27/09/2021

Floribunda mas nem tanto

Perto da entrada lateral dos jardins do Palácio de Cristal, escondida num bosquete de metrosíderos, camélias e rododendros, está uma árvore de origem australiana com folhas lustrosas, pendentes e rosadas no Outono. Tem cerca de 8 metros de altura (mas poderia atingir os 30) e a copa, de folhagem perene, é frondosa mas menos imponente do que poderia ser. Demorámos a reparar nela, e mais ainda a acertar com a data de floração para a fotografar. Não sabemos se pertence ao projecto inicial do jardim, de Emil David, caso em que já estaria plantada em 1865. O modelo de jardim então em voga na Europa servia vários propósitos, entre eles o de permitir o passeio sossegado por longas alamedas, ladeadas por renques de árvores da mesma espécie (frequentemente plátanos ou tílias), o apreço por açafates com muitas flores variadas (que certa arquitectura portuense entretanto desqualificou e tem paulatinamente eliminado de praças e jardins) e o coleccionismo de exemplares botânicos exóticos (que dominam nos jardins antigos que ainda sobrevivem no Porto). A árvore que vos mostramos hoje pode ter sido um desses pontos de interesse dos jardins do Palácio de Cristal.

Waterhousea floribunda (F. Muell.) B. Hyland


A fama entre jardineiros desta mirtácea vem-lhe da floração exuberante. Apesar de as flores serem minúsculas, são tantas, nascem em panículas tão densas e têm tantos estames (um formato que lembra as flores dos eucaliptos), que alguns exemplares no Verão (entre Dezembro e Março na Austrália, seis meses depois por cá) parecem brancos quando vistos de longe. Não lhe vimos ainda os frutos, mas são redondos e esverdeados, com uma semente grande, como os deste exemplar na ilha de São Miguel. O tronco é acinzentado, marcado por fissuras e ligeiramente rombudo na base, uma característica que denuncia a sua preferência por habitats húmidos e margens soalheiras de riachos. No jardim do Palácio de Cristal, porém, está longe do lago e nem consegue avistar o mar. Talvez por isso a sua floração seja modesta, como modesto tem sido o seu crescimento. Antes, e ainda mais agora, a selecção de árvores para ornamentar jardins terá sido mais guiada por caprichos do que pelo conhecimento.

18/09/2021

Leituga vice-campeã



Na flora dos arquipélagos atlânticos sobressaem certas plantas lenhosas, às vezes de porte arbóreo, cujos antepassados continentais mais próximos são humildes herbáceas que raramente atraem a nossa atenção. Um exemplo é dado pelas leitugas (ou serralhas) do género Sonchus nas Canárias e na Madeira, que se diversificaram nas ilhas a tal ponto que hoje são reconhecidas mais de 30 espécies. Nem todos os membros dessa linhagem tão heterogénea desenvolveram caule lenhoso ou hábito arbustivo, pois alguns não ocuparam habitats que exigissem tais adaptações. Na Madeira, a campeã indiscutível entre as leitugas chama-se Sonchus fruticosus, que vive na laurissilva e atinge os 4 metros de altura. O ensombramento permanente da laurissilva, formada quase toda ela por árvores de folhagem perene, obrigou as plantas a crescer em altura em busca de luz. Em contraste, o Sonchus ustulatus, morador das falésias do litoral da ilha, não teve qualquer necessidade de esticar o pescoço para chegar à luz; teve, isso sim, que moderar o crescimento (não é mais avantajado do que os seus antepassados continentais) por força do vento e da pobreza do substrato pedregoso em que lhe calhou viver.

Sonchus pinnatus Aiton


Por desacerto de calendário, não tivemos ainda ocasião de ver Sonchus fruticosus em flor. Por sorte, há na Madeira uma outra leituga arbustiva, Sonchus pinnatus, que acedeu a florir no princípio de Maio e a posar para uma sessão fotográfica. Com os seus 2 metros de altura máxima, esta leituga é, na Madeira, a vice-campeã de um campeonato a três — ou a quatro, se atendermos às duas subespécies de S. ustulatus. Vivendo preferencialmente no interior da ilha, em escarpas rochosas entre os 1000 e 1400 metros de altitude, também não desdenha instalar-se perto do mar: as fotos são do litoral de São Vicente. Além de se distiguirem no porte e no habitat, os dois Sonchus arbustivos madeirenses diferenciam-se pelo tamanho dos capítulos florais (os do S. pinnatus têm de 7 a 10 mm de diâmetro, os do S. fruticosus têm-no duas a três vezes maior) e pelo formato das folhas (as do S. pinnatus são mais estreitas e mais profundamente sulcadas).

