28/10/2013

Lagoacho das espadas

Sparganium angustifolium Michx.


Estas são espadas que flutuam à tona da água: verdes, leves, inofensivas. Qualquer planta com folhas longas, planas e pontiagudas suscita de imediato a comparação com a arma favorita e mais simbólica dos antigos guerreiros, anterior à pólvora e a tudo o mais que se inventou para matar em larga escala. A espada e as suas variações, como o gládio e o espadachim, deram nome ao gladíolo e à espadana, plantas que nada têm a ver uma com a outra, embora as designações vernáculas tendam a confundi-las. Ou, mais precisamente, as designações que alguém entendeu eleger como vernáculas, pois por certo nunca nenhum representante do saber popular chamou espadana-dos-montes-de-folhas-largas ao comum gladíolo (Gladiolus illyricus) dos nossos campos. Haja juízo: um gladíolo é um gladíolo, e dá vistosas flores cor-de-rosa; e uma espadana é uma planta aquática com inflorescências brancas e globulosas. Os espanhóis também são culpados, ao reservarem espadaña para aquilo a que chamamos foguetes ou tábuas (género Typha) e ao chamarem platanaria ou platanera às legítimas espadanas (género Sparganium).

Como várias outras plantas aquáticas, as diferentes espadanas têm uma distribuição muito ampla, cruzando vários continentes. Das catorze espécies que mundialmente compõem o género Sparganium, em Portugal calharam-nos três. A mais bonita delas, e a única com inflorescências ramificadas, é também a mais comum: trata-se da espadana-de-água (S. erectum), já aqui descrita em pormenor. As outras não são menos dadas a mergulhos, mas a que ocorre na serra da Estrela (e só lá), e que por isso deveria chamar-se espadana-da-serra, tolera o esvaziamento sazonal de alguns dos lagoachos a que costuma acolher-se. Sente-se, porém, bem mais feliz quando a água farta lhe permite estender as folhas como lâminas afiadas.

Quando o Alexandre Silva nos acompanhou às Salgadeiras, em meados de Setembro, há já muitos meses que a chuva era pouca ou nenhuma: para aflição das plantas e dos bichos aquáticos, quase todas as pequenas lagoas estavam secas. Só na maior delas, ainda com um volume de água respeitável, encontrámos Sparganium angustifolium em boas condições. Já era tarde para as flores, mas alguns frutos ainda espreitavam entre a folhagem. Talvez a chuva entretanto caída tenha restituído o azul aos lagoachos do planalto central. O ano de 2013 não tem sido próspero para um ecossistema que alberga raridades únicas em Portugal.

26/10/2013

Salta-sebes

Fallopia convolvulus (L.) Á. Löve



O episódio bíblico, tumultuoso como quase todos os do Antigo Testamento, que descreve a luta entre Golias e David, avisa que ao que é pequeno e frágil não estão vedados outros recursos nem a ocasião de vitória. Lição bem dada, mas desnecessariamente violenta pois a natureza é pródiga em instâncias polidas que exemplificam este aforismo. A Fallopia baldschuanica é uma trepadeira gigante, lenhosa, de inflorescências densas, invasora eficiente de habitats deteriorados; mas, sendo de porte avantajado, melindra-se facilmente. A Fallopia das fotos é uma versão diminuta da planta anterior, com flores poucas e exíguas (uns 4 mm de diâmetro) e que, por causa disso, teve de encontrar a «funda» adequada com que vencer a concorrência. Sendo volúvel, insinua-se pelos interstícios que as outras plantas deixam abertos para o sol passar, e enrola as gavinhas onde pode, estrangulando as ervas que com ela competem. Em campos de cultivo, não hesita em enredar as peças dos tractores que, em perfeito estado, lhe cortariam a cabeça. Resta-nos saber se, confrontada com a Fallopia gigante, teria idêntico sucesso.

