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22/10/2013

O feto e as marés


rio Minho em Melgaço
Entre 2002 e 2005, discutiu-se, com alguma intensidade, a construção de uma barragem para abastecimento de água a Melgaço, Monção e Valença, três concelhos banhados pelo rio Minho. Como é do conhecimento geral, há já muitas décadas que existe no Minho uma rede de fornecimento público de água; e não consta, mesmo em anos de seca, que alguma vez tenha havido falta de água naquela que é a mais pluviosa das nossas províncias. O busílis da questão está no adjectivo «integrado», um daqueles chavões modernos que dispensam, por si só, quaisquer explicações adicionais. Sim, havia (e há) abastecimento de água nesses concelhos do Alto Minho, mas através da combinação de muitos sistemas parcelares que apresentariam «problemas de funcionamento». Nada melhor, portanto, do que substituí-los a todos de uma só vez por um «sistema integrado», supõe-se que imune a tais problemas. Mas, ao contrário do que sucedeu em Bragança quando se decidiu construir uma barragem em pleno Parque Natural de Montesinho, não houve no Minho uma divisão entre autarcas obreiristas, clamando que o interesse das populações exigia que a obra se fizesse, e organizações como a Quercus, denunciando o atentado contra a natureza e instaurando acções em tribunal. Em Melgaço, Monção e Valença, presidentes de câmara e de juntas de freguesia fizeram coro com ambientalistas na rejeição da barragem. Rejeição não talvez da barragem em abstracto, mas de cada uma das localizações concretas que iam sendo propostas. E essa atitude, pelo seu quase ineditismo em Portugal, é por si só prova eloquente de que a barragem só fazia falta a quem se propunha ganhar dinheiro a construí-la.

A história foi (provisoriamente) encerrada em Fevereiro de 2005, quando Moreira da Silva, Secretário de Estado do Ambiente no Governo de Santana Lopes, deu ordens para cancelar a construção da barragem, então prevista para Lamas de Mouro, na periferia do Parque Nacional da Peneda-Gerês. Duas localizações alternativas, ambas no concelho de Monção, tinham sido estudadas: em Merufe, também no rio Mouro; e em Troporiz, no rio Minho. Numa fase inicial do processo, a escolha recaía sobre Merufe, mas os protestos foram muitos e, depois de um «Estudo de Impacte Ambiental» (EIA) encomendado pela empresa Águas do Minho e Lima (ver PDF), foi decidido mudar a barragem para Lamas de Mouro, com o resultado de os protestos se tornarem ainda mais ruidosos. Se a ideia algum dia ressuscitar será então a vez de eleger o rio Minho como aquele que deve ser sacrificado. Nessa altura revoltar-se-ão, muito justamente, os pescadores de lampreia, receando o fim do seu modo de vida. Do ponto de vista florístico, diz o EIA que a barragem de Troporiz não ocasionaria prejuízos assinaláveis, pois no local de construção as margens são revestidas por um bosque quase exclusivamente constituído por acácias e eucaliptos. Mesmo que a premissa seja verdadeira (é um facto que o coberto arbóreo ao longo do rio Minho está muito estragado), a conclusão de que não são afectados valores florísticos importantes é falaciosa. Todo o curso baixo do Minho está sujeito a um regime de marés que deixaria de existir se se erguesse um muro a cortar-lhe o caudal. Mesmo em Melgaço, a 60 Km da foz, há piscinas naturais entre as rochas que se enchem e esvaziam diariamente, em geral com grande rapidez. E há espécies vegetais raríssimas que dependem desse vaivém da água para a sua sobrevivência.


Thelypteris palustris Schott


Entre elas avulta o Thelypteris palustris, a que poderíamos chamar feto-dos-brejos. Franco & Rocha Afonso, no livro Distribuição das Pteridófitas e Gimnospérmicas em Portugal, descrevem-no como um «feto próprio de sítios pantanosos e, como tal, tendendo actualmente a desaparecer do nosso país devido à drenagem dos pauis». A profecia (de 1982) revelou-se certeira, pelo menos no que toca à metade norte do território. Esta população em Melgaço, dividida em dois pequenos núcleos no bordo de duas piscinas de marés, é certamente das últimas que resistem a norte do Tejo. Se acrescentarmos que, mesmo ao lado, há um magnífica população da aquática Nymphoides peltata, que em Portugal está à beira da extinção e só existe no rio Minho, convencemo-nos de que há razões de sobra para fazer deste habitat uma micro-reserva e promover acções efectivas de conservação. O que talvez obstasse à produção de relatórios com a ligeireza do EIA promovido pelas Águas do Minho e Lima.

O feto-dos-brejos, que está disseminado por quatro continentes e existe em boa parte do hemisfério norte, gosta de estender o seu rizoma por solos encharcados ou muito húmidos, emitindo, a espaços regulares, frondes com 20 cm a 1 metro de comprimento. Distingue-se do feto-fêmea (Athyrium filix-femina), que tem porte e preferências ecológicas semelhantes, por não apresentar folhas dispostas em tufos e por as suas pínulas (segmentos de última ordem das folhas) terem as margens inteiras em vez de profundamente recortadas (compare as fotos de cima com esta). Além disso, o feto-dos-brejos tem dois tipos de frondes, embora pouco diferentes entre si: só as frondes férteis (que costumam ser em menor número) têm as margens das pínulas recurvadas para o verso (confira na foto 6).