Estudos filogenéticos dão suporte à ideia de que todos estes Sonchus das ilhas descendem de um antepassado comum, e que só depois de colonizarem as Canárias é que aportaram à Madeira, vindos provavelmente de Tenerife. Comprovando este parentesco, o Sonchus canariensis (ou cerrajón arbóreo) tem fortes semelhanças com o S. pinnatus. Mas é igualmente interessante conhecer o S. acaulis (fotos em baixo), uma espécie tenerifenha (presente também na Grã-Canária) que faz a ponte entre as pequenas herbáceas do litoral e os arbustos gigantes da laurissilva. As folhas do S. acaulis (ou cerrajón de monte) dispõem-se numa grande roseta basal sobre um caule lenhoso reduzido ao mínimo, e do centro dessa roseta emerge uma única haste simples, de textura herbácea, com 1 a 1,5 m de altura (às vezes mais), encimada por uma umbela de grandes capítulos amarelos, cada um dos quais com 2,5 a 4 cm de diâmetro. Vive em escarpas e clareiras de pinhais em altitudes até 1800 metros, e é mesmo capaz de colonizar áreas urbanas — é frequente vê-lo a crescer nos telhados ou paredes dos velhos edifícios da cidade de La Laguna, em Tenerife (ver fotos aqui).

Sonchus acaulis Dum. Cours.

11/09/2021

Aipo madeirense

Há nomes que são começos de desmentido. É o caso do Melanoselinum decipiens, que é como quem diz aipo enganador. Esta é uma umbelífera de grande porte (pode atingir 3 metros de altura) com folhas que lembram as das angélicas, parecença que já foi fonte de alguns equívocos. Não sendo, pelo seu tamanho, planta fácil de herborizar, houve quem atentasse apenas no formato das folhas e a confundisse com o endemismo açoriano Angelica lignescens. Na verdade, bastaria que se vissem as duas espécies em flor para confirmar como afinal são bastante distintas, podendo-se depois notar mais diferenças ao analisar os frutos. Erros à parte, há que reconhecer que as espécies dos géneros Melanoselinum (endémico da Madeira e monoespecífico) e Angelica não se pouparam a esforços para aproveitar os bons ares, solos, crateras e escarpas húmidas dos arquipélagos da Madeira e dos Açores para engordar sem remorsos e se situarem a meio caminho entre uma herbácea com caule lenhoso e uma árvore.

Melanoselinum decipiens (Schrad. & J. C. Wendl.) Hoffm.


O aipo-da-serra é perene mas monocárpico (tal como a Angelica lignescens), o que significa que tem vida curta (dois ou três anos; a Angelica lignescens dura uma meia dúzia). As folhas são divididas e enormes, com cerca de 60cm de comprimento e 40cm de largura (as da Angelica lignescens são maiores), dispostas em roseta na parte superior do caule. As flores são pequeninas, com pétalas de um rosa pálido, mas reúnem-se em umbelas vistosas que se juntam numa inflorescência terminal larga e plana, uma umbela de umbelas com uns 50-90cm de diâmetro. Na Angelica lignescens, pelo contrário, as flores são esverdeadas e agrupam-se em bolas gigantes, que por sua vez se dispõem num arranjo esférico ainda maior, como se mostra nesta foto.

Estes números são expressivos: ainda que o Melanoselinum fosse raro, pelo tamanho e cor seria fácil detectá-lo nas ravinas rochosas do interior da Madeira, tal como é fácil avistar a angélica açoriana nas caldeiras de Santa Bárbara (Terceira) ou do Faial. Os exemplares de aipo-da-serra das fotos (com a excepção em baixo) moram em escarpas sombreadas do Curral das Freiras, aproveitando o solo firme mas húmido junto a um túnel desactivado que só deve percorrer quem consiga dividir a atenção, ainda que não igualmente, entre as inúmeras plantas que por ali se vêem e o frequente desprendimento de pedras.