A posição taxonómica desta planta foi estabelecida, em 1970, pelo botânico islandês Áskell Löve (1916-1994), séculos depois de Lineu a colocar no género Polygonum como P. convolvulus. A alusão ao género Convolvulus é um pouco redutora pois, de facto, só no hábito trepador e na folhagem é que esta Fallopia se parece com algumas espécies de Convolvulus. São mais evidentes as diferenças: as bainhas nos nós dos talos (que por vezes terminam nuns fios ralos, como gavinhas embrionárias) e, sobretudo, as flores (que se podem ver nascem entre Maio e Novembro), discretas tacinhas com 5 pétalas branco-esverdeado-rosadas, duas redondas e 3 exteriores com uma ligeira quilha, num arranjo invulgarmente assimétrico — e não os delicados e vistosos funis do género Convolvulus. Contudo, a tradição (ou a regra da taxonomia?) ditou que, havendo mudança de género, os outros epítetos entretanto propostos (carinatum, volubile, convolvulaceum, infestum, ...) só seriam aceites por exigências científicas ou de coerência da nomenclatura, que no caso não se confirmaram.

Os frutos da Fallopia convolvulus são uns tetraedros imperfeitos com uma semente cada um. São comestíveis e serviram outrora para a alimentação do gado. Com o abandono dessa prática, a planta, nativa da Europa, Ásia e norte de África mas naturalizada em muitos outros lugares de clima temperado, passou de útil a uma infestante indesejável dos campos agrícolas.

22/10/2013

O feto e as marés


rio Minho em Melgaço
Entre 2002 e 2005, discutiu-se, com alguma intensidade, a construção de uma barragem para abastecimento de água a Melgaço, Monção e Valença, três concelhos banhados pelo rio Minho. Como é do conhecimento geral, há já muitas décadas que existe no Minho uma rede de fornecimento público de água; e não consta, mesmo em anos de seca, que alguma vez tenha havido falta de água naquela que é a mais pluviosa das nossas províncias. O busílis da questão está no adjectivo «integrado», um daqueles chavões modernos que dispensam, por si só, quaisquer explicações adicionais. Sim, havia (e há) abastecimento de água nesses concelhos do Alto Minho, mas através da combinação de muitos sistemas parcelares que apresentariam «problemas de funcionamento». Nada melhor, portanto, do que substituí-los a todos de uma só vez por um «sistema integrado», supõe-se que imune a tais problemas. Mas, ao contrário do que sucedeu em Bragança quando se decidiu construir uma barragem em pleno Parque Natural de Montesinho, não houve no Minho uma divisão entre autarcas obreiristas, clamando que o interesse das populações exigia que a obra se fizesse, e organizações como a Quercus, denunciando o atentado contra a natureza e instaurando acções em tribunal. Em Melgaço, Monção e Valença, presidentes de câmara e de juntas de freguesia fizeram coro com ambientalistas na rejeição da barragem. Rejeição não talvez da barragem em abstracto, mas de cada uma das localizações concretas que iam sendo propostas. E essa atitude, pelo seu quase ineditismo em Portugal, é por si só prova eloquente de que a barragem só fazia falta a quem se propunha ganhar dinheiro a construí-la.

A história foi (provisoriamente) encerrada em Fevereiro de 2005, quando Moreira da Silva, Secretário de Estado do Ambiente no Governo de Santana Lopes, deu ordens para cancelar a construção da barragem, então prevista para Lamas de Mouro, na periferia do Parque Nacional da Peneda-Gerês. Duas localizações alternativas, ambas no concelho de Monção, tinham sido estudadas: em Merufe, também no rio Mouro; e em Troporiz, no rio Minho. Numa fase inicial do processo, a escolha recaía sobre Merufe, mas os protestos foram muitos e, depois de um «Estudo de Impacte Ambiental» (EIA) encomendado pela empresa Águas do Minho e Lima (ver PDF), foi decidido mudar a barragem para Lamas de Mouro, com o resultado de os protestos se tornarem ainda mais ruidosos. Se a ideia algum dia ressuscitar será então a vez de eleger o rio Minho como aquele que deve ser sacrificado. Nessa altura revoltar-se-ão, muito justamente, os pescadores de lampreia, receando o fim do seu modo de vida. Do ponto de vista florístico, diz o EIA que a barragem de Troporiz não ocasionaria prejuízos assinaláveis, pois no local de construção as margens são revestidas por um bosque quase exclusivamente constituído por acácias e eucaliptos. Mesmo que a premissa seja verdadeira (é um facto que o coberto arbóreo ao longo do rio Minho está muito estragado), a conclusão de que não são afectados valores florísticos importantes é falaciosa. Todo o curso baixo do Minho está sujeito a um regime de marés que deixaria de existir se se erguesse um muro a cortar-lhe o caudal. Mesmo em Melgaço, a 60 Km da foz, há piscinas naturais entre as rochas que se enchem e esvaziam diariamente, em geral com grande rapidez. E há espécies vegetais raríssimas que dependem desse vaivém da água para a sua sobrevivência.


