parâmetro a ter em conta aos programar os seus passeios — ou terá de os repetir no ano seguinte, como nós, para obter fotos mais expressivas.

01/11/2016

Novas azedas

Rumex intermedius DC.

Já se sabe que o valor de mercado de um produto aumenta com a raridade, e que aquilo que é desdenhado por ser abundante num certo país ou região pode ser valioso e cobiçado noutras paragens. Consideraçôes análogas guiam-nos muitas vezes no turismo botânico que praticamos. Nas grandes extensões do centro-oeste do país dominadas por substratos calcários, encontramos com facilidade muitas plantas (entre elas um grande número de orquídeas) que, por falta de habitat apropriado, se fazem escassas ou ausentes no resto do território. Toca então de procurá-las nesses lugares improváveis, não porque ganhemos dinheiro com isso, mas porque o achado se torna mais gratificante. Ressalve-se que essa procura não é inteiramente arbitrária: se uma planta só se dá mesmo em calcários, seria tolo querer vê-la em afloramentos xistosos. Mas o fogo primordial misturou de forma caótica os ingredientes de que o planeta é feito, fazendo surgir ilhas calcárias em mares (sólidos) de xisto ou granito. São essas ilhas, espalhadas aqui e ali pelo nordeste transmontano, que gostamos uma vez por outra de visitar em busca de surpresas.

As minas de Santo Adrião, em Vimioso, são dos maiores afloramentos calcários de Trás-os-Montes. Encerrada a pedreira, já nada parece ameaçar os azinhais que, durante anos, foram sendo abocanhados pelo avanço da exploração. Apesar das feridas, o que sobrou, espalhado por dois ou três montes e atravessado por dois ribeiros, é um bosque de árvores maduras que impõe respeito, com mais de 3 km de comprimento e uma área total que ultrapassa 1 km^2. Sob a copa ampla das azinheiras ou aproveitando as clareiras das zonas mais pedregosas, o coberto arbustivo e herbáceo é rico e condimentado com aquelas espécies que denunciam o solo alcalino. Além das orquídeas (duas delas muito raras) e da sempre sedutora Leuzea conifera, aparece uma azeda (género Rumex) que se destaca pela inaudita elegância. Quando com ela deparámos, e ainda sem lhe poder dar nome, soubemos logo que era a primeira vez que a víamos. Alta, de quase 1 m de altura, haste fina e ramificada, inflorescência como uma nuvem tocada pelo pôr-do-sol, folhas sagitadas, estreitas e compridas como lanças.

Consultados os manuais, concluímos tratar-se do Rumex intermedius. Tem certa preferência por calcários, mas não mantém com eles uma relação de exclusividade. Apesar de muito espalhado no país vizinho, é escasso em Portugal e, como informa o mapa de distribuição no Flora-On, encontra-se sobretudo no Algarve. A Flora Ibérica sublinha essa preferência pelo sul, assinalando-o apenas em quatro províncias: Estremadura, Algarve, Alto e Baixo Alentejo. O salto para Trás-os-Montes, província que agora se acrescenta à corologia da espécie, é considerável. Como chegou ele àquela ilha calcária transmontana sem usar, que se saiba, os calcários do centro do país como trampolim? Veio certamente de Espanha, pois Portugal não é uma ilha e estamos todos embarcados na mesma jangada de pedra.