04/09/2021

Azevinho da Madeira (e das Canárias)

Por que razão quase não há florestas planas? A pergunta refere-se apenas àquelas florestas ou bosques que temos frequentado na nossa limitada experiência de naturalistas amadores — e que, se descontarmos as nossas insistentes visitas às ilhas atlânticas, são quase todos na Península Ibérica. A resposta óbvia parece ser que é nos lugares planos que estão os solos de maior aptidão agrícola, tendo por isso o arvoredo aí sido sacrificado, há já longos séculos, às necessidades de sobrevivência da nossa espécie, mantendo-se apenas os bosques lineares que acompanham rios ou delimitam parcelas de diferentes proprietários. Os pinhais que ocupavam as grandes extensões arenosas e sem préstimo agrícola do litoral centro, e que foram quase integralmente destruídos nos grandes incêndios de 2017, eram talvez, no nosso território, os derradeiros exemplos de florestas planas.

Quando a orografia é de tal modo acidentada que os terrenos planos são poucos ou nenhuns, o engenho humano viu-se obrigado a esculpir encostas em socalcos para abrir espaços de cultivo, como sucedeu no vale do Douro ou na metade sul da ilha da Madeira. O trabalho de gerações foi fazendo com que da vegetação original pouco restasse. No Douro, o abandono das vinhas causado pela filoxera no final do século XIX permitiu que em alguns montes o coberto arbóreo se regenerasse naturalmente; na Madeira, o arvoredo das vertentes viradas a sul é, nas menores altitudes, quase todo exótico, com predomínio de eucaliptos e acácias e alguns simpáticos castanheiros amenizando o panorama.

Assim, na Madeira, nem antes do povoamento havia florestas planas. O Paul da Serra, único local plano de extensão significativa, mas de clima agreste e situado a uma altitude média de 1500 metros, era apenas revestido por uma vegetação arbustiva de urzes, piornos e zimbros. Caminhar numa floresta madeirense, fosse ela exótica ou nativa, sempre obrigou a vencer desníveis de respeito, e nunca foi actividade para indolentes ou preguiçosos — até que as levadas tornaram possível caminhar pela floresta a uma altitude praticamente constante, mas sempre com a noção de acima e abaixo desse patamar haver muita floresta fora do nosso alcance.

/Ilex canariensis Poir.


A laurissilva da Madeira, ocupando boa parte do norte da ilha e algumas zonas de altitude elevada da metade sul, não é homogénea. Aquela por onde serpenteiam as levadas mais populares, por isso mais visitada por turistas, é a laurissilva do til (Ocotea foetens), muito húmida, quase sempre enevoada. Mais abaixo, e na vertente norte descendo quase até à costa, desenvolve-se, sobre solos menos profundos, a laurissilva do barbusano (Apollonias barbujana), marcada por um regime mediterrânico de secura estival. A zona de transição entre as duas ronda os 500 metros de altitude. O facto de cada uma delas ser designada pela espécie arbórea dominante não significa que nessas florestas não ocorram outras árvores. Há até grande diversidade delas, em geral lauráceas ou outras perenifólias de folhagem semelhante, que o principiante tem dificuldade em distinguir. Desse elenco arbóreo fazem parte os azevinhos, de que se contam na Madeira duas espécies: Ilex canariensis (nas fotos), endémico da Madeira e das Canárias, característico da laurissilva do barbusano; e Ilex perado subsp. perado, endémico da Madeira, semelhante ao azevinho açoriano mas de folhas maiores, morador na laurissilva do til e também, ocasionalmente, dos cumes escarpados na cordilheira central da ilha.

O Ilex canariensis é uma árvore dióica de não mais que 6 metros de altura, com flores brancas de quatro (às vezes cinco) pétalas reunidas em inflorescências axilares, e frutos que se tornam vermelhos ao amadurecer. As suas folhas são menos brilhantes e menos arredondadas do que as do seu congénere (e conterrâneo) de maiores altitudes. Floresce entre Maio e Junho e os frutos amadurecem no Inverno, razão pela qual — a exemplo do que sucedeu no continente com o azevinho comum (Ilex aquifolium) — os raminhos dos indivíduos femininos foram tradicionalmente usados como enfeite natalício.

As fotos são da freguesia do Seixal, na Madeira, onde vários trilhos florestais partem do vale da ribeira e ascendem rapidamente aos píncaros da ilha. Para quem tiver olhar instruído e fôlego que baste, é um modo de, num passeio curto, conhecer as duas principais faces da laurissilva madeirense.