Thelypteris palustris Schott


Entre elas avulta o Thelypteris palustris, a que poderíamos chamar feto-dos-brejos. Franco & Rocha Afonso, no livro Distribuição das Pteridófitas e Gimnospérmicas em Portugal, descrevem-no como um «feto próprio de sítios pantanosos e, como tal, tendendo actualmente a desaparecer do nosso país devido à drenagem dos pauis». A profecia (de 1982) revelou-se certeira, pelo menos no que toca à metade norte do território. Esta população em Melgaço, dividida em dois pequenos núcleos no bordo de duas piscinas de marés, é certamente das últimas que resistem a norte do Tejo. Se acrescentarmos que, mesmo ao lado, há um magnífica população da aquática Nymphoides peltata, que em Portugal está à beira da extinção e só existe no rio Minho, convencemo-nos de que há razões de sobra para fazer deste habitat uma micro-reserva e promover acções efectivas de conservação. O que talvez obstasse à produção de relatórios com a ligeireza do EIA promovido pelas Águas do Minho e Lima.

O feto-dos-brejos, que está disseminado por quatro continentes e existe em boa parte do hemisfério norte, gosta de estender o seu rizoma por solos encharcados ou muito húmidos, emitindo, a espaços regulares, frondes com 20 cm a 1 metro de comprimento. Distingue-se do feto-fêmea (Athyrium filix-femina), que tem porte e preferências ecológicas semelhantes, por não apresentar folhas dispostas em tufos e por as suas pínulas (segmentos de última ordem das folhas) terem as margens inteiras em vez de profundamente recortadas (compare as fotos de cima com esta). Além disso, o feto-dos-brejos tem dois tipos de frondes, embora pouco diferentes entre si: só as frondes férteis (que costumam ser em menor número) têm as margens das pínulas recurvadas para o verso (confira na foto 6).

Assinale-se que o feto-dos-brejos é caducifólio, característica que partilha com o feto-fêmea: as suas folhas secam e desaparecem no Inverno. Outro traço comum aos dois (ou deveríamos dizer às duas?) é a feminilidade, não no sentido funcional do termo, mas no sentido metafórico de ambos parecerem frágeis se comparados com fetos robustos como o Dryopteris filix-mas (obviamente conhecido como feto-macho). Aliás, a palavra grega Thelypteris é composta por dois vocábulos, pteris e thelys, que significam exactamente feto e fêmea.


Nymphoides peltata (S. G. Gmel.) Kuntze

18/10/2013

Musgo desdentado

Huperzia suberecta (Lowe) Tardieu


Os ingleses chamam fir clubmoss a esta planta, ou a outra com ela aparentada. É um nome que se presta a certos equívocos, como muitas vezes sucede com as designações vernáculas. Assim, clubmoss, que se aplica indistintamente a todas as licopodiáceas, sugere que estas plantas, cujas hastes erectas lembram vagamente um bastão (club), pertencem à classe dos musgos (moss). Na verdade, embora haja musgos (como o Polytrichum commune, vulgar em habitats encharcados) que com elas têm alguma semelhança, as licopodiáceas, ao contrário dos musgos, são plantas vasculares, representando por isso um estádio evolutivo mais avançado. São, ainda assim, dos mais primitivos organismos vegetais à face da Terra, anteriores aos fetos (com os quais costumavam ser emparelhados) e a todas as plantas que produzem flor.

O bastão-de-musgo não é pois um musgo, mas o nome fir clubmoss, que preferimos não tentar verter na íntegra para português, é bem apropriado ao evocar o abeto (fir). A Huperzia e a sua prima Lycopodiella cernua, ambas comuns em proporções variáveis nas sobras de floresta nativa que pontuam o arquipélago açoriano, fazem de facto lembrar coníferas em miniatura, e é fácil confundi-las com rebentos de criptoméria, espécie florestal dominante nas ilhas.