Assinale-se que o feto-dos-brejos é caducifólio, característica que partilha com o feto-fêmea: as suas folhas secam e desaparecem no Inverno. Outro traço comum aos dois (ou deveríamos dizer às duas?) é a feminilidade, não no sentido funcional do termo, mas no sentido metafórico de ambos parecerem frágeis se comparados com fetos robustos como o Dryopteris filix-mas (obviamente conhecido como feto-macho). Aliás, a palavra grega Thelypteris é composta por dois vocábulos, pteris e thelys, que significam exactamente feto e fêmea.


Nymphoides peltata (S. G. Gmel.) Kuntze

19/04/2010

Faveira dos pauis

Menyanthes trifoliata L.
O nome faveira-dos-pauis é uma tradução apressada do inglês bogbean, e refere-se à semelhança entre as folhas desta herbácea perene, quando ainda tenras, e as da faveira comum (Vicia faba): ambas as plantas apresentam folhas trifoliadas, com folíolos grandes, em posição semi-vertical, dobrados longitudinalmente de modo a formarem sulcos. As semelhanças ficam-se por aqui, pois a Menyanthes trifoliata prefere viver em charcos e não consta que dê frutos comestíveis.

As flores de pétalas franjadas recordam as de uma outra planta aquática, essa de flores amarelas, que já aqui trouxemos: o golfão-pequeno. Aliás Lineu baptizou esta última planta como Menyanthes nymphoides; mas, após várias atribulações taxonómicas, Otto Kuntze (1843-1907) transferiu-a definitivamente, em 1893, para o novo género Nymphoides. O resultado dessa e de outras deserções é que hoje a Menyanthes trifoliata é a única espécie do seu género.

Trata-se de uma planta de caule rastejante que, a intervalos mais ou menos regulares, vai lançando folhas e içando hastes floridas com 20 a 25 cm de altura. As flores são pequenas, com uns 15 mm de diâmetro. Sem calçado apropriado — o mínimo seriam umas galochas de cano alto —, o fotógrafo socorreu-se da tele-objectiva, e teve de contentar-se em captar as flores de perfil. O local foi um dos lagos na reserva de Burnham Beeches, em Buckinghamshire, perto de Londres.

A espécie é bastante comum em Inglaterra, e a sua área de distribuição global é muita ampla, abrangendo a Europa, a Ásia e a América do Norte. No nosso país, há registos da sua presença em lagos ou charcos da Serra da Estrela, Paredes de Coura e Montalegre. Apesar de as últimas herborizações já terem algumas décadas e de a planta não estar listada na Flora Digital de Portugal, podemos assegurar que ela ainda existe na Serra da Estrela.

18/01/2010

Golfão ou golfinho?

Nymphoides peltata (S. G. Gmel.) Kuntze / Lemna gibba L.
O Portugal Botânico de A a Z chama golfão ao vulgar nenúfar (Nymphaea alba), no que é corroborado pela Flora Digital de Portugal. São aliás várias as plantas aquáticas dos géneros Nymphaea e Nuphar que as mesmas fontes apelidam de golfões, diferenciando-as umas das outras por um adjectivo adicional: há assim o golfão-branco, o golfão-amarelo e o golfão-vermelho. E também o golfão-pequeno, nome que calhou à Nymphoides peltata e que pode muito bem, em benefício da brevidade e da eufonia, ser encurtado para golfinho — até porque, cremos nós, até agora não existia nada com esse nome.

O sufixo latino oides em nomes botânicos como platanoides ou Nymphoides deve ler-se como «semelhante a»: o bordo-da-Noruega (Acer platanoides) é semelhante ao plátano, e o golfinho (Nymphoides peltata) é semelhante ao golfão (Nympahea sp.). Essa semelhança, contudo, é simplesmente a opinião de quem baptizou a planta, e pode parecer forçada a outros olhos. Apesar de haver livros que afirmam o contrário, as flores da Nymphoides e da Nymphaea têm de facto pouquíssimas parecenças, e tanto assim é que as duas pertencem a famílias botânicas evolutivamente muito afastadas. Afinidade há é nas folhas arredondadas que, em ambas as plantas, formam extensos tapetes flutuantes.

O género Nymphoides tem uma distribuição cosmopolita, e é formado por vinte espécies que vivem em águas paradas e pouco profundas. São plantas rizomatosas, com caules submersos que podem ultrapassar os dois metros de comprimento, e flores pequenas (2 cm), brancas ou amarelas, de pétalas franjadas, em hastes que se erguem acima da superfície da água.

Asseveram os manuais que a Nymphoides peltata, planta perene euro-asiática tida nos E.U.A. como invasora indesejável, é também nativa do norte e centro do nosso território. Nunca nos aconteceu encontrá-la nos nossos espaços naturais, mas, como planta cultivada e vendida em hortos, não deverá ser assim tão rara em jardins. A acompanhá-la, na foto em cima, tirada em Inglaterra no Verão passado, vemos lentilhas-de-água (Lemna gibba), uma planta curiosa que faz com que todo o lago pareça uma sopa bem nutritiva. Coisa que ela até é, embora mais para peixes do que para pessoas.