24/04/2023

Estrelas no asfalto



No noroeste da Grã-Canária, a velha e estreita estrada entre a Aldea de San Nicolás e Agaéte serpenteia pelas escarpas junto à costa, proporcionando em vários dos seus trechos — em especial na passagem pelo monte de Andén Verde — uma vista desafogada do Atlântico, que estende o seu infinito azul 500 metros abaixo. É prudente que o condutor não se distraia com as vistas, não vá o carro guinar para o precipício. Além disso, os instáveis taludes rochosos, aqui e ali protegidos por redes de aço, são uma permanente ameaça de derrocadas. Pensando bem, talvez seja avisado vedar a estrada ao trânsito automóvel e, em sua substiuição, construir outra, mais moderna, larga e rectilínea, furando por túneis e amputada de vistas. Foi isso mesmo que se fez — e, hoje em dia, até os caminhantes estão proibidos de percorrer a antiga estrada, que está cortada por blocos de betão e se vai rapidamente convertendo em cenário pós-apocalíptico: asfalto gretado, salpicado de calhaus e pedregulhos, e taludes revestidos por vegetação, a mesma vegetação que, pouco a pouco, vai ocupando e rompendo a faixa de rodagem. Como é usual nestes filmes, reina um silêncio ominoso (nem um motor se ouve) e não se avista ninguém; os heróis perguntam-se se além deles haverá outros sobreviventes.

O guionista intervém para lembrar que o filme é outro. Não houve qualquer fim do mundo e simplesmente desobedecemos às autoridades, andando algumas centenas de metros numa estrada de acesso proibido. Uma estrada escalavrada e perigosa, é verdade, mas nada que se compare (por enquanto) com as estradas abandonadas da costa norte da Madeira. Confiados na nossa sorte e experiência, achamos que a proibição não nos diz respeito. Sabemos que a exploração botânica comporta perigos, e aceitamo-los com sangue-frio.

Asteriscus graveolens subsp. stenophyllus (Link) Greuter


De entre as plantas que avistamos destaca-se um arbusto muito compacto e arredondado, crescendo bem no meio da estrada e afirmando-se como pioneiro na vegetalização do asfalto. Trata-se claramente de um Asteriscus, género bem representado nas ilhas orientais das Canárias, as mais secas do arquipélago: em Fuerteventura e Lanzarote ocorrem três espécies, incluindo uma endémica de cada uma dessas ilhas (A. sericeus em Fuerteventura, A. intermedius em Lanzarote). Esta estrela da Grã-Canária, de seu nome Asteriscus graveolens, é menos vistosa do que essas outras, por ser de menor porte, ter folhas mais estreitas e capítulos mais pequenos. Talvez compense o défice de beleza pelo cheiro intenso, ainda que pouco agradável, a que se refere o epíteto específico. Contudo, ao contrário dos Asteriscus endémicos de Fuerteventura e Lanzarote, este Asteriscus graveolens da Grã-Canária não parece ter conquistado o apreço dos jardineiros.

O Asteriscus graveolens apresenta um grau de variabilidade assinável, e estão descritas na Grã-Canária duas subespécies. A subsp. stenophyllus (em cima, fotografada em Andén Verde), tida como endémica dessa ilha, é mais ramificada, e apresenta folhas acetinadas, concentradas nas pontas dos ramos. A subsp. odorus (em baixo, fotografada no Barranco del Sibério), que ocorre também em Marrocos, apresenta um aspecto algo desgrenhado e tem as folhas mais pubescentes, dispostas de forma espaçada. Ambas as subespécies receberam ordens de especialistas reputados para florir sobretudo na Primavera, nunca antes de Março e nunca depois de Junho. Está-se a ver que não ligaram nenhuma, pois as fotos são de Dezembro de 2019.

Asteriscus graveolens subps. odorus (Schousb.) Greuter

13/04/2023

Ensaiões III & IV

Aeonium aizoon (Bolle) T. H. M. Mes [= Greenovia aizoon Bolle]


As suculentas do género Aeonium são ideais para jardineiros preguiçosos: mais depressa sucumbem aos excessos de atenção (e de água) do que ao esquecimento e ao desleixo. Dotadas de invejável longevidade, fazem-se notar, ano após ano, pela floração abundante e regular. Mesmo quando não estão floridas, valem pelas rosetas de folhas carnudas, de uma simetria perfeita. Em climas mais frios, podem ser cultivadas em vasos dentro de casa; em lugares de clima mais temperado (como seja toda a faixa litoral do nosso país), adaptam-se perfeitamente ao cultivo ao ar livre. Nunca devemos esquecer que, nas suas ilhas de origem (quase todas elas provêm das Canárias), as temperaturas tendem a ser cálidas e a chuva se resume a episódios esporádicos.

Com excepção de três espécies na África continental (uma em Marrocos, duas na costa oriental), o género Aeonium é exclusivo das ilhas da Macaronésia; e, tirando as duas espécies madeirenses (A. glandulosum e A. glutinosum), todas as restantes, que totalizam 33 (ou umas 40, se contarmos subespécies), são endémicas das Canárias. As diferentes espécies podem tomar aspectos muito diversos, o que motivou a divisão do género Aeonium em sete secções. Uma delas é a secção Greenovia, que tradicionalmente constituía um género independente: as plantas dessa secção (que inclui A. aizoon, acima ilustrado, e A. aureum) distinguem-se por terem folhas dispostas numa roseta basal de que emerge uma única haste floral, e sobretudo pelas pétalas estreitas e muito numerosas (até 32 em cada flor, quando nas demais espécies de Aeonium o número de pétalas não ultrapassa 12). A secção Leuconium, que inclui Aeonium urbicum (abaixo exposto), reúne espécies com rosetas de folhas terminais (i.e., nas extremidades das hastes) e com flores variando entre o branco, o rosa e o vermelho. A outra espécie aqui exibida na ocasião anterior, Aeonium spathulatum, muito ramificada e de folhas pequenas, pertence a uma terceira secção, denominada Chrysochrome. Em fascículos posteriores, se os houver, trataremos das secções ainda por ilustrar.

Não fugindo àquela que tem sido a nossa regra, ambas as protagonistas de hoje são endémicas de Tenerife. A bea de Güímar (nome comum do Aeonium aizoon) vive nas montanhas do município com o mesmo nome, no centro-leste de Tenerife, acima dos 1000 m de altitude, em lugares pouco acessíveis. Para tristeza de jardineiros e coleccionadores, dá-se mal em cultivo fora do seu habitat natural, além de ser planta de vida curta — é pois preferível deixá-la em paz nas rochas onde escolheu viver. Já o bejeque puntero (Aeonium urbicum) — que parece uma miniatura de árvore com a sua haste muito erecta, não ramificada, encimada por avantajada inflorescência piramidal — é menos refractário ao cultivo, mas tem a desvantagem de ser monocárpico: floresce uma só vez na vida, produzindo uma legião de sementes e morrendo de seguida.

Aeonium urbicum subsp. meridionale Bañares

07/04/2023

Açafrão insular

Crocus cambessedesii J. Gay


A Natureza não seria ridícula ao ponto
de se resumir a qualquer fórmula literária
ou matemática.
Coloca o livro mais brilhante de Goethe
ao lado de uma pedra: volta no outro dia,
e no dia seguinte. E na semana seguinte.
Verás: nada aconteceu à pedra,
enquanto o livro, por todo o lado, por todas as partes,
começou a perder qualidades.
Gonçalo M. Tavares, Uma viagem à Índia (Editorial Caminho, 2010)