A Huperzia selago, que existe no norte da Península Ibérica mas não chega a Portugal, é a única representante europeia de um género que globalmente inclui mais de 300 espécies sobretudo tropicais. Tão semelhante ela é às plantas açorianas (e madeirenses) que vários foram os autores a defender que nas ilhas atlânticas ocorriam simples variedades da planta continental. Contudo, a espécie mais comum nos Açores, H. dentata, que também ocorre, embora raramente, na Madeira, apresenta um detalhe morfológico que a diferencia facilmente da H. selago: as suas folhas têm numerosos pequenos "dentes" ao longo das margens. A segunda espécie insular, H. suberecta, que hoje exibimos no escaparate, inverte papéis com a sua congénere quando muda de arquipélago, pois é rara nos Açores e comum na Madeira. As folhas desdentadas (confira nas fotos acima) e a presença ocasional de bulbilhos asseguram que o observador atento (e munido de lupa) não confundirá a H. suberecta com a H. dentata. Mais difícil é explicar, se descontarmos os mais de mil quilómetros de oceano, o que separa a H. suberecta da H. selago. Dizem os peritos que é o tamanho das hastes — as da primeira podem chegar aos 40 cm, as da segunda ficam aquém dos 25 cm — e a ornamentação dos esporos, pormenor apenas visível ao microscópio.

Ainda que as duas espécies açorianas coexistam na serra de Santa Bárbara, na ilha Terceira, a H. suberecta é aquela que tem maiores exigências de humidade, surgindo apenas nas zonas mais altas e enevoadas das ilhas, em geral bem acima dos 500 m. A H. dentata, por seu turno, desce até aos 300 m, e na ilha das Flores é comum mesmo em bermas de estrada.

15/10/2013

Cipó-das-oito-chagas


Clematis vitalba L.



Nome comum: vide-branca; em espanhol chamam-lhe hierba de los pordioseros; o nome comum inglês, old man's beard, não distingue as várias espécies de Clematis
Ecologia: liana perene e caducifólia que aprecia orlas de bosques, sebes e margens de rios, mas também coloniza afloramentos rochosos, sobretudo calcários
Distribuição global: região mediterrânica, centro e oeste da Europa
Distribuição em Portugal: mais frequente no centro e norte, a oeste do território; há também registo da sua presença a sul, embora aí pareça rara
Época de floração: Junho a Setembro
Data e local das fotos: Agosto e Setembro de 2013, margens do rio Minho em Melgaço e Valença
Informações adicionais: planta de base lenhosa e folhas decussadas, com flores aromáticas de tépalas branco-esverdeadas pequenas (cerca de 1,5 cm de comprimento), agrupadas em panículas; os frutos são aquénios com uma pluma. Segundo o Guia de Campo — As árvores e os arbustos de Portugal Continental (Público/LPN, 2007), esta planta «quando esmagada em fresco forma um composto que irrita fortemente a pele, pelo que outrora foi usado para produzir chagas com as quais se simulava, conforme pretendido, miséria ou santidade.» O género Clematis abriga um endemismo ibérico, a C. campaniflora Brot., e uma outra espécie, a C. cirrhosa L., com uma distribuição muito restrita (Algarve e Baixo Alentejo) e que ainda não vimos.

11/10/2013

Chão que foge


Sagittaria subulata (L.) Buchen.


As flores no bordo da lagoa funcionam como isca — não para os peixes, mas para os humanos interessados em plantas. O objectivo é que eles se aproximem confiantes na solidez do chão que pisam, até que o que era consistente deixe repentinamente de o ser, e botas e calças se afundem até aos joelhos numa sopa de lama. Não é uma armadilha perigosa, apenas ridícula e incómoda. As plantas que preparam tal engodo só querem rir-se do rei da criação, outrora assim chamado por inspiração bíblica. Pena não o poderem ver mais tarde, numa estação de serviço, de mangueira em punho, a regar-se a si próprio com um jato de água, fazendo alastrar em seu redor uma mancha cor de terra.

A burlesca cena teve lugar na Terceira, perto da gruta do Natal, o segundo buraco vulcânico que, com o Algar do Carvão, constitui o pacote dois-pelo-preço-de-um que os turistas avisados não deixam de experimentar. Optámos por não visitar a gruta, porque o tempo era curto e o nosso interesse é por aquilo que vive à luz do sol. E a lagoa do Negro, a 50 m da casa de acesso à gruta, merecia uma inspecção atenta, que a presença das florinhas brancas amplamente justificou.

A Sagittaria subulata, que talvez não se chame assim, é uma planta aquática originária da costa oeste dos EUA. É muito cultivada em aquários, dando-se bem mesmo quando completamente submersa, e propagando-se rapidamente através de rizomas. As folhas podem atingir os 60 cm, às vezes com extremidades flutuantes, mas em geral ficam-se pelos 5 a 10 cm. As flores aparecem em hastes que emergem da água. O nome científico levanta dúvidas, pois parece haver duas espécies distintas às quais ele vem sendo aplicado, e é a outra espécie que tem prioridade para reter a designação (mais detalhes aqui).

Exótica nos Açores, até hoje, no arquipélago, a planta só foi assinalada na ilha Terceira, e talvez só na lagoa do Negro. Como o primeiro registo data de 1993, e desde então ela pouco ou nada se terá disseminado, não parece haver risco de se tornar invasora na ilha, pecado de que não está isenta noutras paragens. É provável que a sua chegada à Terceira se deva à presença americana nas Lajes, pois entre os militares estacionados na base aérea haverá certamente quem tenha o hobby da aquariofilia. Conjectura-se, aliás, ser essa mesma a razão para o aparecimento da Marsilea hirsuta (ex-M. azorica) no pico da Bagacina.

07/10/2013

Assobio com bagas


Cucubalus baccifer L.


Ainda que sejam em geral esses os atalhos que seguimos, identificar uma planta pelo que tem de comum com outras pode levar a que exageremos as semelhanças, avaliando mal a posição dela na árvore filogenética. É o caso desta herbácea a que os espanhóis chamam orelhas-de-vizinho e outros candelárias. Parece uma trepadeira de folhas pequenas pontiagudas ao formar cortinas junto a margens de arroios ou orlas de bosques. As flores, de Verão, são branco-esverdeadas e as pétalas tão fendidas que cada flor parece ter dez, possuindo de facto apenas cinco. O cálice campanulado, bastante inflado, persiste no fruto, sendo muito parecido com o que vemos na Silene vulgaris (que também é perene). Contudo, os frutos são carnudos, umas uvas redondinhas, pretas quando maduras (em Outubro). Nos meandros destas comparações miúdas, reconhecemos que o método é pouco científico: não sabemos se esta é uma Silene que teve de adoptar outro modo de disseminar os frutos, beneficiando da opção de neles colocar mais alimento; ou se o género mais recente é Silene, que, pelo contrário, emagreceu os frutos, reduzindo-os a cápsulas secas; ou se esta planta nem sequer é parente próxima das Silenes.

O nome comum usado por Plínio, cucubalus (designação que talvez esteja associada ao latim cucubo, que evoca o piar das corujas e dos mochos) ou cuculo (o mesmo, mas agora o cantar é dos cucos), foi promovido em 1753 por Lineu a nome científico, embora, pouco tempo depois, tenha havido quem o quisesse empurrar para o género Silene, sob o nome de Silene baccifera, enquanto outros, lançando achas na controvérsia, chamavam Silene cucubalus à Silene vulgaris.

Na Península Ibérica, tão rica em assobios e cravos, ocorre apenas esta espécie do género Cucubalus, e é rara vê-la na metade sul. Relativamente comum no centro e sul da Europa e na Ásia, por cá foi difícil encontrá-la, talvez porque precisa de sombra e água limpa por perto, um habitat que aqui se vai fazendo escasso.

04/10/2013

Feto de imitação

Dryopteris aemula (Aiton) O. Kuntze



Não sendo este feto menos genuíno do que outros que por aqui têm desfilado, e muito menos sendo feito de plástico, por que o acusamos de ser um feto de imitação? É que a palavra latina aemulus, da qual deriva o epíteto aemula, significa «que procura imitar». Fica então estabelecido que, na opinião de quem primeiro baptizou o feto — o escocês William Aiton (1731-1793), que lhe chamou Polypodium aemulum —, ele é culpado de alguma tentativa de imitação. Imitação de outros fetos, entenda-se. Ele será pois especialmente confundível com certos outros fetos, sem que, misteriosamente, esses outros sejam no mesmo grau confundíveis com ele. Mas é melhor não aprofundarmos o assunto, pois a taxonomia botânica não é um ramo das ciências exactas e não tem obrigação de se subordinar à lógica.

Nas ilhas açorianas há bons motivos para o feto-de-imitação ser confundido com alguns dos seus congéneres, especialmente com aqueles a que está ligado por laços de seiva (equivalente vegetal dos laços de sangue). Do matrimónio do D. aemula com o endemismo açoriano D. azorica nasceu um outro feto endémico do arquipélago, o arrepiado D. crispifolia. Os três apresentam folhas com formatos semelhantes, e o D. aemula, como documentam as fotos acima, não está livre de arrepios, embora se mostre bastante menos espasmódico do que o seu descendente. Contudo, as frondes do D. aemula, com 30 a 60 cm de comprimento, são mais curtas do que as dos outros dois, que podem medir até 90 cm (as do D. crispifolia) ou 1,5 m (as do D. azorica); são, além disso, de um verde claro e baço, em contraste com o tom mais escuro e brilhante do D. azorica. E há um detalhe morfológico importante para distinguir os dois consortes: nas pinas basais do D. aemula, a primeira pínula inferior junto à ráquis é mais comprida do que as restantes (confira na 3.ª foto), enquanto que, no D. azorica, a segunda e terceira pínulas são mais compridas do que a primeira (veja aqui).

Embora em algumas ilhas seja pouco comum, o D. aemula faz o pleno do arquipélago açoriano, no que está acompanhado pelo D. azorica. A parceria desfaz-se no resto da área de distribuição do primeiro (Península Ibérica, desde a Galiza ao País Basco, costa atlântica francesa, Grã-Bretanha e Irlanda, Turquia, Cáucaso, Madeira e Canárias), pois o segundo, em obediência ao seu estatuto de endemismo açoriano, está proibido de emigrar para outras paragens. Com o resultado de o D. aemula, qual marinheiro de longo curso, ter ensaiado outras aventuras amorosas nos seus vários portos de abrigo. Um desses casos aconteceu com o D. maderensis, endémico da ilha da Madeira, e deu origem ao D. guanchica — um feto que, tal como o seu progenitor mais viajado, tem poiso nas ilhas atlânticas (Madeira e Canárias) e no continente europeu (só Península Ibérica).

01/10/2013

Caudas-de-andorinha

Vincetoxicum nigrum (L.) Moench


São as folhas e os frutos desta planta que fazem lembrar as andorinhas. As folhas são ovais, de ponta aguçada; os frutos são longos fusos acastanhados — há quem assevere que abrem qualquer porta. Ambos se agrupam frequentemente aos pares em posição que lembra as penas da cauda daqueles pássaros em voo.

As flores em estrela minúsculas nascem em cimeiras e os lóbulos triangulares exibem um tom púrpura quase negro que é pouco usual. Abrem de manhã e permanecem disponíveis para os polinizadores durante aproximadamente sete dias, o tempo de esgotarem o pote de aroma forte com que os atraem. Têm um sistema misto de reprodução, coexistindo frutos que resultam de auto-polinização com outros de polinização cruzada. Não são exigentes, qualquer mosquinha lhes parece servir como polinizador, mas alguns estudos mostram que é usual a presença de um insecto que, como um porteiro, defende as flores dos intrusos alados que roubam néctar mas não transportam pólen.

Para premiar uma busca demorada, este ano encontrámos, nas margens ensombradas do rio Minho, em zonas pedregosas e de bosque, várias populações abundantemente floridas desta espécie, que é nativa do sudoeste da Europa. Para nos poupar outra visita, alguns pés mostravam já frutos. As sementes têm uma asinha e um paraquedas porque é o vento que as dissemina, e devem estar agora a espalhar-se. Cumprida esta tarefa, a planta hiberna e só ressurge na Primavera.

Na Península Ibérica ocorre outra espécie do mesmo género, também perene e rizomatosa, que, embora aprecie um habitat eurosiberiano semelhante, é mais rara que a das fotos e não tem hábito tão notório de trepadeira. Há registo da presença dela no Gerês, onde a veremos em Junho do próximo ano, e também na Beira Alta e no Alto Alentejo. Até lá, o leitor fará o favor de pintar as pétalas destas fotos com tinta verde, a coroa de dentinhos ao centro de amarelo e de aclarar um pouco a folhagem: terá desse modo uma ideia de como é o Vincetoxicum hirundinaria. Ou, preferindo, poderá visitar esta página do portal Flora-on.